A ideia de que os sistemas de punição, nas sociedades ocidentais capitalistas, têm uma propensão natural a escolher sempre os seus clientes dos setores mais vulneráveis da sociedade talvez seja o maior achado e a maior expressão do pensamento crítico em ciências criminais, desde a sua origem, entre as décadas de 1960 e 1970, até os dias atuais.
Isso porque, a partir da descoberta dessa seletividade estrutural e sistêmica da punição, tem-se o mais duro golpe já desferido contra o discurso que acompanha o direito penal moderno desde sua origem e que legitima a pena (princípio de legitimidade) como instrumento para defender a sociedade daqueles que ameaçam a sua própria sobrevivência, com suas ações criminosas (ideologia da defesa social)[1].
Desde o momento em que irrompe nos Estados Unidos e de lá se espalha para o resto do ocidente, essa crítica deslegitimante da pena, de inspiração claramente marxiana, levou a discussão dos temas de política criminal para um outro patamar e demarcou o campo do debate em torno da questão penal, inspirando, por um lado, inúmeras correntes abolicionistas minimalistas e de justiça restaurativa, mas também, por outro lado, respostas virulentas do pensamento conservador e reacionário[2]. Como consequência, as propostas de modificação da legislação penal e processual penal e a criação de novos institutos jurídicos neste campo estão sempre pautadas por questões relacionadas à eficiência do combate ao crime, de um lado, e à redução da violência punitiva seletiva, do outro.
O chamado acordo de não persecução penal, recentemente introduzido pela chamada Lei Anticrime (lei n°13.964), é um desses institutos que, assim como outros tantos (transação penal e suspensão condicional do processo), parece atendera ambas as perspectivas, na medida em que possibilita uma forma de solução do caso penal supostamente mais benéfica para o acusado, mais rápida e menos custosa para o Estado. Além disso, oferece às vítimas a possibilidade de uma antecipação da reparação de dano (art. 28-A, I, do CPP), como condição para o acordo, e à sociedade uma fonte de financiamento de políticas públicas, custeadas por penas de prestação pecuniária (art. 28-A, IV, do CPP).
Em outro lugar já tivemos a oportunidade de denunciar o que há de enganoso na apresentação do instituto (assim como a transação penal) como esse excelente jogo de ganha-ganha, chamando atenção sobre questões extremamente problemáticas no seu operar concreto, que acabam solapando o sistema de garantias penais e processuais penais, renovando estruturas inquisitoriais que se pretendiam superadas e aprofundando justamente seletividade do sistema[3].
Evidentemente, os limites deste trabalho não comportam uma revisão geral dos argumentos nesse sentido. Mossa pretensão consiste apenas em examinar algumas nuances relacionadas às pretensas vantagens do instituto, para a sociedade, pela possibilidade de lançar de recursos oriundas de prestação pecuniária, como dito acima.
Para tanto, convém retomar o tema da seletividade do sistema penal, para mencionar os desdobramentos do pensamento crítico estadunidense dos anos 1970, especialmente na América Latina e no Brasil, como produto de uma criminologia nativa e autêntica, que, embora influenciada historicamente por uma matriz de viés marxista, centrada na perspectiva da luta de classes, traz para o debate também o conceito de raça, com igual importância, como elemento determinante da desigualdade punitiva. Trata-se, como se sabe, de uma tendência relativamente nova e que reúne uma gama considerável de autores, dos mais variados matizes e áreas da filosofia e das ciências sociais, mas que estão todos de acordo em denunciar a modernidade ocidental e capitalista como um discurso de legitimação do que na realidade aconteceu: um processo de conquista, extermínio e escravização de pessoas, liderado pelo homem branco, europeu, cristão e proprietário[4].
Neste processo de conquista, ademais, o extermínio não é apenas dos seres humanos de carne e osso elegidos como inimigos ou obstáculos, mas alcançaram também, como sabemos, idiomas, práticas sociais, saberes, enfim todo o patrimônio cultural e vínculos ancestrais dos povos vítimas (etnocídio), tudo em nome da ciência, como sistema de crenças que não admite concorrência[5].
Justo por isso, de todas as correntes e tendências do pensamento decolonial (feminista, antirracista, como queiram) que se constitui, paradoxalmente, desde dentro da academia e sob padrões com pretensões científicas, as que tem alguma chance de realmente decolonizar são aquelas que apontam para fora dos campos científico e filosófico, para transcendê-los na direção dos mitos e arquétipos que condicionam até mesmo a produção filosófica e científica do ocidente, como observado com extrema felicidade por GÓES[6].
Numa palavra, o enfrentamento crítico (decolonial) de temas das ciências criminais e mesmo de dogmática processual penal, como o próprio acordo de não persecução penal, deve partir das seguintes premissas (que extraio, a partir da livre interpretação do texto de GÓES, acima citado): a) o sistema de justiça onde o instituto deve operar está determinado, antes de tudo, por Zeus e Themis; b) Zeus e Themis julgam desde o Olimpo, o lugar mais elevado, e sempre com aquela pretensão de um acerto cirúrgico (cientificamente determinado) do dizer o direito; c) Zeus e Themis determinam toda a estrutura do sistema, mas têm também seus limites; d) É nestes limites e fragilidades que podem atuar Xangô e Oyá, sua mentora; e) Xangô, ensina GÓES, julga em roda. Seus filhos aprenderam, por gerações, o que significa ter jogo de cintura para negociar soluções não necessariamente justas, mas com potencial para reduzir danos[7].
Mas o que significa isso, exatamente? Quais as conexões entre esse confronto de deuses e o que se pode fazer com os valores recolhidos de ANPPs?
Desde um ponto de vista crítico (no sentido de uma criminologia crítica de matiz marxista) e garantista, a questão da destinação dos valores recolhidos como prestação pecuniária parece sempre secundária, uma vez que a própria possibilidade de aplicar pena (de qualquer espécie) sem processo (contraditório e ampla defesa) já é fortemente contestada. De igual modo, a introdução de mecanismos de tutela reparadora no processo penal tem sido também denunciada como problemática, na medida em que ofusca e enfraquece, inevitavelmente, a função garantidora que o sistema de justiça penal deve desempenhar em relação aos direitos fundamentais da pessoa acusada de delito. Denuncia-se, assim, o processo de relegitimação do sistema de punição que esses institutos acabam produzindo, para que o sistema continue a realizar a sua vocação natural e sistêmica de punir os miseráveis. Mormente quando se pretende utilizar esses valores no próprio aparato de segurança pública. E a partir daqui, Zeus e Themis não avançam.
É justamente a partir desse ponto, segundo pensamos, que entra em cena a mandinga de um Xangô, que aceita, eventualmente, negociar o dano, os limites e, portanto o alcance da sua redução. Xangô tem plena consciência, por exemplo, de que impedir o manejo do ANPP nos crimes de racismo terá como efeito, na prática, impedir que a vítima goze de alguma reparação de caráter indenizatório, em nome de uma punição criminal futura que dificilmente ocorrerá, como bem demonstrado por VAZ[8], e terá, portanto, um sentido meramente simbólico, que, de novo e de novo, relegitima um sistema penal racialmente seletivo.
Xangô está prevenido de que, se o sistema penal é estruturalmente racista, permitir que o acusado negocie seu direito ao processo para aceitar uma medida que tem natureza de pena significa aprofundar ainda mais a seletividade, como o risco adicional de transformar a justiça criminal num balcão de cobranças. Mas Xangô também sabe que, a partir de uma compreensão minimamente realista do operar do sistema penal, não se pode imaginar, no curto e médio prazo, que o art. 28-A do CPP venha a ser declarado inconstitucional, seja por autorizar a aplicação de pena sem ampla defesa e contraditório.
O dano, portanto, não pode ser eliminado, mas pode ser reduzido, pelo menos para que os valores provenientes de acordos não sejam utilizados para comprar mais armas e balas para serem utilizadas no genocídio diário da população negra, mas possam ser aplicados em iniciativas, públicas ou do terceiro setor, especificamente vocacionadas ao estudo e/ou ao enfrentamento do racismo estrutural, especialmente nas questões de segurança pública.
A teor do que dispõe o art. 28-A, IV, a destinação da prestação pecuniária deve contemplar a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito. Ao contrário do que seria esperado de Themis (e Hermes), em face desse texto Xangô (e Exu), que sabe da seletividade racial (e do racismo estrutural), que caracteriza o sistema de punição, permite-lhe incluir, entre os bens jurídicos lesados pelo delito, também (e preferencialmente)aqueles cujos titulares são, historicamente, os clientes preferenciais do sistema penal e que precisam, com absoluta prioridade, de reparação histórica também nesse aspecto. Assim, as instituições destinatárias devem ser justamente aquelas identificadas com a redução da seletividade penal e das desigualdades raciais em todos os sentidos.
Elmir Duclerc é Promotor de Justiça na Bahia e associado ao coletivo TRANSFORMA MP, mestre e Doutor em Direito, Professor de Processo Penal da UFBA, ex-Presidente do Instituto Baiano de Direito Processual Penal – IBADPP.
[1] Sobre a ideologia da defesa social, e seu princípio de legitimidade, por todos cita-se BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Revan, 1997, p. 42.
[2] Sobre os desdobramentos e a crise da criminologia crítica, ver ANITUA, Gabriel Ignácio. História dos pensamentos criminológicos. Rio de janeiro: Revan, 2008, p. 657 e sgs.
[3] Sobre as problematizações do ANPP, consultar: RAMALHO JR, Elmir Duclerc e MATOS, Lucas Vianna. A lei anticrime e a nova disciplina jurídica da persecução pública em juízo: pistas para uma interpretação crítica dos arts. 28 e 28-a do CPP. Revista dos Tribunais Online. Acesso em: 18/12/2022. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1-abq044p7HczXMhyYj5LzAr7Fa374xV2/view?usp=share_link.
[4] Em torno dessa temática, como se sabe, há toda a tradição de pensamento decolonial, que se constitui em torno de Aníbal QUIJANO, mas também uma produção, dos mais variados matizes, mais especificamente preocupada com essas imbricações entre racismo e capitalismo. Cita-se, por todos, o já consagradíssimo trabalho de ALMEIDA (ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018)
[5] CORREIA, G. J. Breves notas sobre a concepção de etnocídio e seu contexto como violação de direitos
humanos. Lex Humana, Petrópolis, v. 3, n. 1, p. 36-49, jul. 2011. ISSN 2175-0947. Acesso em: 18/12/2022.
Disponível em: http://seer.ucp.br/seer/index.php/LexHumana/article/view/106.
[6] GÓES, Luciano. Direito penal antirracista. Casa do Direito: Belo Horizonte, 2022, p. 230 e segs.
[7] É sempre difícil rastrear uma expressão ou conceito, em busca de sua aplicação original, mas a expressão “redução de danos”, em termos de política criminal, aparece muito fortemente ligada ao pensamento de Angela DAVIS (DAVIS, Angela. Estarão as prisões obsoletas? Tradução: Marina Vargas, 2. ed. Rio de Janeiro, Difel, 2018).
[8] VAZ, Lívia Sant´Anna. Entrevista da promotora de justiça do Ministério Público do estado da Bahia Lívia Sant´Anna Vaz. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Brasil, Vol. 191, p. 377-390. jul/ago 2022, p 383.