Pior cego(a) é o que não quer ver?

Por Daniela Campos de Abreu Serra, no GGN.

Semana passada fui surpreendida por um artigo publicado no blog do Fausto Macedo no Estadão intitulado “‘cota-calcinha’, um presente para as incompetentes”(1), assinado por uma Promotora de Justiça integrante do MPDFT. Em alguns grupos das redes sociais, o texto foi extremamente criticado e várias Colegas, inclusive se manifestando como contrárias às “cotas”, criticaram o texto pela comunicação violenta empregada e utilização de termos considerados inadequados para tratar do tema, como por exemplo “perereca”. Confesso que não me ative quanto ao estilo da comunicação e, como sempre, no meu melhor estilo Voltaire, “não concordo com o que dizes, mas defendo até a morte o direito de o dizeres”(2).

Nesta 2a feira (20/08/2018), novamente o tema foi repercutido pelo Estadão, dessa vez para divulgar a notícia intitulada “Mais de 100 promotoras e procuradoras repudiam cotas femininas no Ministério Público”(3), em que um manifesto assinado por 103 integrantes do Ministério Público (pelo que tem sido divulgado nas redes sociais, ainda aberto para novas adesões), “requerem ao CNMP que não aprovem esse tipo de cota, eminentemente discriminatória e com potencial criador de rótulos, que ao contrário de nos beneficiar, só representará um grave retrocesso na nossa história profissional, que sempre foi e deverá ser pautada pelo mérito” (grifei).

Tal pleito, apesar de não claramente explicado no referido Manifesto publicado no Estadão, decorre da proposta da Recomendação em trâmite no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), proposta pelos conselheiros Sebastião Caixeta e Valter Shuenquener, este último, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais (CDDF/CNMP), com vistas a “recomendar a todos os ramos e as unidades do Ministério Público brasileiro que efetivem a igualdade de gênero no âmbito institucional, assegurando percentual mínimo de participação feminina nos cargos de mando, decisão, chefia e assessoramento, bem como, em eventos institucionais”.

Aliás, também não claramente explicado em tal manifestação, que a proposta não surgiu do “nada”, nem exclusivamente da vontade dos referidos conselheiros, pois, ela foi anunciada como uma estratégia de enfrentamento da desigualdade de gênero intrainstitucional no Ministério Público brasileiro. E a existência desta desigualdade não são palavras ao vento proferidas por algumas pessoas, são dados objetivos e números oficiais encaminhados por cada um dos ramos e unidades do MP brasileiro para o CNMP, condensados no relatório Cenários: reflexão, pesquisa e realidade(4).

O Cenários do CNMP descreve e escancara a desigualdade de gênero do Ministério Público brasileiro em mais de 200 páginas. Para se ter uma ideia do quanto essa desigualdade é grave, “os números apresentados mostram, por exemplo, que o Ministério Público brasileiro é, atualmente, composto por 5.114 membros do sexo feminino e 7.897 membros do sexo masculino, o que revela a proporção de 39% de mulheres para 61% de homens. Conforme os dados colhidos no projeto, desde a Constituição de 1988, 52 mulheres e 240 homens ocuparam cargos de procurador-geral, o que representa cerca de 18% de lideranças femininas versus 82% de lideranças masculinas no MP”(5).

A se pautar pela premissa apresentada no Manifesto quanto ao mérito ser suficiente para que as mulheres consigam exercer os espaços de poder no MP brasileiro, considerando os números apresentados no Cenários do CNMP, a conclusão obrigatória é que a maioria das mulheres membros do MP brasileiro não tem mérito para ocupar os espaços de poder.

E é neste ponto que discordo frontalmente da manifestação das Colegas. Não tenho dados de pesquisa, como é o caso do Cenários do CNMP, mas tenho a vivência e convivência com dezenas de Promotoras e Procuradoras de Justiça, Procuradoras da República, do Trabalho, do MP de Contas e Militar, que transbordam méritos e plenas condições de exercer todos os cargos de poder do Ministério Público brasileiro.

Importante consignar que o fato de respeitar a liberdade de expressão, não impede a minha capacidade crítica de refletir sobre o manifestado e, exercendo o mesmo direito, expressar meus sentimentos. E disso que eu quero falar: sentimentos. Quando li o artigo “cota-calcinha” e depois o Manifesto, senti um nó na garganta pela ausência absoluta de informações concretas sobre a questão de gênero intrainstitucional do Ministério Público brasileiro, razão pela qual novamente resolvi escrever sobre o tema: para dar visibilidade aos dados e promover reflexão e debate. Não sou dona da verdade, “só sei que nada sei” e, no melhor espírito socrático de ética e de lógica, penso que os números do Cenários do CNMP não podem ser desprezados quando se trata do assunto.

A questão da igualdade de gênero é um assunto complexo e demanda análise a partir de dados objetivos, sob pena do “achismo” conduzir a reflexões equivocadas. E como sempre ressalto, quando tenho a oportunidade de manifestar, sou uma mulher e membro do Ministério Público brasileiro que não enxergava o machismo institucional. “Ré confessa”, no nosso jargão cotidiano. Quando fui provocada a escrever sobre o assunto para uma tese a ser apresentada no Congresso Nacional da CONAMP de 2017, quase recusei porque acreditava na premissa de que “as mulheres não querem participar porque preferem cuidar da casa e dos filhos”, mas como fiquei intrigada e o objetivo era coletar números para refletir sobre o tema, resolvi aceitar. E desde então tem sido um despertar constante para vários aspectos da questão acerca da igualdade de gênero intrainstitucional do Ministério Público.

Inclusive, também já fui resistente à ideia de cotas, mas após muita leitura, reflexão e diálogos, passei a perceber as ações afirmativas como uma estratégia necessária para enfrentamento de todos os tipos de desigualdades históricas ainda tão presentes no Brasil e, como o Ministério Público faz parte da sociedade brasileira, também presentes no MP. Precisamos nos reconhecer elitistas, racistas e machistas para pela autocrítica criarmos a força motriz necessária para o enfrentamento dessas desigualdades, externa e internamente.

Àqueles que partem da premissa de que na questão de gênero o decorrer do tempo por si só será suficiente para superar a desigualdade histórica, já que com o aumento das mulheres no mercado de trabalho, cresce o número de mulheres aprovadas nos concursos públicos, também é necessário esclarecer que os números levam a outro raciocínio.

Como ressaltado na tese apresentada: “outro aspecto importante é que, apesar de ter havido um aumento no número de mulheres que acessam o ensino universitário, esse avanço não se reflete no ingresso de novos membros nos MPEs. O levantamento dos dados dos aprovados no último concurso de cada um dos Estados mostra que, nos mais recentes certames para seleção de Promotores de Justiça, tiveram êxito 544 mulheres frente a 1.216 homens, o que traz uma média nacional de aprovações de 31% de mulheres contra 69% de homens. Tal cenário levanta o preocupante quadro de que, a se manter essa tendência, a participação feminina nos Ministérios Públicos do Brasil será reduzida, tendo em vista a taxa de aprovação masculina (69%) ser superior à proporção de homens já presentes nos quadros dos Ministérios Públicos do Brasil (59%). A conclusão evidente é que, em termos de composição feminina nos quadros ministeriais, está-se retrocedendo” (6).

Os números com os quais trabalhamos durante a construção da tese para o Congresso da CONAMP em 2017 e, posteriormente, os números do Cenários do CNMP, permitem a “quem quiser ver”, enxergar a desigualdade de gênero dos ramos e unidades do Ministério Público brasileiro. Agora, tal como concluímos na tese: “José Saramago, em frase já conhecida da herança literária mundial, chama todos a olharem para as cegueiras sociais e convoca os que se preocupam com a construção de um mundo em bases mais igualitárias. Provoca o sociólogo português, em ‘Ensaio sobre a cegueira’: ‘Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara’. Este trabalho dá condições de ver aos que podem olhar. Cabe, a partir de então, reparar”(6).

Por tudo, imperioso concluir que “recomendar a todos os ramos e as unidades do Ministério Público brasileiro que efetivem a igualdade de gênero no âmbito institucional, assegurando percentual mínimo de participação feminina nos cargos de mando, decisão, chefia e assessoramento, bem como, em eventos institucionais”, é tão somente dar concretude ao artigo 3º, inciso III, da Constituição Federal, um dos objetivos fundamentais da República brasileira, na medida em que é uma medida concreta para reduzir essa desigualdade social do Ministério Público brasileiro, não sendo lógico que tal seja compreendido como privilégio. Para tanto, parto da premissa de que centenas de mulheres do Ministério Público brasileiro possuem muito mais do que mérito para exercer os cargos de poder da nossa instituição. Possuem diversos outros atributos tipicamente femininos que são necessários para o fortalecimento da legitimidade social do Ministério Público, tais como, cooperação, flexibilidade, sensibilidade, diálogo, empatia, entre outros.

Daniela Campos de Abreu Serra é Promotora de Justiça (MPMG), Mestre em Serviço Social pela UNESP.


1- Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/cota-calcinha-um-presente-para-as-incompetentes/

2- Disponível em https://kdfrases.com/frase/118617

3- Disponível em https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/mais-de-100-promotoras-e-procuradoras-repudiam-cotas-femininas-no-ministerio-publico/

4- Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/images/20180625_CENARIOS_DE_GENERO_v.FINAL_3.1_1.pdf

5- Disponível em http://www.cnmp.mp.br/portal/todas-as-noticias/11327-cnmp-apresenta-dados-relativos-a-desigualdade-de-genero-no-ministerio-publico

6- Disponível em https://congressonacional2017.ammp.org.br/public/arquivos/teses/55.pdf

 

 

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