Sobre o “agir” e o “aproveitar da existência” do Ministério Público

Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN

Durante recente sessão de terapia recebi a advertência acerca da importância dos projetos futuros para a saúde psíquica.

Através deles se alcança um certo sentido de esperança, de busca por um objetivo palpável e de qual caminho seguir, fortalecendo a disposição e o bem-estar emocional. Organizar metas e se dispor a executá-las estimulam a motivação, ajudam a contornar o desânimo e contribuem para uma vida mais estimulante. 

Dissertando sobre os objetivos do tratamento psicanalítico, Leopoldo Fulgencio designa, de modo sintético, dois índices materiais da saúde psíquica elencados por Freud: o de agir (realizar) e o de aproveitar da existência. Segundo o autor, são essas capacidades que “Freud espera poder reestabelecer para que o próprio paciente possa conquistar um modo de vida mais proveitoso, no uso de suas forças e energias, conquistando ‘uma capacidade de atividade e de prazer, em geral, sem restrições’”.

Tendo alcançado recentemente 59 anos de idade, 31 de casamento e com os filhos já independentes, tratei de reforçar alguns planos e traçar outros de curto, médio e longo prazos com a minha esposa.

Sem deixar de agradecer, agradecer e agradecer todas as bençãos recebidas, é preciso recobrar projetos e apostar no futuro. Sim, sempre haverá o futuro. E o melhor da vida ainda pode estar por vir.

No campo profissional, após 37 anos do meu sonhado (e projetado) ingresso no MPMG, o desafio da aposentadoria começa a se desenhar com mais intensidade.

Refletindo a esse respeito, percebi que os projetos futuros também se aplicam em favor da saúde institucional e permitem cogitar sobre as ambições do Ministério Público brasileiro.

Não por acaso, inclusive por recomendação do próprio Conselho Nacional, os diversos ramos passaram a elaborar e a atualizar programas de “eficiência administrativa”, voltado para a modernização da infraestrutura e da tecnologia para a melhoria das rotinas de trabalho, e de “planejamentos estratégicos”, voltado para a atuação finalística.

A propósito, o art. 31, V, do Regimento Interno do CNMP (RI/CNMP) estabeleceu a Comissão de Planejamento Estratégico (CPE/CNMP) objetivando a “condução democrática do processo de planejamento, de médio e longo prazo, das diretrizes de ação do Conselho Nacional do Ministério Público e do Ministério Público brasileiro”.

Outra função da CPE/CNMP é conduzir os trabalhos de formulação de objetivos, metas e indicadores estratégicos nacionais, fomentar a troca de experiências em gestão com as unidades do Ministério Público e analisar indicadores e estatísticas institucionais.

O “Planejamento Estratégico Nacional: Ministério Público 2020/2029”, instituído pelo CNMP, estabelece como meta prioritária os seguintes retornos para a sociedade: (i) defesa dos direitos fundamentais; (ii) transformação social; (iii) indução de políticas públicas e (iv) diminuição da criminalidade e da corrupção.

Para tanto, se compromete a buscar 12 resultados institucionais, a saber:

1 Contribuir para o aperfeiçoamento do regime democrático;

2 Assegurar o respeito aos direitos da criança e do adolescente, do idoso e da pessoa com deficiência;

3 Promover a igualdade, a inclusão social e assegurar o respeito às comunidades tradicionais;

4 Assegurar o direito à educação, à saúde e ao trabalho digno;

5 Zelar pela defesa e proteção do meio ambiente e desenvolvimento sustentável;

6 Combater a improbidade administrativa e defender os patrimônios público, social, histórico e cultural;

7 Assegurar a defesa dos direitos do consumidor e proteger as ordens econômica e financeira;

8 Atuar na prevenção e na repressão do trabalho escravo e do tráfico de pessoas;

9 Fortalecer o controle externo da atividade policial;

10 Aperfeiçoar o sistema prisional e as medidas alternativas;

11 Atuar na prevenção e na repressão da criminalidade organizada, do tráfico de drogas e dos crimes de fronteira;

12 Fortalecer a prevenção e a repressão de crimes graves, tanto comuns como militares.

Entre tantas atribuições de fundamental relevância, se distingue a primeira, ou seja, a defesa intransigente e o aperfeiçoamento do regime democrático, sem o qual todas as demais sucumbem.

O Promotor de Justiça João Gaspar Rodrigues destacou com bastante propriedade que “o Ministério Público detém uma competência constitucional, ainda pouco explorada e estruturada (em termos teóricos e práticos), que é a defesa do regime democrático (CF/88, artigo 127, caput)”.

Após criticar a instituição por fazer apenas “ato de presença na atribuição aludida” e cobrar uma atuação mais efetiva a partir dos elementos normativos dados, os quais, devidamente valorizados e bem interpretados, podem “criar atitudes, fixar coordenadas de atuação, influir no pensamento e na ação futura dos membros do Ministério Público”, prossegue com absoluta precisão:

Criar um sistema de defesa democrática é uma tarefa extremamente difícil, ao passo que as energias desdemocratizantes vêm com a promessa de transgressão e excitação (Gray, 2018, p. 112). A fragilidade da democracia é testemunha do perene sonho de uma vida sem restrições e da sedução por movimentos disruptivos, ainda que conservadores ou reacionários.

Nas mãos erradas, a defesa democrática pode se tornar uma arma, tanto mais poderosa quanto maior for a inércia e a omissão. Desse modo, não é qualquer agente público que pode se apropriar dessa competência, que pressupõe, acima de tudo, um notável compromisso de lealdade — que beira a heroicidade — com os princípios mais essenciais da democracia. Isso por uma razão muito simples: a atribuição de defesa democrática não se confunde com a simples defesa da ordem jurídica, tanto que a Constituição atribui, em separado, esta competência também ao Ministério Público […].

Os membros do Ministério Público, todos sem exceção, frente à Constituição e seus comandos, e principalmente, face ao fluxo histórico-identitário da instituição, devem ser democratas convictos e por inteiro, com sólidas credenciais republicano-democráticas: nem desleais, nem semileais, pois como afirmam Levitsky e Ziblatt (2023, p. 13), a deslealdade e até a semilealdade podem matar a democracia, principalmente, se têm origem em suas instituições de salvaguarda […].

Enquanto instituição, o Ministério Público só se desenvolve na medida em que obedece à sua natureza histórica: servir lealmente à democracia e aos elevados interesses da sociedade. Este é o caminho, o tao, de sua essência.

O atual quadro de ataques explícitos – internos e externos – à soberania nacional e ao Poder Judiciário desafia em último grau a capacidade de o Ministério Público proteger a democracia no Brasil, pois, repita-se, sem ela todos os demais projetos institucionais se tornam inexequíveis.

Esse movimento orquestrado surgiu a partir de uma profunda e sistemática desinformação produzida em larga escala através das redes sociais, manipuladas por big techs interessadas muito especialmente na concentração de dinheiro e de capital, o que, num mundo capitalista, implica em potente concentração de poder.  Pavimentou-se, assim, o ambiente perfeito para a introdução e a consolidação do “neofascismo de plataforma” idealizado pela ultradireita mundial, cada vez mais robusto com as sucessivas e multifacetadas investidas do presidente americano.

O Ministério Público que emergiu da CR/88 não tem o que fazer num regime totalitário.

Já passou da hora de a Instituição vir a público por meio dos seus órgãos representativos e, demonstrando perfeita união entre os seus ramos, federais e estaduais, realizar um ato público de desagravo ao STF e ao Poder Judiciário brasileiro.

Em curtíssimo prazo, criar uma força-tarefa para cobrar dos integrantes do Congresso Nacional o respeito à Constituição cidadã e à legislação infraconstitucional, sempre fundado na inafastável independência dos poderes.

É preciso ainda que a Instituição adote medidas para restaurar os conceitos de liberdade, liberdade de expressão, laicidade e democracia, entre outros, tão deturpados por algoritmos manejados em favor de inescrupulosos políticos extremistas e influenciadores digitais vinculados ao movimento neofascista.

O controle externo da atividade policial, jamais implementado de maneira efetiva, deve ser tratado com prioridade diante do inaceitável número de mortes causadas por integrantes das forças de segurança e a ínfima taxa de responsabilização por tais homicídios. É preciso fechar essa ferida que remanesce do período ditatorial. A anistia ampla, geral e irrestrita impediu a punição de agentes que assassinaram, abusaram e torturaram em nome do regime. Com a militarização da polícia, essa permissividade passou a permear os métodos e as atividades de segurança pública no Brasil, como se a violência e a tortura fossem indispensáveis à tarefa de prevenir e reprimir a criminalidade.

O Ministério Público encontra na CR/88 a sua razão de ser e, por isso, precisa apostar na coletividade, se inserir no meio das pessoas, deixar a apatia de lado e se apresentar como agente transformador da realidade. Não pode jamais desistir da soberania nacional, da democracia, dos direitos humanos e de um mundo solidário possível.

Mais do que nunca, esse é o momento de agir para afastar definitivamente o gérmen da ruptura que se reinstalou na cultura política do país e, bem estrategicamente falando, se aproveitar da existência que lhe foi dada pelo Poder Constituinte para se impor como a principal instituição de salvaguarda do regime democrático.

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.

Antônio de Padova Marchi Júnior é Procurador de Justiça do MPMG; Mestre e Doutor em Direito pela UFMG; Professor do Curso de Direito do IBMEC e integrante do Coletivo Transforma MP.

Deixe um comentário