Por Gustavo Roberto Costa no GGN
Na época da trágica operação “lava-jato” – um dos períodos mais obscuros da história da justiça brasileira –, direitos dos mais fundamentais foram pisoteados em nome do “combate à corrupção”. Ficou famosa a frase de um desembargador que dizia: “problemas inéditos exigem soluções inéditas”. Denúncias sobre as fraudes, arbitrariedades e ilegalidades cometidas durante a operação foram feitas aos montes, até que ela fosse desmantelada – não sem antes causar males irrecuperáveis a um número enorme de pessoas. Até hoje, muitos integrantes do sistema de justiça demonstram nostalgia do período de inquisição levada a cabo para expurgar o “grande mal” da sociedade brasileira.
Eleito Bolsonaro em meio a uma fraude eleitoral – espantam-me declarações que afirmam terem sido as eleições brasileiras baseadas sempre no livre debate de ideias e na vontade popular – e em meio a inúmeras bravatas golpistas, suas e de seus mais próximos correligionários, durante o mandato presidencial, iniciou-se um estranho movimento daqueles que juram “defender a democracia” clamando por censura, perseguição e violação de elementares liberdades democráticas – com destaque especial ao devido processo legal – para o fim de “combater o bolsonarismo” e “defender a democracia”. Uma espécie de “lava-jato II”.
Um dos exemplos – dentre muitos outros – foi o banimento do apresentador Monark do Youtube, obrigado a sair do programa que ajudou a criar por ter feito uma fala infeliz (e não passou disso) sobre a criação de um “partido nazista” durante uma de suas entrevistas. Uma chuva de histeria tomou conta das redes sociais e da mídia convencional. O apresentador deveria ser calado, cancelado e até preso, diziam, simplesmente por expressar sua opinião. Algo muito estranho para quem se arvora na condição de defensor da democracia.
Outra moda criada em tempos de bolsonarismo é a perseguição e a cassação de deputados, principalmente por suas declarações e manifestações. O deputado estadual Francischini, por exemplo, mais votado em seu Estado, foi cassado pelo Tribunal Superior Eleitoral – TSE por “espalhar notícia falsa” sobre as urnas brasileiras. O Judiciário brasileiro arvorou-se na condição de autoridade máxima sobre decidir o que é ou não verdade. Às favas os milhares de votos obtidos pelo deputado.
O mesmo aconteceu com o execrável deputado estadual Arthur do Val, flagrado falando asneiras em grupo privado de aplicativo de conversas. Apesar do repúdio ao quanto dito pelo ex-deputado – e a tudo o mais que partia dele –, difícil entender que representa falta de decoro. Engraçado que o ex-deputado ir à Ucrânia, fora dos canais diplomáticos, para apoiar grupos nazistas, não causou repugnância e nem providências legais no Brasil, mas uma fala inofensiva em grupo particular foi o suficiente para um alvoroço totalmente desproporcional. Foi o deputado cassado por “declarações machistas”, algo ausente no ordenamento jurídico.
Por óbvio, a sanha persecutória não demoraria para alcançar o chamado campo progressista. O vereador Renato Freitas foi cassado pela Câmara Municipal de Curitiba por ter organizado manifestação no interior de uma igreja. Toda a esquerda ficou em polvorosa, com razão. Felizmente, a cassação foi anulada por decisão de outro ministro do STF. Uma decisão aparentemente correta, pois ninguém pode ser punido por “se manifestar”, notadamente um parlamentar. Todavia, não se viu qualquer autocrítica da esquerda sobre o apoio aos precedentes sobre cassação de deputados.
Digna de nota foi a decisão do ministro Alexandre de Morais, do STF, o qual determinou, em decisão monocrática e fora do devido processo legal (sem contraditório, ampla defesa, paridade de armas etc.), o banimento do Partido da Causa Operária – PCO de todas as redes sociais. O motivo: o partido, em algumas de suas publicações, chamou o ministro de “Skinhead de toga” e defendeu a “dissolução do STF”. Segundo a decisão, o debate de ideias só está permitido se o assunto contar com a concordância do ministro do STF e da chamada “comunidade jurídica”. Uma limitação indevida e inconstitucional da liberdade de expressão. Não se viram “juristas progressistas” para condenar a medida.
Arbitrariedades até mais graves vêm sendo cometidas em série pelo mesmo STF, notadamente a instauração, de ofício, de inquéritos (das fake news, dos atos antidemocráticos e outros) inexistentes no ordenamento jurídico, os quais violam o sistema acusatório (em que um órgão investiga, outro processa e outro julga) e os princípios do contraditório, da ampla defesa, da publicidade dos atos públicos, do duplo grau de jurisdição e outros, sem que se tenham meios de questionar as decisões nele emanadas.
Recentemente, oito empresários foram objeto do cumprimento de mandado de busca domiciliar em suas residências, única e exclusivamente por terem supostamente feito comentários sem maior importância em grupo de conversas sobre ditadura. Teria dito um empresário que preferia a ditadura a um terceiro governo Lula. Além do mandado, os empresários tiveram suas contas em redes sociais bloqueadas e seu sigilo bancário quebrado. Uma decisão ilegal, seja pela forma (tomada diretamente por ministro do STF, sem provocação de partes legitimadas), seja pelo conteúdo (em razão de uma conversa em grupo virtual).
Para muitos, o “combate ao bolsonarismo” e uma suposta “defesa da democracia” justificariam tais arbitrariedades. Já que Bolsonaro quer “implantar uma ditadura”, somente ações igualmente fora do ordenamento jurídico seriam aptas a frear o ímpeto golpista do chefe do executivo. Ocorre que tudo vem dando errado, e aparentemente dará errado cada vez mais.
A inesgotável violência contra os princípios fundamentais do Estado de Direito não impediu a vitória avassaladora do bolsonarismo no primeiro turno das eleições. É certo que Bolsonaro ficou em segundo lugar na disputa presidencial. Mas seus aliados têm agora muitas cadeiras na Câmara Federal, no Senado e em governos de importantes Estados, e tudo indica que terão ainda mais após o segundo turno. Mesmo que Bolsonaro perca a eleição presidencial – o que não está garantido nem de longe – seu poder no regime político será ainda maior.
Os bolsonaristas podem agora pautar agendas que modifiquem a composição e o funcionamento do Poder Judiciário (já há declarações nesse sentido), podem vetar indicados aos tribunais superiores e – com a moda criada e fomentada pela esquerda – perseguir e cassar deputados do campo popular.
Caso Bolsonaro vença a eleição, o quadro será ainda mais trágico. Terá ele o direito de indicar pelo menos mais dois ministros para o STF. Com maioria no parlamento e apoiado por uma parte considerável do sistema de justiça, dificilmente o imenso poder para censurar e calar opositores não se voltará de imediato contra a esquerda, a qual ficará sem meios para se defender e não poderá alegar violação a seus direitos, visto que agiu da mesma forma num passado recente.
Seja qual for o resultado – e espero que seja o melhor para a classe trabalhadora –, que fique a lição: não se brincam com direitos fundamentais. A “lava-jato” já comprovou. Não vale tudo para derrotar um inimigo político, principalmente um inimigo que tem uma força muito superior para controlar postos estatais importantes. A história demonstra que aqueles que defendem os direitos humanos e são identificados com as lutas populares são os mais vulneráveis a abusos jurídicos, que invariavelmente virão.
Nesse momento, não haverá Poder Judiciário para recorrer
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça em São Paulo. Mestre em direito internacional pela Universidade Católica de Santos. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD