Para um observador que não tenha chegado agora, ver as pautas do campo progressista, no atual processo eleitoral, causa estranhamento. Explico. O que se propõe é basicamente amor, tolerância, ambiente sustentável, inclusão das minorias, atenção à juventude e vai por aí.
Não que isso não seja relevante: é e muito. Somente a visibilidade trazida pela denúncia de negligências e preconceitos, quaisquer que sejam, pode conduzir ao debate e produzir saídas para uma infinidade de pessoas que sofrem com a discriminação e o esquecimento. Que são impulsionados por sua identificação com determinado grupo, que, no universo simbólico desenhado pelas forças sociais dominantes, é considerado subalterno.
Só que o progressismo não deve circunscrever-se a essa pauta. Porque historicamente, desde que alguns acumularam riqueza com exclusão de outros, os avanços dos arranjos sociais da humanidade são aqueles que representam rupturas, alterações, ou pelo menos uma oscilação do eixo que tem numa ponta o capital e na outra o trabalho. Em outras palavras, são as mudanças das relações entre esses dois extremos que demarcam saltos estruturais da sociedade. E esses saltos, aí sim, podem arrastar consigo, transformando-as, outras espécies de relações, como as existentes entre forças dominantes e minorias. E por último: não há registro de qualquer salto dado apenas com amor.
Significa que, forçosamente, a agenda por relações interpessoais humanizadas precisa levar em conta a formação social dada e, se esta for a de uma sociedade desigual, considerar que a discriminação de minorias estará a serviço da força dominante, que é de base econômica. Em outras palavras, não foi o racismo que inventou o capitalismo; ao contrário, este último serviu-se muito bem da discriminação racial para legitimar sua expansão, pois tudo sempre se justificou – e assim continua a ser – a fim de civilizar, catequisar e democratizar povos ditos primitivos. Essa funcionalidade das minorias vale, é claro, também para o machismo, a homofobia e tantas outras formas de discriminação, todas úteis e, em certa medida, necessárias ao modelo de uma sociedade dividida em classes, onde a régua é a propriedade dos meios produtivos. Nessa lógica, a acumulação de riqueza por alguns precisa da ausência de riqueza pela maioria. É bem simples.
Por esse motivo é que se estranha, no momento eleitoral – que é quando são mais esperadas -, o silêncio de vozes que, em outros tempos, proporiam redução da jornada de trabalho, aumento real do salário, autogestão, reforma tributária de verdade, coletivização do latifúndio improdutivo e outras intervenções no nervo do sistema, aptas a sacudir seus alicerces. Essa pauta fica restrita a dois ou três partidos de pouca expressão eleitoral e não chega a ganhar visibilidade.
Isto parece significar, na verdade, duas apropriações, ambas em favor do status quo: uma, que é a da agenda identitária pelo aparato ideológico dominante, que a transforma em uma variedade de ações, apenas na aparência libertadoras, e úteis para pessoas posicionadas nos estratos sociais mais confortáveis. Florescem dessa maneira um feminismo de boutique, um antirracismo gourmet e outros espetáculos visuais que nem por um instante questionam a estrutura de dominação, que é, primeiro que tudo, entre classes.
A outra apropriação é a do território histórico da esquerda por forças que, assumindo pautas corretas, como a ambiental, a identitária, a da liberalização dos costumes, deixa, contudo, de problematizar as raízes econômicas e patriarcais das dificuldades que se propõem resolver. Essa esquerda foi aos poucos substituindo, na sua visão de mundo, luta de classes por inclusão, imperialismo por globalização, fim da exploração por sustentabilidade. O neoliberalismo agradece. Afanou o queijo dos revolucionários e os domesticou.
Enfim, toda esta arenga só quer alertar para a possibilidade de que o progressismo esteja se deixando seduzir e assim esquecendo o norte que deve ser sua maior inspiração. O problema é que não basta às forças progressistas batalhar pelo clima, pelas baleias e outras batalhas também legítimas, porque isto, sozinho, não chega a ser um projeto de sociedade ou de país. Já tivemos por aqui um tal partido dos aposentados, que, como era de esperar, evaporou. Mas claro, a causa dos aposentados, embora justíssima, não é, por si só, um modelo de sociedade. Quando se lamenta a conciliação de classes que marca sucessivas etapas da história brasileira, não deveria haver surpresa: nossas vanguardas podem, imperceptivelmente e de boa-fé, estar se desviando da rota e navegando rumo ao desconhecido. Ainda bem que a Terra é mesmo redonda.
Plínio Gentil é procurador de Justiça no estado de São Paulo, doutor em Direito (PUC-SP) e em Educação (UFSCar) e professor de Direitos Humanos (PUC-SP) e Direito Penal (Unip). Integrante do Coletivo Transforma MP”.