Como observa Sartre – e o seu alerta é contemporâneo – “quando um país se enoja lentamente de suas instituições democráticas, pode se acomodar durante muito tempo a um regime autoritário, pois a política não consegue mais o demover.”
Em 22 de fevereiro de 1960, Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir desembarcaram em Havana, exatamente um ano e dois meses depois do início da Revolução Cubana, oficialmente “anunciada em 1º. janeiro de 1959, da varanda do hotel da cidade de Santiago de Cuba.” O casal de escritores franceses passeou pela ilha durante aproximadamente um mês, alguns dias ao lado do próprio Fidel Castro (então com 32 anos) e de Che Guevara, o mais culto dos rebeldes. Este período na ilha rendeu uma série de artigos escritos especialmente para o France-Soir.[1] No Brasil, os textos reunidos foram publicados em 1960, compondo a obra “Furacão sobre Cuba”.[2]
Aqui no Brasil, Sartre esteve naquele ano na Bahia, no Rio e em São Paulo e, “apesar de todas as características que distinguem um país do outro, acabou compreendendo que falar aos brasileiros sobre a ilha rebelde cubana era falar dos jovens (arrebatados) brasileiros.”
Ademais, notara que Cuba sabia que estava ligada à América Latina “por laços naturais e profundos e que no continente sul-americano estão seus irmãos, e que quanto mais eficaz e mais íntima seja essa fraternidade, tanto menos a ilha mais ameaçada do mundo terá necessidade de ajuda oriental.”
Sartre e Simone hospedaram-se no famoso Hotel Nacional, situado “na zona dos bairros elegantes de Havana, e o seu quatro de milionário caberia no apartamento dele em Paris.” Neste aposento, havia “sedas, biombos, flores bordadas ou dentro dos vasos, dois leitos de casal só para mim, todos os confortos: ligo ao máximo o ar condicionado para gozar do frio dos ricos.” Ambos já haviam estado em Havana há mais de dez anos, em 1949, e, aos seus olhos, “parecia que nada havia mudado: andávamos durante horas, Simone de Beauvoir e eu; íamos a todos os lugares.” Mas, na verdade, como logo notou Sartre, “era preciso ver as coisas por outro prisma e, na verdade, haviam compreendido tudo ao contrário: o que considerava sinais de riqueza eram de fato sinais de dependência e de pobreza.”
Afinal, “que dizer dum país onde os serviços públicos são arrendados ao estrangeiro?” Ele se referia, obviamente, aos monopólios americanos estabelecidos em Cuba, que formavam, verdadeiramente, “um Estado dentro do Estado, reinando numa ilha enfraquecida pela hemorragia das divisas.”
Como notara Sartre, “a riqueza de Cuba é a terra que deu milhões a algumas famílias e quase a nobreza, imaginando, tocados pela imobilidade aparente do solo, que a terra garantiria a segurança das rendas prediais.” Assim, ao invés da industrialização do país, “preferiram a estabilidade enganadora dum aluguel, pois os bens imóveis, ao contrário da aventura industrial, dão segurança pelo seu próprio nome, revelando a recusa teimosa da economia burguesa em industrializar o país: a pedra assentada é inerte, portanto, estável.”
Enquanto isso, Batista “vendia açúcar e prazeres e comprava armas aos americanos, com seus cofres transbordando de dólares”; na ilha “os especuladores especulavam, os traficantes traficavam, os desempregados vegetavam, os turistas se embriagavam, os camponeses, desnutridos, roídos de febre e de parasitas, de três em três dias tinham trabalho em terra alheia.”
Cuba era, tal como o Brasil de hoje (guardadas, evidentemente, as devidas proporções), “um país que parecia resignado, uma desgraça fixa sob uma temperatura constante. Durante um século inteiro tinha admirado os Estados Unidos sem reservas; seus grandes exilados tinham estudado de perto o livre jogo das instituições, da competição, o vínculo entre os direitos cívicos e o regime da propriedade, quando, então, um liberalismo de fachada ocultava o imperialismo dos trusts, do qual iam ser as primeiras vítimas.”[3] Os Estados Unidos, “abrigados pelo protecionismo aduaneiro fixavam seus preços segundo seus custos, sem inquietar-se com os preços mundiais.”
A propósito, lembro aqui de uma fábula dos irmãos Grimm, referida no livro de Jappe: “Um gato convence um rato de que nutre grande amizade por ele; dividem o mesmo lar e, prevendo o inverno, compram um pote de banha, que escondem numa igreja. Entretanto, sob o pretexto de um batizado, o gato sai várias vezes e come pouco a pouco toda a banha. A cada vez que volta à casa, ele se diverte dando respostas ambíguas ao rato sobre o que tem feito. Quando vão, enfim, juntos à igreja para comer a banha, o rato descobre a enganação; o gato, como única resposta, come o rato.” Nesta fábula, a última frase enuncia a sua moral: “Pois bem, assim caminha o mundo.” Jappe transcreveu a fábula como uma forma de mostrar que “a relação entre a cultura e a economia corre o forte risco de se assemelhar a essa fábula, e não é difícil imaginar quem, entre a cultura e a economia, desempenha o papel do gato e quem desempenha o papel do rato – a fortiori hoje, época do capitalismo plenamente desenvolvido, globalizado e neoliberal.”[4]
E, efetivamente, assim se dá ainda atualmente, de uma maneira ou de outra, pois “o imperialismo, pelo próprio jogo da opressão econômica, cria no oprimido necessidades que somente o opressor pode satisfazer, afinal a generosidade puritana promete arrumar tudo.”
Vejam, por exemplo, o caso brasileiro: enquanto por aqui se bajula Trump, o governo americano, reiteradamente, vem adotando há dois anos medidas de protecionismo comercial, afetando drasticamente as exportações brasileiras, representando um impacto aproximado, segundo consta de um levantamento divulgado pela Confederação Nacional da Indústria, de US$ 1,6 bilhão nas exportações brasileiras por ano.[5]
No livro, Sartre relembra a empreitada não bem-sucedida na qual Fidel, então um jovem advogado, no dia 26 de julho de 1953, “lançou-se com um punhado de companheiros ao ataque do quartel de Moncada, quando foi preso, condenado e trancado numa fortaleza.” Dois anos depois, anistiado por Batista, foi banido de Cuba, partindo para o México, de onde depois voltaria definitivamente com oitenta companheiros – “espremidos numa catraia” – no dia dois de dezembro de 1956, quando, efetivamente, começou a Revolução.[6]
Neste dia, “quando puseram o pé na costa, pensaram que chegara a hora de entregar a alma, e alguns só conseguiam se arrastar, esgotados pelos vômitos.” Estes rebeldes, como estratégia, e para evitar o erro de outrora, “marcaram, por assim dizer, um encontro com os soldados de Batista, e deram o endereço, fazendo a ilha inteira saber que estavam acampados na Sierra Maestra.” Eram todos “um bando de jovens arriscando a pele para ressuscitar as reivindicações e a unidade de um país pulverizado pela opressão e por meio século de ladroeiras.”
Em Cuba, já havia condições propícias para a Revolução, além da confiança dos camponeses: “a iminência de um desastre, a proclamação de uma esperança nova e de uma nova aliança.” Naquela época, os camponeses cubanos trabalhavam apenas quatro meses por ano (de dezembro a março). Viviam oito meses sem trabalho, endividando-se, “ora no armazém da localidade, ora junto ao seu empregador, vendo os seus salários de quatro meses ser “devorado por tais empréstimos a juros.”
Como observa Sartre – e o seu alerta é contemporâneo – “quando um país se enoja lentamente de suas instituições democráticas, pode se acomodar durante muito tempo a um regime autoritário, pois a política não consegue mais o demover.” Mais do que um alerta, eu diria que é uma lição para nós que, a cada dia, vemos triunfar os ataques às instituições republicanas em nosso país, agravos comandados, muita vez, por uma turba de facínoras que se encontram nos tais gabinetes do ódio.
Como bem observou Sartre, “no curso da degradação inflexível, os cubanos haviam compreendido que a história faz os homens; faltava demonstrar-lhes que os homens fazem a História. Qualquer que seja a importância dos fatores naturais, os males que afligem os homens são causados por outros homens.”
Aliás, e como se sabe, o analfabetismo grassava na ilha, pois, “enquanto os ricos se enriquecem à vontade, é preferível manter o povo na ignorância”, afinal “aprender a ler é aprender a julgar, sendo melhor que o povo nada aprenda.”
Ora, desde sempre, “os tiranos preguiçosos e lerdos desconfiavam do saber, porque este conduzia à subversão. A destruição do ensino superior era premeditada, ou seja, para proteger o subdesenvolvimento da economia cubana, esforçavam-se para que se produzissem apenas homens subdesenvolvidos.”
A propósito, e mirando os olhos para o Brasil de hoje, lembro da ideia estúpida gestada no gabinete do ministro da Economia, no sentido de criar uma nova Contribuição Social sobre Operações de Bens e Serviços, substituindo o PIS e o COFINS, extinguindo a isenção na compra de livros e criando uma tributação de 12% para o setor. Esta ideia parte do pressuposto (imbecil) de que a leitura é coisa da elite e que pobre só precisa ler livros didáticos. Trata-se, como escreveu Claudia Tajes, de uma “uma generalização tão idiota quanto achar que pobre não lê, não compra livro, troca educação e cultura por uns trocados a mais no Bolsa Família. No Brasil de hoje, pobre deixou de ser uma condição, com as suas circunstâncias, para virar condenação.[7]
Sartre também se interessou pelo papel das forças armadas, então comandadas formalmente por Batista; a respeito, disse ele: “Quanto ao exército de carreira, sob seus galões e seu nacionalismo, escondia-se duplo papel permanente; alguns de seus oficiais, estou seguro, enchiam a cabeça de bruma para não ver que protegiam sua casta contra o povo.” Assim, nada obstante a soberania cubana “encontrar sua expressão mais notável e seu apoio na instituição militar, tornava-se ela, sem sequer perceber, a mão-de-pilão que a pulverizava.” (grifei).
Sobre a juventude, Sartre escreveu neste livro que somente ela “tem a cólera e a angústia suficientes para uma revolução, e pureza suficiente para vencer. A juventude não tem nada a perder, e em Cuba a idade é o que salva os dirigentes, e sua juventude permite enfrentar o acontecimento revolucionário em sua austera dureza. Um rebelde que se aposenta, eis algo que não lhes agrada.”
Certo dia, ele ouviu de “um jovem burguês revolucionário: respeitei e respeito ainda meu pai e meus irmãos mais velhos; são boa gente. Quando eu era criança, serviram-me de exemplo, eu gostaria de tê-los imitado toda a minha vida. Mas, depois, me decepcionaram; não foi culpa deles, não é culpa minha. Para lançar-se ao jogo não basta ser revolucionário, é preciso estar roído por esse vício orgulhoso, a rebelião. A impossibilidade primeira do rebelde é a de viver sob a opressão e daí resulta a primeira fraqueza do opressor, a de impor seu regime aos vivos.”
Enfim, como escreveu Harvey, “desde tempos imemoriais há seres humanos que acreditam que são capazes de construir, individual ou coletivamente, um mundo melhor do que aquele que herdaram. Muitos acreditam que, no decurso dessa construção, poderão se refazer como pessoas diferentes, talvez até melhores. Talvez por essa razão intuitiva a história tem sido uma imensa demonstração de desejos utópicos por um futuro mais feliz e épocas menos alienantes. A crença de que podemos, pelo pensamento consciente e pela ação, mudar para melhor o mundo em que vivemos e também a nós mesmos define certa tradição humanista.”[8]
Trata-se, por óbvio, de um livro que retrata as primeiras impressões de um intelectual europeu sobre a Revolução cubana e deve, por esta razão, ser devidamente contextualizado, afinal, como o próprio Sartre explicou na apresentação da obra ao leitor brasileiro, quando ele escreveu aqueles depoimentos “as piores ameaças pairavam sobre Cuba” e ele queria se dirigir “aos franceses, e achava ser suficiente mostrar-lhes o sentido e a própria evolução do movimento revolucionário cubano.”[9]
Sartre advertiu, outrossim, que, “apesar de tudo isso, nada garantia que a nova ordem não viesse a ser esmagada na origem pelo inimigo interno e externo, ou que o movimento, se realmente vitorioso, não perdesse o rumo, ao sabor dos combates que travasse ou devido ao próprio triunfo que obtivesse, cumprindo reconhecer que, em seus primeiros tempos, muitas revoluções mereceram este belo título e o perderam sob o peso esmagador de sua carga.”
Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia, Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS e membro do Coletivo Transforma MP.
[1] Anteriormente intitulado Défense de la France, foi fundado como um jornal underground durante a ocupação alemã e, depois da guerra, emergiu como um jornal de apelo de massa. Rebatizado de France-Soir, foi um dos líderes em circulação do país – e do continente europeu – chegando a 1,5 milhão em 1955. A circulação caiu depois disso, despencando para menos de 90.000 no início do século. Disponível em https://www.britannica.com/topic/France-Soir. Acesso em 20 de agosto de 2020.
[2] Nesta edição, publicada pela Editora do Autor, do Rio de Janeiro, constam, em apêndice, dois artigos de Fernando Sabino e Rubem Braga, publicados originalmente no Jornal do Brasil, em abril, e na revista Senhor, em junho, respectivamente. Segundo nota dos editores, ambos os escritores estiveram em Havana por cinco dias, em março de 1960, acompanhando a comitiva do então deputado federal Jânio Quadros.
[3] Segundo Inderjeet Parmar, professor da Universidade de Londres e presidente da British International Studies Association, “a crise do capitalismo liberal que vivemos hoje possui diversos fatores que se relacionam, todos eles construídos pelo o que ele chama de ´Elite do Conhecimento`, constituída, organizada e comandada pelo poder de corporações gigantes (think tanks), como a Rockefeller, por exemplo.” Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-controle-das-Think-Tanks-nos-Estados-Unidos-e-o-alcance-global-de-suas-redes-de-poder/4/45973. Acesso em 21 de julho de 2020.
[4] JAPPE, Anselm. Crédito à morte: a decomposição do capitalismo e suas críticas. São Paulo: Hedra, 2013, p. 205.
[5] A primeira foi a imposição, em março de 2018, de quotas para as compras de aço brasileiro e a taxação de 10% das compras de alumínio do país. Essas duas medidas tiveram impacto de US$ 1 bilhão por ano, no caso do aço, e de US$ 200 milhões para as vendas de alumínio. Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/07/06/medidas-dos-eua-diminuem-exportacoes-brasileiras-em-us-16-bi-por-ano.htm. Acesso em 19 de agosto de 2020.
[6] Fidel e seus companheiros foram sentenciados originalmente a 15 anos de prisão, mas em maio de 1955, depois de 22 meses na prisão, foram liberados como resultado de uma campanha pública pela anistia.
[7] Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/colunas/claudia-tajes/2020/08/apos-guedes-dizer-que-livro-e-coisa-da-elite-dei-um-inesperado-pulo-social.shtml. Acesso em 19 de agosto de 2020.
[8] HARVEY, David. 17 contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016, p. 261.
[9] Anos depois, em 1971, especialmente após prisão do poeta Heberto Padilla, Sartre romperia com o regime cubano, denunciando ao mundo a prisão do poeta, que acabou sendo solto.