O etnocídio é um elemento constante na relação entre o Estado brasileiro e as populações indígenas. Como afirmado por Eduardo Viveiros de Castro, o etnocídio é a “essência mesma” dessa relação, e que se estende de 1500 até os dias atuais. O diagnóstico, ao mesmo tempo desconfortável e exato, desafia a sociedade brasileira contemporânea. Ainda segundo Viveiros de Castro, pode ser considerada etnocida toda ação política que resulte na “destruição do modo de vida das comunidades [indígenas], ou constitua grave ameaça (ação com potencial etnocida) à continuidade desse modo de vida”.
Como o próprio autor ressalva, houve sempre práticas de resistência a essas ações etnocidas. Muitas delas não tiveram repercussão institucional, mas se inscreveram na história da presença dos povos indígenas no Brasil. Além disso, houve um processo político que representou uma transformação estrutural na abordagem da questão indígena. Para compreender esse processo, é preciso voltar um pouco no tempo.
35 anos atrás, no dia 1º de fevereiro de 1987, o Brasil iniciava uma jornada de institucionalização e consolidação de sua jovem democracia. Era a sessão de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, que havia sido convocada pela Emenda Constitucional nº 26/85. Num percurso acidentado e permeado por questões ligadas à dinâmica partidária da época, a Constituinte chegou a um texto final que foi promulgado em 5 de outubro de 1988.
E aquele texto seria revolucionário para a questão indígena. Revertendo uma orientação que vinha desde os tempos do Brasil Colônia, o ordenamento jurídico passou a reconhecer aos povos indígenas, com a vigência da Constituição de 1988, “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231).
Essa mudança de orientação possui uma história. E ela foi escrita pelos próprios povos indígenas, que tomaram parte de forma expressiva e constante no processo constituinte, apresentando demandas e reivindicando direitos. Podemos dizer que os indígenas se fizeram presentes desde o início dos trabalhos constituintes. Eles figuram entre os primeiros atores sociais a perceber a importância daquela oportunidade histórica e, exatamente por isso, conseguiram uma mobilização efetiva, que influenciou a redação da Constituição desde as audiências iniciais nas subcomissões temáticas até as derradeiras votações no Plenário e ajustes de redação final.
Um episódio específico, ocorrido na fase de discussão do texto na Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, é bastante revelador acerca da profundidade das mudanças que seriam incorporadas na Constituição e da presença de práticas etnocidas na história brasileira. No dia 5 de maio de 1987, várias lideranças indígenas estiveram na subcomissão e deram seu testemunho. Entre eles se destaca o pronunciamento de Ailton Krenak, na época um jovem líder do povo krenak, que vive na região do Rio Doce, Minas Gerais.
Toda a manifestação de Ailton Krenak se baseia na oposição entre guerra e paz. No seu entendimento, aquela Assembleia Constituinte representava uma oportunidade para celebração de um tratado de paz entre os brancos e os povos originários brasileiros. É importante frisar que Krenak não estava propondo uma metáfora. Seu argumento tinha fundamento histórico: o povo krenak descende dos botocudos. Em 1808, uma carta régia emitida por D. João VI, à época príncipe regente do Reino de Portugal, ordenava que se iniciasse uma “guerra ofensiva” contra os botocudos, classificados como “antropófagos” e “violentos”. Na carta régia D. João VI determina que os exércitos reais tomem posse das habitações dos botocudos, a partir da “superioridade de minhas reais armas”, que deveriam infligir um “justo terror”, com a finalidade de fazer com que os indígenas se sujeitassem “ao doce jugo das leis” e que se tornassem “vassalos úteis”. A carta régia, emitida no dia 13 de maio de 1808, está disponível no portal da Câmara dos Deputados.
Exatamente por essa razão, Ailton Krenak insiste na relação entre guerra e paz: “O Estado brasileiro trata as populações indígenas como inimigos de guerra. Somos remanescentes de um processo de extermínio, ainda não foi assinado um tratado de paz entre o Estado brasileiro e as populações indígenas” (Ata da 11ª reunião ordinária da Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias, Diário da Assembleia Nacional Constituinte, 21.5.1987, p. 150).
Krenak demonstra, ainda, sensibilidade e percepção acerca do que representava aquela audiência pública. Ela era parte de um processo amplo de escrita de um documento constitucional fundante, com capacidade de redefinir as relações entre brancos e povos indígenas no Brasil. Essa transformação significaria um tratado de paz dotado de eficácia e caráter definitivo: “assinem um tratado de paz com o povo indígena, porque as gerações futuras não terão que ouvir uma acusação de terem sujado as mãos no sangue do povo indígena. Reconheçam os nossos direitos, respeitem os nossos direitos e o nosso povo (…) É uma tarefa da Nação brasileira, de todas as pessoas que habitam este País, de estancar esta sangria, de fazer um tratado de paz com o povo indígena” (Ata da 11ª reunião ordinária, p. 152).
Ao contrário de vários outros temas da Constituinte, que sofreram muitas modificações e supressões entre a redação do anteprojeto nas subcomissões e comissões temáticas e as votações no Plenário, o capítulo sobre populações indígenas pouco se alterou: as inovações já estavam no anteprojeto da subcomissão e foram, em sua parte principal, conservadas na redação final do texto.
Porém, como sabemos, nenhuma norma jurídica produz efeitos de forma automática e imediata. É essencial, para o direito moderno, o elemento institucional. Um texto constitucional precisa ser acompanhado de políticas públicas e ser reconhecido por câmaras legislativas e tribunais.
Nem sempre é um processo simples. Em outros textos publicados neste espaço, temos demonstrado a sucessão de práticas desconstituintes no Brasil contemporâneo, a afetar temas centrais da Constituição de 1988, como a tutela do meio ambiente, a proteção do trabalho, a importância da educação, das políticas de reparação e memória.
O mesmo impulso de destruição do núcleo da Constituição de 1988 se faz sentir em relação aos povos indígenas. Como bem assinalado por Viveiros de Castro, as ameaças provêm de todos os poderes estabelecidos: o Executivo abandona toda e qualquer política responsável e estimula abertamente a ocupação ilegal e atividades de mineração em terras indígenas (cf. PL 191/2020) e o Legislativo discute projetos de lei que visam a relativizar normas de licenciamento ambiental (PL 3729/2004) e a exigir a presença, em 5 de outubro de 1988, dos indígenas nas terras por eles reivindicadas (PL 490/2007). É o chamado “marco temporal”, conceito que se originou no Judiciário, especificamente no Supremo Tribunal Federal, na tarefa de construir o arcabouço jurisprudencial alusivo à posse e usufruto das terras indígenas.
Trata-se, na verdade, de uma negação da Constituição, de uma prática desconstituinte. Sob a justificativa de estabelecer uma suposta “segurança jurídica” ao tema, o STF, em algumas decisões proferidas por turmas (órgãos fracionários), acaba por estabelecer uma exigência que não está no texto constitucional: a prova da presença, ao tempo da promulgação da Constituição, dos indígenas nas terras reivindicadas. Em outras palavras, essa interpretação joga a Constituição contra a Constituição. A matéria teve sua apreciação interrompida no Plenário do STF por pedido de vista regimental, e continua sem definição à vista.
Vale retomar a definição de etnocídio proposta por Viveiros de Castro. A negativa de exercício dos direitos estabelecidos na Constituição revela a tendência etnocida do Estado brasileiro. Há evidente ameaça às formas de vida dos povos indígenas quando são impostas condições de difícil comprovação, que não estão expressas no texto constitucional e que ignoram o fato de que os povos indígenas vêm sendo submetidos ao esbulho da posse de suas terras tradicionais, prática bem anterior à promulgação da Constituição de 1988, que procurou reverter essa situação.
Há várias formas de praticar etnocídio. A atual, que ocorre diante dos nossos olhos, é por intermédio de práticas desconstituintes levadas a efeito pelas instituições que deveriam zelar pela Constituição.
*Cristiano Paixão é Subprocurador-Geral do Trabalho. Integrante do Coletivo Transforma MP e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD). Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Foi professor visitante nas universidades de Macerata e Sevilla. Foi Conselheiro da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (2012-2016) e Coordenador de Relações Institucionais da Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da UnB. Coordenador dos grupos de pesquisa “Percursos, Narrativas, Fragmentos: História do Direito e do Constitucionalismo” e “Eixos, planos,ficções: grupo brasiliense de direito e arte” (CNPq/UnB).