Mário Henrique Cardoso Caixeta no GGN
Os escritórios de acusação do Ministério Público sempre foram ávidos por devorar o “prato feito” trazido pela polícia judiciária. Antes, o PF, denominação dada ao inquérito policial neste pequeno texto, chegava encadernado; hoje, chega em formato digital. Em comum aos formatos – um do “tempo do Ronca”; o outro, do “tempo do Tik Tok” -, na quase totalidade das vezes a peça principal do feito é o auto de prisão em flagrante (claro que isso é uma opção do estado brasileiro na gerência do sistema punitivo, o que poderá ser objeto de assunto para o dia de Tiradentes).
Então, com essa avidez, sempre se primou pelo recrutamento de membros do Ministério Público a partir da aplicação, nas provas práticas, de questão consistente na elaboração de denúncia. Uma boa narrativa, um juízo perfeito de tipicidade, a argúcia ao escapar de “pegadinhas” – como a menção a um crime prescrito na questão – etc., e a suposta – e inexistente – neutralidade na aplicação do direito positivo, são o carimbo no passaporte para a aprovação no disputadíssimo concurso para ingresso na carreira do MP (que paga bem, apesar de alguns acharem o subsídio um “miserê”!).
Feita a peça a partir do PF, no conforto do gabinete, estando em perfeita – ou quase perfeita – ordem a conjugação verbal e outras perfumarias, ualá!, tem-se o exercício da titularidade da ação penal! Mas… não é bem assim que as coisas se movem, caríssimo e diligente titular da ação penal! Quem de fato diz o fato é a polícia e, na quase totalidade das vezes, a PM.
Se a autorização para ingresso em domicílio, na quebrada, foi dada pelo coturno 44, basta constar no papel que foi a gentil avó do acusado quem a deu; se da intervenção policial adveio a morte do “meliante”, a hipótese certa é de legítima defesa. Infelizmente, essa é a regra.
Pode até ser que os fatos se passaram conforme consta no PF! Mas, e se a coisa não aconteceu assim, é possível contrastar a narrativa asfixiante trazida unilateralmente pelos agentes do Estado, mormente quando por eles há notícia de violação de direitos fundamentais? Para a maioria dos casos, maciça maioria, a resposta é não, lamentavelmente! E o MP nessa, como é que fica?
Em um sistema que naturaliza a violência contra pessoas pretas, pobres e da periferia (a regra), as tratando como peças descartáveis e sobressalentes; em que a legalidade é mero detalhe, é mesmo muito difícil não engolir o PF tal qual chegou! É o sistema, não é?
Mas é justamente aí que nasce a relevância do Ministério Público enquanto titular da ação penal e responsável pelo controle externo da atividade policial! Desfazer o PF, “descozinhar” os ingredientes. Para tanto, tentar entender, minimamente, a complexidade de nossa matéria prima, assumindo que o Brasil é racista, preconceituoso, perverso e violento é um primeiro passo. Outro passo muito importante é assumir que a tortura e a política de extermínio são estruturais e que elas fazem parte, desde o nascimento, da vida de muitos escolhidos pela “má sorte”. Colocando essas duas lentes já nos veremos, primeiro, como parte do problema; e, depois, como agentes de transformação.
Assim, no plano das ações concretas, o agir do MP deve se voltar à eficiência do agir policial, que deve se pautar não na eliminação do “inimigo”, mas sim na proteção de direitos e garantias fundamentais. Só há eficiência do agir policial se os direitos individuais foram respeitados! Nessa linha, dentre as ações possíveis, a implantação de câmaras na lapela das fardas, a educação para o respeito aos direitos humanos nas academias, o aperfeiçoamento e fortalecimento dos órgãos de controle interno (corregedorias e ouvidorias), uma verdadeira preocupação com as condições de trabalho a que são submetidos os policiais, uma rígida verificação da legalidade e da legitimidade do agir policial narrado no PF, são ações concretas, tendentes ao efetivo exercício do controle externo da atividade policial, para o legítimo exercício da titularidade da ação penal.
Esse o papel do MP!
Se nos bastamos com o PF, como ainda estamos teimando em fazer, há muito azedo e tóxico e que tem trazido péssimos resultados, logo a instituição, com missões tão relevantes, cara e onerosa à sociedade, será prato indesejado na ceia de Natal da democracia brasileira.
Mário Henrique Cardoso Caixeta, promotor de justiça no Ministério Público do Estado de Goiás desde agosto de 2000. Membro do Coletivo Transforma MP desde 2022.
Bacharel em Direito pela UFU – 2000
Mestre em História pela PUC – Goiás na linha de pesquisa Cultura e Poder (2009).
Especialista em Criminologia e Política Criminal pela Anhaguera-Uniderp (2015).
Especialista em Direito Processual Civil: O Novo CPC em Perspectiva e as Tutelas Coletivas como Instrumentos de Defesa da Cidadania – Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul (2018).