O direito penal brasileiro parece nunca ter encontrado maiores problemas na limitação legal da liberdade de expressão (inciso IV do artigo 5º da CR). Delitos cometidos por palavras sempre constituíram ações possíveis de punição sem maiores discussões. Ameaças, coações, extorsões, ofensas, falsidades, desacatos, apologias, incitações e tantos outros delitos integram uma parte substancial de formas típicas puníveis, realizadas por palavras e discursos, que não são permitidas pelo exercício do direito constitucional de liberdade de expressão. Mesmo a condição de partícipe de um delito, como no caso da instigação, realizada em locais privados, não integra qualquer direito de liberdade de expressão.
As publicações de charges religiosas e as respostas recrudescedoras do fundamentalismo religioso reacenderam, contudo, antigas discussões sobre os limites à liberdade de expressão em países democráticos.[1] Recentemente, aqui no Brasil, o uso do entulho autoritário da Lei de Segurança Nacional, felizmente revogada pela Lei 14.197/21, reavivou o problema diante das tentativas de criminalização de ofensas à honra do atual Presidente da República e das ameaças e coações feitas por apoiadores deste político contra ministros do STF e contra as instituições do Estado Democrático de Direito. Ressurgiu o debate, então, também sobre os chamados “Crimes contra o Estado de Direito”, notadamente quando realizado de forma discursiva.
De um lado, aparentemente mais liberal, alguns sustentam uma progressiva extensão e prevalência da liberdade de expressão sobre outros direitos constitucionais, o que permitiria tolerar dos delitos de expressão até mesmo quando direcionados ao regime democrático; de outro lado, mediante fórmulas de equilíbrio entre princípios constitucionais colidentes, outros aceitam algumas limitações excepcionais ao exercício da liberdade de expressão, em especial as manifestações de ódio contra algumas minorias ou mesmo contra as instituições democráticas vigentes.
Esses ataques discursivos, constitutivos de desprezo ou intolerância contra certos valores e instituições que devem proteger grupos minoritários, quando motivadas por preconceito ligados à ideologia, etnia, religião, gênero, deficiência física ou mental e orientação sexual, não se limitam apenas aos aspectos jurídicos de raiz constitucional, que quase sempre são solucionados por ponderações de bens (Gu?terabwa?gung) ou pela proporcionalidade (Verhältnismäßigkeitprinzip). Antes de tudo, o tema trata de um problema eminentemente penal, seja porque se relaciona diretamente com delitos de ações cometidos por palavras, seja porque se costuma responder a eles por meio de penas criminais, é dizer, com coerção estatal não reparadora e nem suspensiva-administrativa de um processo lesivo em curso.
De maneira bastante didática, ALAOR LEITE e ADRIANO TEIXEIRA distinguiram tre?s ni?veis distintos de protec?a?o, individual, grupal e institucional: primeiro, o ni?vel individual que diz com a honra de pessoas naturais; segundo, o ni?vel grupal que se relaciona aos agrupamentos humanos mais vulnera?veis; terceiro, o ni?vel institucional cuida do funcionamento de instituic?o?es fundamentais da democracia.[2] Há exemplos importantes desses níveis. O nível individual pode ser visto no caso do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), objeto do INQ 4781, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, que divulgou vídeo com explícitas ofensas e ameaças a ministros do STF. O nível grupal vem retratado no caso Ellwanger, analisado pelo STF no HC 82.424/RS, de relatoria do Ministro Maurício Corrêa, em que o autor de um livro considerado antissemita foi condenado pela prática de crime de racismo (artigo 20 da Lei 7.716/1989).[3] Há ainda outro caso bastante conhecido, tratado no Inquérito 3932 e na Petição 5243, no qual o STF acolheu denúncia promovida pelo MPF e queixa-crime promovida pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS), para submeter o então deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ) a processo penal por incitação ao crime de estupro e crime de injúria, quando teria dito, em dezembro de 2014, durante discurso no Plenário da Câmara dos Deputados, que a referida deputada “não merecia ser estuprada” pois seria “muito feia”.[4] Por fim, o ni?vel institucional está presente caso de Roberto Jefferson, presidente do PTB, no âmbito do INQ 4774, objeto da PET 9.844, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, que num vi?deo e em entrevistas faz ofensas, discursos de o?dio, homofo?bicos e incita a? viole?ncia contra ministros do STF. O próprio Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, como é de conhecimento geral, em falas diante de apoiadores no dia 7 de setembro de 2021, fez ameaças golpistas contra o STF e inclusive exortou desobediência a decisões judiciais. Atacou, portanto, abertamente a independência de um dos poderes da República.
Em casos como esses, frequentes em tempos ásperos, é fundamental determinar, com exatidão, os limites e a extensão das normas permissivas da ação, que configuram o exercício do direito à liberdade de expressão. A democracia exige a crítica pública, a crítica política, a crítica ideológica e, portanto, o discurso livre. Afinal, como afirmava Rosa Luxemburgo, “Freiheit ist immer Freiheit der Andersdenkenden”: a liberdade é sempre a liberdade de pensar diferente. Por isso, sempre que os discursos estiverem baseados, além da liberdade de expressão, em outros direitos fundamentais de igual hierarquia, como o direito de liberdade religiosa, liberdade de imprensa etc., não se pode entender como presente qualquer lesão ao bem jurídico tutelado. É o que aconteceu, por exemplo, na AC 4158, em que o STF, no julgamento de mérito do RHC 134.682, de relatoria do Ministro Edson Fachin, por maioria, trancou a ação penal, em que um padre que teria escrito um livro contendo afirmações discriminatórias à religião espírita e às religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. É exatamente o que se deu no caso do professor e colunista da Folha de S. Paulo, Conrado Hübner, em que houve correta rejeição da queixa-crime apresentada pelo Procurador-Geral da República, Augusto Aras, por críticas aviltantes (Schma?hkritik) feitas em redes sociais. Por isso, aparte o permissivo legal que expressamente declara que não configuram os delitos de injúria ou difamação as manifestações da crítica literária, artística ou científica (art. 141, II, do CP), ainda que duras ou desagradáveis, a doutrina penal tem afastado o dolo quando o que existe é intenção de narrar algum acontecimento ou mesmo exercer uma crítica dura, especialmente direcionada aos homens públicos. Aliás, por essa razão a dogmática penal exige o que chama de “elemento subjetivo diferente do dolo”.[5] Nesse sentido é a própria jurisprudência do STF (RHC 81.750/SP, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe de 09-08-2007).
Mas isso não resolve as demais situações dos níveis individual, grupal e institucional, antes mencionadas, porque elas, como ações discursivas odiosas de ameaças, coações, ofensas e incitações, transcendem os conflitos individuais. Nesses casos, a razão da punição está necessidade de evitar os efeitos perversos que o método odioso de agressão tem na configuração de uma sociedade democrática e na dignidade dos indivíduos que integram as coletividades vítimas. O traço definidor reside na capacidade de atentar contra bens jurídicos relevantes que protegem, direta ou indiretamente, a própria dignidade humana.[6] Por um lado, nas situações dos níveis individual e grupal, porque a ação lesiona a dignidade pessoal (no sentido de condição de existência do indivíduo e, portanto, da própria ordem jurídica) e da função social destinada à pessoa.[7] Por outro lado, nas situações do nível institucional, porque a ação fragiliza as normas penais que buscam assegurar aos cidadãos, por meio das instituições que as aplicam, uma coexistência livre e pacífica, garantindo, ao mesmo tempo, o respeito aos direitos humanos. Não se trata, portanto, de proteção de meros substratos de sentido de natureza ideal, mas sim entidades reais, dado que são apreensíveis pelos sentidos e constituem “pressupostos imprescindíveis a vida social”, como dados ou finalidades necessárias para o livre desenvolvimento dos indivíduos ou para o funcionamento dos sistema estatal erigidos para consecução de tal fim.[8]
Poder-se-ia pensar que tais proteções seriam apenas expressões de normas jurídicas simbólicas e que, por isso mesmo, não protegeriam bens jurídicos penais. Poder-se-ia pensar que muitas dessas situações sequer há incitação direta à violência, tal como prevê, por exemplo, a Recomendação 97 do Conselho da Europa no que se refere ao ódio racial, xenofobia, antissemitismo e outras formas de intolerância (SSTEDH Gündüz c. Turquia de 4 de dezembro de 2003, § 41; Erbakan c. Turquia, de 6 de julho de 2006). Entretanto, os crimes discursivos em todas as modalidades não se caracterizam pelas meras negativas de fatos históricos nem são visíveis nas contribuições racionais para o debate livre de ideias, mesmo quando desfavoráveis às minorias. O espaço legítimo de atuação do direito penal está na concentrado nos discursos proferidos em situações que cumpram os seguintes requisitos: 1. Abuso de direito oriundo da posição de poder hegemônico do falante; 2. Espaço amplo de difusão de ideias aptas ao enfraquecimento ou destruição de grupos historicamente vitimizados ou da própria democracia; 3. Existência de um “sobredireito” não igualado pela somatória de outros direitos fundamentais; 4. Aproveitamento da fragilidade da audiência para disseminação das ideias de ódio contra grupos minoritários ou contra as instituições democráticas e seus agentes.[9] Assim, fora destas circunstâncias concretas que são aptas para colocar em perigo ou lesionar lesão de bens jurídicos fundamentais, os demais discursos são, sim, legítimos, mesmo quando equivocados ou historicamente discutíveis. São legítimos quando abarcam a mera negação de fatos históricos, quando são contribuições racionais para o debate de ideias, quando são oriundos de excessos comunicativos dos integrantes de minorias oprimidas, quando constituem discursos no âmbito privado ou discursos elaborados por pessoas sem poder de difusão.
Com essas restrições legais, então, estão excluídas do âmbito do punível as ações discursivas contidas em abstrações, sentimentos e excessos comunicativos, porquanto não configuram qualquer ataque a “possibilidade de viver em sociedade confiando no respeito à esfera de liberdade particular pelos demais”[10] Mas “interesses humanos necessitados de proteção”, capazes de ser reconduzidos a seres humanos individuais, pode ser objeto de proteção penal, em especial quando supõe uma incitação direta à violência contra determinadas raças, crenças, agentes e instituições democráticas. Isso ocorre quando há abuso de direito oriundo da posição de poder hegemônico do falante, quando há espaço amplo de difusão de ideias aptas ao enfraquecimento ou destruição de grupos historicamente vitimizados, agentes ou instituições democráticas, quando há existência de um “sobredireito” não igualado pela somatória de outros direitos fundamentais e quando há aproveitamento da fragilidade da audiência para disseminação das ideias de ódio.
Agora, se o direito penal tem idoneidade para frear esses crimes expressivos de ódio, cada vez mais frequentes em tempos de fragilidade democrática, só o tempo dirá. A aptidão do direito penal depende, nesses casos, do cumprimento da função de prevenção geral, que é limitado pelo princípio da intervenção mínima e pela necessidade de conhecimento empírico dos efeitos produzidos, a fim de evitar um direito penal de forte sentimento ético-pedagógico, moralizante e ideológico.
Jacson Zilio é Doutor em Direito Penal e Criminologia pela Universidade Pablo de Olavide/Sevilha, Promotor de Justiça do Estado do Paraná e membro fundador do Coletivo Transforma MP.
[1] A reação mais violenta deu-se com a publicação do romance de Salman Rushdie, Os versículos Satânicos, de 1988, queimados em alguns países sob alegação de ser um insulto à religião mulçumana e ao seu profeta. O tradutor japonês foi morto. Confira-se, sobre isso, WARBURTON, Nigel. Liberdade de expressão: uma breve introdução. Trad. de Vitor Guerreiro. Lisboa: Gravita, 2015, p. 27.
[2] LEITE, Alaor, TEIXEIRA, Adriano. Defesa do Estado de Direito por meio do Direito Penal. A experiência comparada e o desafio brasileiro, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 182, São Paulo: RT, 2021, pp. 385-460.
[3] Sobre o caso de Siegfried Ellwanger, de forma exaustiva, confira-se REALE JÚNIOR, Miguel. Limites à liberdade de expressão, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 81, São Paulo: RT, 2009, pp. 61-91.
[4] A denúncia e a queixa-crime foram recebidas pela maioria dos ministros da 1ª Turma do STF, mas, por decisão do Ministro Luiz Fux, as respectivas ações penais foram suspensas em razão da imunidade temporária (artigo 86, parágrafo 4º, da CR).
[5] MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal. Parte Especial. Valencia: Tirant lo Blanch, p. 269.
[6] WALDROM, Jeremy. The harm in hate speech. London: Harvard University Press, 2012, p. 5.
[7] TAVARES, Juarez, Anotações aos crimes contra a honra, em Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 94, São Paulo: RT, 2012, p. 92. Assim, a dignidade humana pode ser violada quando se projetam juízos de menosprezo pessoal e reprovação social, que se refiram, exclusivamente, a atos ou a condições particulares, ou próprios de sua personalidade ou orientação de conduta (TAVARES, Juarez, op. cit., p. 93). Tem como objeto da proteção legal a própria dignidade humana e não apenas o sentimento pessoal das vítimas. Como afirmou JEREMY WALDRON, “proteger as pessoas de serem ofendidas equivale a protegê-las de certa classe de efeitos nos seus sentimentos, mas isso é distinto do fato de se proteger sua dignidade e assegurar um tratamento descente na sociedade” (WALDROM, Jeremy, op. cit., p. 104).
[8] ROXIN, Claus. Es la protección de bienes jurídicos una finalidad del Derecho penal?, em HEFENDEHL, Roland (ed.), La teoría del bien jurídico: ¿Fundamento de legitimación del Derecho penal o juego de abalorios dogmático?. Madrid: Marcial Pons, 2007, p. 448.
[9] ZILIO, Jacson. Discurso de o?dio e Direito Penal, em Revista Justic?a e Sistema Criminal, n. 9, 2017, p. 181 e ss.
[10] MIR PUIG, Santiago. Derecho penal. Parte general, 8° ed., Barcelona: Reppertor, 2008.