Por Tiago Muniz Cavalcanti no GGN
Começo este breve texto esclarecendo aos amigos leitores que nada, absolutamente nada, do que está aqui escrito tem por finalidade defender ou justificar a invasão russa ao território ucraniano. Deixo claro que, em meu ponto de vista, a violenta incursão da Rússia em seu país vizinho, liderada por um autocrata conservador, antileninista e anticomunista, tem sido criminosa, desproporcional e desnecessária, e poderá levar o mundo a uma intensa militarização cujo maior vencedor será a indústria bélica.
Esse esclarecimento se faz necessário diante da polarização de opiniões que gira em torno do tema. Hoje, qualquer crítica que se faça a um dos lados tem sido interpretada como apoio incondicional ao seu opositor, como se no mundo existissem apenas o bom e o mau, a esquerda e a direita, o branco e o preto. Nessa guerra, no entanto, são muitos os tons de cinza.
Dito isto, sinto-me mais à vontade para analisar a repercussão dos fatos nas denominadas “democracias ocidentais”. Nelas, prevalece uma só versão do conflito: um único vilão, uma única nação capaz de colocar o futuro da humanidade em xeque. É essa atribuição de responsabilidade unidirecional a razão da russofobia, um sentimento de aversão à Rússia e ao povo russo que surgiu na Alemanha nazista e, agora, tem sido vivamente resgatado nos países ocidentais (neo)liberais.
De fato, a Rússia e sua população têm sido castigadas em várias frentes:
No campo cultural e artístico, Disney, Sony, Warner Bros e Paramount suspenderam estreias de filmes no país; festivais de cinema de Cannes, Glasgow e Estocolmo cancelaram a participação de delegações russas e não exibirão filmes produzidos com incentivo financeiro do governo russo; a Bienal de Veneza e o Museu de Grevin de Paris também anunciaram sanções a personalidades e artes russas; os Maestros russos Pavel Sorokin e Valery Gergiev foram demitidos da ópera de Londres e da orquestra filarmônica de Munique, respectivamente.
No campo desportivo, a seleção russa foi oficialmente excluída da Copa do Mundo de futebol; times russos foram banidos de competições internacionais; a Federação Internacional de Tênis suspendeu a participação da Rússia dos torneios internacionais; as paralimpíadas de inverno suspenderam atletas da Rússia; a Fórmula 1 cancelou o GP da Rússia e a Federação Internacional de Automobilismo determinou que pilotos russos corram com bandeira neutra; o piloto russo Nikita Mazepin e seu patrocinador principal, a gigante química Uralkali, tiveram seus contratos rescindidos pela equipe de Fórmula 1 Haas.
Na esfera geopolítica e econômica, a Rússia foi banida do principal sistema bancário internacional (Swift); transações e importações de produtos russos foram suspensas; ativos financeiros foram congelados; dezenas de corporações multinacionais suspenderam relações com o mercado russo, incluindo-se Microsoft, Google, Apple, Youtube, Instagram, Samsung, Netflix, Spotify, Amazon, Fedex, Nike, Adidas, empresas automobilísticas e as maiores operadoras de cartões de crédito Visa e Mastercard.
As relações comunitárias também foram seriamente comprometidas. O russo virou o inimigo. A onda de perseguições está em todo canto: na vizinhança, no trabalho, na universidade. Até mesmo Dostoiévski, um dos maiores escritores e filósofos da história, entrou na onda dos “cancelamentos”: a Universidade Bicocca chegou a suspender um curso sobre a obra do autor.
Os ataques, as sanções, as restrições, que aparentemente se baseiam em causas justas, não tiveram lugar, no entanto, quando as invasões, as guerras e as bombas partiram de países ocidentais (neo)liberais. Os EUA já invadiram países soberanos, já bombardearam populações civis, já financiaram e apoiaram ditaduras protofascistas. Tudo isso, muitas vezes, com o apoio da OTAN, organização que se expande cada vez mais para além do ocidente e finca dezenas de bases militares nas fronteiras da Rússia.
A verdade é que todos esses ataques à Rússia, todas essas sanções geopolíticas e econômicas, representam a vitória ideológica da narrativa do ocidente (neo)liberal. Trata-se de uma narrativa hipócrita e dissimulada, tal qual o comportamento pacifista e humanista dos membros da OTAN e dos EUA, país que já cometeu todos os crimes de guerra anunciados na legislação internacional.
Segundo Hannah Arendt, essa dissimulação da realidade costuma ocorrer por meio das “mentiras organizadas”, retóricas que carecem de validade e estão historicamente presentes em regimes totalitários e se perpetuaram nas democracias liberais. A organised lying nada mais é do que a instrumentalização política de versões deturpadas da realidade, visando a desestabilizar ou mesmo apagar fatos testemunhados e conhecidos, conferindo-lhes uma nova roupagem. Em seu artigo Lying in Politics: Reflections on The Pentagon Papers, Arendt examinou os documentos do Pentágono que justificavam a guerra do Vietnã e demonstrou que a realidade foi manipulada, inclusive mediante o desprezo de fatos históricos e políticos.
A russofobia representa, portanto, a expressão mais fiel do sucesso da mais recente organised lying do neoliberalismo ocidental. E a vitória dessa narrativa, que condena veementemente a Rússia e livra todos os seus “oponentes” ocidentais, conta com um fator determinante: a localização geográfica do território invadido. Em outras palavras, a diferença entre a guerra russa e as guerras americanas, majoritariamente apoiadas pela OTAN, repousa sobretudo na população atacada: enquanto as vítimas dos mísseis russos são europeus brancos, os americanos têm despejado todo o seu arsenal bélico no sul global, isto é, em sociedades distantes da civilização europeia onde predominam uma estrutura de exploração e dominação com arranjos coloniais.
A violência desferida pelas democracias (neo)liberais ocidentais são direcionadas a territórios que estão posicionados geograficamente abaixo do horizonte civilizatório europeu, onde a sociabilidade tem por base o poder arbitrário exercido sobre uma população subalterna, excluída e oprimida composta por não humanos, por aqueles e aquelas que nada são – não são homens, não são mulheres, não são sujeitos de direitos. São apenas colonos e, como tais, ignorados pela modernidade ocidental.
Essas distintas realidades, disjungidas por um fosso colonial que separa o pensamento ético pautado na retórica dos direitos humanos da violência experimentada nas sociedades excluídas, cuja realidade vivenciada pela população oprimida em nada se aproxima dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, justificam a conduta dos países (neo)liberais ocidentais e suas instituições que, encobertos por um disfarce humanista, impõem à Rússia, e somente a ela, o ônus da guerra.
O mundo está em guerra, e não são apenas tanques e mísseis as armas das nações beligerantes: a hipocrisia, o cinismo, a farsa são igualmente artifícios do embate político. É por isso que ser fiel à verdade é, como diz Hannah Arendt, o primeiro passo para a transformação do mundo e para a consagração da paz universal.
Enquanto a organised lying for a tônica da política global, o mundo estará em guerra.
Tiago Muniz Cavalcanti
Procurador do Trabalho, membro do Coletivo Transforma MP. Doutor em Direito.