Recentemente tomei conhecimento de casos em que réus foram condenados, em processos criminais, um a 37, outro a 52 anos de reclusão, por fatos tidos por crimes de estupro de vulnerável. As penas são altíssimas, mesmo considerando a gravidade desses delitos e a natural repulsa que provocam.
Mas, antes que tudo, a fixação de penas descomunais, como vem sendo recorrente, é um sinal dos tempos, que marcam um acirramento do rigor no trato com a criminalidade comum. É como se todo o chamado sistema de justiça criminal se houvesse ajustado para reprimir com inusitada severidade alguns tipos de infrações, ou de infratores. E de nada adiantará ponderar que a perspectiva, na prática, de uma pena perpétua está longe de contribuir para a ressocialização do delinquente…
No caso do estupro de vulnerável, os argumentos a fundamentar tais sanções acumulam-se e misturam-se: desde considerar tudo como estupro, mesmo atos ligeiros e de baixa intensidade, até negar sistematicamente a possibilidade de sua desclassificação para o crime de importunação sexual, passando pela vaga e cansativa alegação de que, em tais ou quais delitos, a palavra da vítima assume valor especial – como se em outros casos o dizer do ofendido valesse menos, numa espécie de escalonamento ao qual ninguém até hoje deu formato. Na verdade, basta faltarem outros elementos que logo se saca esse argumento, o qual dá à vítima o poder de apontar o céu ou o inferno para o acusado. E olhem que essa vítima às vezes é apenas uma criança de sete, nove ou dez anos, sob intensa pressão. É um fundamento, largamente utilizado, que tem a mesma precisão da também cansativa – e equivocada – afirmação de que a palavra de policiais goza de fé pública, como se a lembrança das aulas de direito administrativo na faculdade, explicando o que é e quem tem fé pública, já tivesse desbotado com o passar dos anos. Este argumento é de frequência espantosa em processos de tráfico de entorpecentes, no mais das vezes contra pequenos traficantes, quase a sugerir que a decisão de condenar já estava pronta quando a motivação do julgamento precisou ser redigida. Fora a facilidade com que se admite, junto ao tráfico, o crime de associação, tornando letra morta os dispositivos do Código Penal acerca do concurso de agentes. Na realidade, há nisto uma questão de fundo que é preciso considerar. Vivemos um incremento da desigualdade social, que se aprofundou entre as poucas camadas que
Recentemente tomei conhecimento de casos em que réus foram condenados, em processos criminais, um a 37, outro a 52 anos de reclusão, por fatos tidos por crimes de estupro de vulnerável. As penas são altíssimas, mesmo considerando a gravidade desses delitos e a natural repulsa que provocam.
Mas, antes que tudo, a fixação de penas descomunais, como vem sendo recorrente, é um sinal dos tempos, que marcam um acirramento do rigor no trato com a criminalidade comum. É como se todo o chamado sistema de justiça criminal se houvesse ajustado para reprimir com inusitada severidade alguns tipos de infrações, ou de infratores. E de nada adiantará ponderar que a perspectiva, na prática, de uma pena perpétua está longe de contribuir para a ressocialização do delinquente…
No caso do estupro de vulnerável, os argumentos a fundamentar tais sanções acumulam-se e misturam-se: desde considerar tudo como estupro, mesmo atos ligeiros e de baixa intensidade, até negar sistematicamente a possibilidade de sua desclassificação para o crime de importunação sexual, passando pela vaga e cansativa alegação de que, em tais ou quais delitos, a palavra da vítima assume valor especial – como se em outros casos o dizer do ofendido valesse menos, numa espécie de escalonamento ao qual ninguém até hoje deu formato. Na verdade, basta faltarem outros elementos que logo se saca esse argumento, o qual dá à vítima o poder de apontar o céu ou o inferno para o acusado. E olhem que essa vítima às vezes é apenas uma criança de sete, nove ou dez anos, sob intensa pressão. É um fundamento, largamente utilizado, que tem a mesma precisão da também cansativa – e equivocada – afirmação de que a palavra de policiais goza de fé pública, como se a lembrança das aulas de direito administrativo na faculdade, explicando o que é e quem tem fé pública, já tivesse desbotado com o passar dos anos. Este argumento é de frequência espantosa em processos de tráfico de entorpecentes, no mais das vezes contra pequenos traficantes, quase a sugerir que a decisão de condenar já estava pronta quando a motivação do julgamento precisou ser redigida. Fora a facilidade com que se admite, junto ao tráfico, o crime de associação, tornando letra morta os dispositivos do Código Penal acerca do concurso de agentes. Na realidade, há nisto uma questão de fundo que é preciso considerar. Vivemos um incremento da desigualdade social, que se aprofundou entre as poucas camadas que
ao contrário de manterem uma relação direta entre si, apenas representam os extremos de uma linha pela qual se movimenta a fria engrenagem que consolida e calcifica uma desigualdade estrutural.
Não devoto, obviamente, qualquer simpatia aos estupros, tráficos ou demais expressões da criminalidade recorrente. Apenas vejo na fúria penalizadora dessas infrações, por vezes mediante toscos argumentos, uma reação psíquica e ideológica àquilo que é tomado por desvio, que é próprio do socialmente fracassado, culpado em última instância dessa visão do inferno que se tornou a vida nas grandes cidades de um país periférico.
Plínio Gentil é Procurador de Justiça do MPSP, professor universitário e membro do Coletivo Transforma MP.