Por Roberto Tardelli, no GGN.
Em uma postagem que corre nas redes sociais, em excelente matéria feita pelo UOL, foram trazidas imagens de uma certa guarda rural indígena, uma das mais nefastas passagens do regime militar, que recrutou, sabe-se lá por qual critério, índios de diversas etnias, dando-lhes treinamento militar e a missão de enfrentar os outros índios que fossem sendo encontrados na abertura da Amazônia, feita por mega-obras, como Transamazônica, Perimetral Norte e outros delírios. As imagens são fortíssimas e chocantes, pelo que contém de naturalidade, pelo que contém de aceitação: no desfile de apresentação dessa tropa, para milhares de pessoas comuns, em Belo Horizonte, traziam os índios um outro índio, exibindo-o, pendurado em um pau de arara. Estão lá as imagens inacreditáveis e reais.
Quando Bolsonaro defendeu a tortura, desabridamente, ele o fez sem nenhum receio de perder apoios. Ele fez sem nenhum receio, repito; quando ele defendeu a pena de morte, estava seguro. Foi com orgulho que ele dedicou um seu voto, o mais importante voto de sua medíocre carreira parlamentar, a um torturador abjeto e infame. Dedicou a ele, como se antevisse que seu prestígio aumentaria, se o fizesse. Esteve nadando em águas tépidas quando afirmou que vai relativizar a legítima defesa e vai proteger o policial que mata “bandidos”. Manteve um apartamento funcional, pago pelo contribuinte, para, segundo ele mesmo, “comer gente”.
O erro da ditadura militar, disse em altos brados, foi ter apenas torturado e não assassinado os presos políticos. Acredita que a violência diminuirá, na medida em que todos cidadãos “de bem” pudessem andar armados e ter armas estocadas em suas casas.
Afirmou e jamais desmentiu que educou seus filhos para que não viessem a se casar com negras. A filha que possui, justificou-a como uma fraquejada e disse que não estupraria uma sua colega parlamentar porque ela é feia e por isso sequer mereceria o estupro. Ao referir-se a uma visita a um quilombo, mencionou ter visto quilombolas que sequer para reprodutor serviriam, uma vez que pesavam sete arrobas (unidade de medida destinada ao gado de corte).
Alguém que o fizesse, que dissesse as coisas horrorosas que ele disse ao longo dos anos, jamais poderia sonhar com qualquer cargo eletivo que fosse. Afinal, não conhecemos pessoa alguma que seja capaz de dizer ao filho que a tortura é um meio válido de castigo e que consideraria pendurar seu filho no pau de arara doméstico se ele reprovasse em química, por exemplo.
Todos os nossos amigos e conhecidos que votaram nele abominariam a ideia de estuprar quem quer que fosse, por qualquer motivo que fosse. Muitos possuem verdadeira aversão a armas de fogo. Conheço pessoas a que acompanho há mais de quarenta anos e que sei se tratar de gente pacata, civilizada e solidária.
São pessoas comuns, que incorporaram um ódio incomum e repetem mecanicamente tudo o que ele diz. São pessoas que pagam seus impostos e lutam bravamente para educar seus filhos, para se abrigar sob um teto e para garantir que não se passem necessidades primárias. Amam seus filhos e são, todos, honestíssimos.
O que ocorreu? Por que motivos pessoas que sempre tivemos em alta consideração aderissem, aos milhões, a esse discurso e passassem a compartilhar o ódio e passassem a justificar todas as opressões?
Freud, sempre ele, mata a charada: “Do nosso ponto de vista não é preciso atribuir muita importância ao aparecimento de novas características. Para nós bastaria dizer que, em meio a um grupo, o indivíduo é submetido a condições que lhe permitem desembaraçar das repressões impostas aos seus instintos inconscientes” (Psicologia de Grupo e Análise de egos), sendo certo que aqueles que se perdem nas massas não são homens primitivos mas, antes, homens que demonstram atitudes primitivas, opostas a seu comportamento racional normal.
Bolsonaro conseguiu, à maneira do discurso fascista, criar um maniqueísmo que foi irresistivelmente sedutor, em que as soluções parecem simples e mágicas e desenvolveu magnificamente a criação de um inimigo interno comum. A criação de um inimigo imediatamente forma um time, uma turma, uma massa, que opõe o nós contra eles, sendo que eles, muito mais do que adversários, se tornam inimigos que devem ser abatidos e/ou proscritos. Por isso, as ideias de tortura, aprisionamentos em massa, retirada de direitos, combate a direitos humanos, começam a fazer sentido, com um dado a mais: a liberação desse ódio acabou se revelando profundamente prazerosa.
Odiar um inimigo é licenciado pela moral maniqueísta do fascismo. Trump colocou os imigrantes – frágeis e pobres – na rota da criminalidade americana e Bolsonaro trouxe os bandidos e a necessidade de se ter uma arma para matá-los no centro de política pública de combate à violência.
A liberação do ódio, da pulsão de morte, nos torna ignóbeis e violentos. Faz de nós uma massa de assassinos e faz de qualquer possibilidade de pacificação uma afronta. Ao preconizar que os direitos são os da maioria, Bolsonaro acertou em cheio e revolveu o que havia de mais profundo e pronto para agir, nosso ódio. A minoria desafiadora há de se calar ou de ir embora. Movimentos sociais são células terroristas e quem diz isso são seus filhos (um dos motes do discurso fascista é o enaltecimento da família em potências de dez).
As forças policiais – nesse aspecto, muito mais efetivas do que as próprias Forças Armadas – serão o braço para garantia desse discurso e vão se dirigir aos bolsões de resistência da periferia. Uma religiosidade tacanha servirá para aplacar eventuais dramas de consciência, criando-se uma espécie de tropa de soldados, que colocariam a pátria acima de todos e Deus acima de tudo, um slogan patético, mas eficientíssimo.
A parte da sociedade que partirá para a depuração está formada e pronta para agir e é formada pelo nosso vizinho, nossos amigos, parentes, colegas de trabalho, gente comum, entorpecida pelo ódio, que jogaram para fora, que lançaram no ar. Podemos novamente ser machos, bravos, estúpidos, violentos, desde que sejamos honestos, do ponto de vista patrimonial, desde que sejamos escalados em nome do Pai Maior, Bolsonaro.
O prazer de ser cruel está livre e caminha pelas ruas. Ocorre que esse prazer, evidentemente sexualizado, irá cobrar seus tributos e as minorias eleitas, a comunidade LGBTI, os comunistas, seja lá o que for isso, os negros, os periféricos, enfim, estarão na alça de mira, literalmente.
Nesse quadro, que nos remete a 1937/1938, a pergunta que se há de fazer é qual será o papel exercido pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário, na medida em que boa parte de seus integrantes adotaram o discurso bolsonariano, exatamente na concepção freudiana de pessoas indiscutivelmente honestas, perdidas e perplexas, dispostas a aceitarem o discurso maniqueísta como libertador.
No vídeo a que me referi no início desse texto, havia centenas ou milhares de pessoas, em um desfile macabro, em que índios aculturados se tornaram caçadores de outros índios e de povos da mata e nele há uma sensação aterrorizadora: a naturalização da violência, tudo se passando, sem que as pessoas se dessem conta de que o desfile era feito com alguém que estava em um pau de arara, como se isso fosse algo a exibir com orgulho à população. O que seria desvalor se tornou algo de se orgulhar. Havia autoridades, no tradicional palanque delas, e não se viu ninguém determinar prontamente para que aquela exibição horrorosa parasse ali. Não, seguiu-se o desfile dos índios convocados pelo exército e que traziam um outro índio, amarrado em um pau de arara.
Gilberto Gil disse que nos barracos da cidade, ninguém mais tem ilusão do Poder da autoridade. Morro de medo das autoridades dos palanques das autoridades. Esse é meu maior receio, uma vez que o Ministério Público, ao menos, na prática diária não se escandaliza com a superlotação carcerária e muitos de seus integrantes a negam, atribuindo-a a uma inércia de governantes que simplesmente deixaram de construir cadeias bastantes à demanda. Chego a pensar que existe um certo prazer em demonstrar inflexibilidade, em se demonstrar que qualquer que venha a ser a punição pelo crime, ela é em si mesma insuficiente e não me surpreenderia se a maioria fosse a favor da pena de morte.
Na visão freudiana, Bolsonaro conseguiu incorporar-se à figura de um grande pai, a ser temido e amado e ele liberou esse ódio, que tentávamos manter trancado porque sabemos todos de sua destrutividade. O ódio é um tsunami, que arrasta tudo e traz consigo uma enorme energia. De ódio se vive e o prazer que ele traz é de causar dependência.
Por isso, naturalizamos tão facilmente a violência, a miséria, a barbárie. Somente uma tragédia deterá esse ódio, uma tragédia tão grande que faça despertar as pessoas, que as faça ver que o ódio pode ser prazeroso, mas que destruirá o que estiver à nossa volta e exigirá energia muitas vezes maior para nossa reconstrução. Os alemães que o digam, até hoje recolhem os cacos históricos, com a enorme virtude de não terem se ocultado, se omitido e silenciado. Por enfrentar os erros históricos, eles tem menores chances de repeti-los.
Nossa atividade odienta nada construirá e nenhum motivo haverá para se ter o mais tênue otimismo, não se podendo transformar o futuro numa ola de estádio de futebol. O que temos à frente é o que de pior poderíamos ter: um governo regido pelo ódio.
Os que se arrependerem, que escrevam oportunamente as memórias desse arrependimento.
Roberto Tardelli é membro do Transforma MP. Advogado e Procurador de Justiça Aposentado.
Ilustração: João Montanaro, para a Folha de S. Paulo (goo.gl/LVCEGE)