Sobre ‘pandemias’, ‘hemorroidas’ e a ‘política do absurdo’ no Brasil de 2020

por Fabiano de Melo Pessoa* no GGN

 

Encerramos uma semana em que, na última sexta-feira, 22 de maio, fora divulgado vídeo de reunião ministerial na qual o Presidente da República e seus Ministros de Estado tratam de temas variados de maneira, digamos, nada convencional, para o que se pode esperar de um encontro de trabalho de qualquer órgão da República.

Tem-se que a reunião se deu em 22 de abril, deste já longuíssimo ano de 2020, portanto, em pleno desdobramento da crise que nos abate e que a todos aflige. Já naquela data, a gravidade da situação estava evidente, com a morte de quase três mil pessoas. Hoje, 25 de maio, contamos com mais de 23 mil mortes, oficialmente registradas, como oriundas da contaminação pelo Corona vírus. Uma tragédia sem precedentes!

Contudo, não há, até o momento, perspectiva de diminuição imediata no crescimento da curva de contaminados e mortos. Tampouco, conseguimos identificar uma estratégia clara e eficiente de combate aos efeitos devastadores desta crise.

Deparamo-nos, portanto, quando da reunião ou na data de hoje, com um cenário perturbador, no que parece constituir uma sequência errática de encaminhamentos relativos à crise sanitária mais grave dos últimos tempos. E, em se tratando das autoridades responsáveis pelo controle dos órgãos executivos da União, pelo que se pode constatar no vídeo divulgado, as quais deveriam coordenar os esforços em um estado federado, como o nosso, a resposta parece estar deslocada da realidade da tragédia que enfrentamos e desfocada do enorme problema que nos vemos forçados a lidar.

Com a divulgação do vídeo da reunião ministerial, a situação alcança, assim, cores e formas ainda mais marcantes, para não dizer surreais.

Entretanto, impressiona, neste contexto, a forma como um conjunto de pessoas, inclusive dentre aquelas tidas como “esclarecidas”, e essa é a nota que traz a situação para patamares ainda mais críticos, tem reagido a tudo isso.

A crise sanitária tem produzido, como todos nós podemos perceber, um abismo entre as reais necessidades da nossa população, de acordo com os consensos técnicos até aqui estabelecidos, e as ações adotadas pelo governo central, marcado pela posição, mais das vezes, negacionista das evidências científicas.

Como pudemos observar, em palavras, gestos e “palavrões”, pretende-se promover, em meio à crise, o aprofundamento de medidas que, em muitos dos casos, rompem com os limites de moralidade pública ou da legalidade constitucional.

Fomos apresentados, a partir da divulgação deste vídeo, à pretensão do Presidente da República, dentre outras coisas, em “armar a população” para se contrapor às medidas de Governadores e Prefeitos, posto que violadores da “liberdade”, da “honra” e, nas expressas palavras do Presidente, das “hemorroidas” dos “cidadãos de bem” brasileiros.

Tomamos conhecimento do que pensa o nosso Ministro da Educação sobre as nossas minorias e do seu ódio a elas, expresso especificamente aos “povos indígenas” e ao “povo cigano”, ou a qualquer outro “povo” que não seja, em sua definição, a qual gostaríamos de melhor conhecer, o “povo brasileiro”.

E se, estas constatações, feitas em som, cores, imagens e outros arroubos autoritários, distantes dos marcos de uma liturgia que se espera existir em reunião do Conselho de Ministros da República, não se mostrassem suficientemente estarrecedoras, somos também, digamos, “apanhados”, por uma recepção pública que, quando não as naturaliza, chega, em alguns casos, a tê-las como expressão “bem-vinda”, pasmem, de “autenticidade” de seus personagens.

Ora, é neste cenário que percebemos que nos encontramos abatidos não apenas por uma crise sanitária, de gravíssimas proporções, mas por uma crise, também de enormes dimensões, no que diz respeito à capacidade de compreensão do que vivenciamos, por parte de parcela da população.

Ademais, diante disso tudo, ao menos por alguns instantes, desviamos o olhar das dramáticas questões humanitárias enfrentadas, de formas tão distintas, pelas diferentes parcelas de um povo tão desigualmente distribuído, no que diz respeito a riquezas, oportunidades e direitos.

Somos levados a esquecer que, na verdade, em meio a uma crise comum, que a todos abate, não podemos dizer que vivemos apenas uma “pandemia”, quanto aos seus efeitos concretos, mas “pandemias”, se observarmos as diferentes maneiras em que a crise sanitária atinge e afeta, um Brasil tão desigual.

Mas, nada disso parecia relevante ao Conselho de Ministros, ali reunido. Outros, nos faz crer o contexto, desviantes da nossa atenção com a crise, pareciam ser os objetivos pretendidos, em prognósticos e estratégias lançadas mediante reveladoras e desinibidas manifestações.

Surpreendemo-nos ao constatar que, em meio a tantas mortes e sofrimento, não eram esses os principais temas tratados pelo colóquio ministerial. Desinformação e, digamos, diversionismo, quando o que mais precisaríamos seria de informações claras e de foco na busca por soluções, se mostram como as tônicas do encontro.

Isso, agora, sob olhares lenientes de parcela da população que, em meio a fustigações de feridas profundas e de sofrimentos verdadeiros, parece não se sensibilizar, ou ao menos não se importar, com quadro tão desfuncional da dinâmica institucional.

No embalo de um processo novo e poderoso de uma multitude de (des)informações, nos deparamos com uma nova categoria de “expectativa pública”: a de uma “política do absurdo”!

E isso tudo, a mim me parece, por demais chocante.

*Fabiano de Melo Pessoa – Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado de Pernambuco. Membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.

Deixe um comentário