Por Daniela Campos de Abreu Serra no Conjur
Não há tema que cause mais polêmica nas discussões entre promotores(as) de Justiça do que a atuação funcional nos crimes de tráfico de drogas. A premissa de que as drogas são a principal causa da existência dos crimes violentos é um dogma, cujo questionamento conduz àqueles que ousam tal postura crítica serem questionados sobre estarem na carreira certa (ironicamente sugestionando que a Defensoria seria o “certo”) ou apelidados com adjetivos irônicos como “promofofos(as)”.
Outro dia numa audiência de custódia (atualmente não tenho atribuição no crime comum e, regra geral, atuo em flagrantes de crimes em sistema de plantão) ouvi do juiz plantonista o seguinte comentário: “a senhora é mão leve, doutora”. Sem pestanejar, respondi: “mão constitucional, doutor”.
O que gerou uma cara de espanto por parte do magistrado, levando à breve reflexão sobre como é cômodo atuar como “despachante criminal” ao invés de promotor(a) de Justiça com todas as tensões jurídicas sociais complexas da terceira década do século 21. Replicar o status quo que causa o super encarceramento brasileiro é mais cômodo e confortável.
Anos atrás, num mundo antes da Covid-19, uma atividade de educação à distância ofertada pela Escola Institucional do Ministério Público de Minas Gerais com o tema “políticas alternativas no combate às drogas”, em que pese baseada em experiências científicas e direito comparado, a promotora de Justiça que foi a tutora do curso foi hostilizada por diversos colegas quase acusada de “pecado capital”, ocasião em que como aluna enviei uma mensagem a ela refletindo sobre como o conteúdo desconstruía uma série de paradigmas equivocados que fomos doutrinados a acreditar desde o início da carreira, não querendo justificar a reação violenta dos colegas, mas para compreender eventuais causas para que profissionais valorosos e muito dedicados ao Ministério Público como os que estavam naquela atividade educacional, não fossem capazes de refletir criticamente sobre nossa atuação profissional, sem desconstruir preconceitos que implicam encarar conteúdos inconscientes sobre o “perigo do mundo das drogas”.
Atualmente, um dos principais detonadores de paradigmas dos promotores(as) de Justiça tem sido o STJ, em especial, o ministro Rogério Schietti, oriundo da carreira do MP-DF (Ministério Público do Distrito Federal) antes de assumir uma cadeira no Superior Tribunal de Justiça, o que lhe dá mais propriedade técnica para opinar sobre a atuação do MP brasileiro, usou de ironia ao criticar a atuação do Parquet paulista na análise de Habeas Corpus em crime de tráfico de drogas e fazer apelo “para que seus membros deixem de atuar como meros despachantes criminais” (disponível aqui).
O caso concreto é emblemático porque a discussão central era justamente se a conduta praticada configurava o crime de tráfico de drogas ou desclassificação para consumo pessoal, cuja diferença implica na possibilidade ou não da privação da liberdade. Um trecho do voto do ministro Schietti citado na reportagem desta ConJur indaga de maneira direta a atuação do MP: “Será mesmo, em uma proposta de reflexão institucional, que se considera acertado o caminho trilhado pelo representante ministerial e acatado pela Corte estadual? É sustentável, no mundo atual — após uma frustrada guerra cinquentenária ao comércio de drogas — impor-se uma pena de quase sete anos de reclusão, em regime inicial fechado, a alguém flagrado com 1,54 grama de cocaína?”.
Propor essa reflexão institucional implica em compreender que a titularidade da ação penal atribuída aos integrantes do Ministério Público deve ser exercida tendo como norte a missão constitucional atribuída à instituição e o seu papel como ombudsman da sociedade, sem olvidar que o princípio da dignidade da pessoa humana é o alicerce dos direitos humanos, sendo esses condição fundamental para a existência do Estado democrático de Direito, expressamente consagrado no artigo 1º da Constituição Federal de 1988.
Implica em compreender que há diretrizes constitucionais que devem modular a atuação dos integrantes do MP porque a contraprestação pelo serviço público prestado por eles está atrelada ao exercício de suas atribuições dentro dos limites constitucionais, que atualmente têm sido objeto de modulação por parte do STJ, em especial, no tocante aos feitos envolvendo os crimes de tráfico de drogas e os limites probatórios da atuação estatal policial.
Esse é o ponto central que pretendemos refletir: há um sistema de pesos e contrapesos do Estado democrático de Direito da República Federativa do Brasil em que o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça devem uniformizar a interpretação das normas constitucionais e das leis federais. No entanto, tal como o exemplo citado, cotidianamente os ministérios públicos e as cortes estaduais têm ignorado os entendimentos das cortes superiores e continuam a encarcerar pessoas apreendidas em ações das forças policiais que contrariam os direitos fundamentais e criminalizam a posse de pequenas quantidades de drogas como sendo prática de tráfico de drogas nas comunidades periféricas pobres e negras Brasil afora.
Triste perceber que o sistema judicial brasileiro está programado para prender pessoas pobres e com pouca quantidade de drogas, sendo que após o flagrante policial, regra geral realizado em alguma “boca” ou “biqueira” na periferia sem testemunhas porque têm medo, basta um parecer do representante do Ministério Público afirmar que o tráfico de drogas representa um perigo para a sociedade como sendo um argumento suficientemente válido para evidenciar o perigo à ordem pública e a necessidade da prisão provisória, olvidando-se que não se pode considerar um perigo em abstrato como requisito da prisão cautelar, como reiteradamente decidido pelo STJ:
AGRAVO REGIMENTAL NO HABEAS CORPUS. PRISÃO PREVENTIVA. TRÁFICO DE DROGAS. PERICULUM LIBERTATIS JUSTIFICADO. SUFICIÊNCIA DE CAUTELARES DO ART. 319 DO CP. AGRAVO REGIMENTAL PROVIDO.
1. A prisão preventiva é compatível com a presunção de não culpabilidade desde que não assuma caráter de antecipação da pena e não decorra, automaticamente, da natureza do crime ou do ato processual praticado (art. 313, § 2º, CPP). Deve apoiar-se em motivos e fundamentos concretos, relativos a fatos novos ou contemporâneos, dos quais se possa extrair o perigo que a liberdade plena do investigado ou réu representa para os meios ou os fins do processo penal (arts. 312 e 315 do CPP).
2. É preciso, ainda, ficar concretamente evidenciado, na forma do art. 282, § 6º, do CPP, que, presentes os motivos que autorizam a constrição provisória, não é satisfatória e adequada a sua substituição por outras medidas cautelares menos invasivas à liberdade.
3. O Magistrado justificou a necessidade de garantir a ordem pública, ante a periculosidade do agente, revelada por passagens infracionais pretéritas e as circunstâncias de prática não ocasional de tráfico de drogas.
4. Entretanto, em juízo de proporcionalidade, sopesada a apreensão de quantidade não substancial de maconha e as condições pessoais do suspeito (primariedade), a aplicação do art. 319 do CPP é mais consentânea e razoável ao caso concreto.
5. Agravo regimental provido para, superada a Súmula n. 691 do STF, substituir a prisão preventiva do paciente pelas medidas do art. 319 do CPP descritas no voto.
(AgRg no HC n. 805.881/ES, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/6/2023, DJe de 15/6/2023.)
Os integrantes do Ministério Público que buscam aprimorar a técnica e utilizar os julgados do STJ nos pareceres para modular constitucionalmente a atuação nos crimes de tráfico de drogas são prontamente “rotulados” e passam a sofrer cotidianamente questionamentos sobre sua conduta profissional estar “auxiliando” o crime.
Integrar o @repensandoaguerraasdrogas fortalece nossa capacidade de atuação constitucional para resistência ao sistema de “máquina de moer gente”, como muitas vezes é denominado o sistema de justiça brasileiro, aliando o exercício da atribuição criminal com a observância do princípio da dignidade da pessoa humana. Para tanto, basta analisar os casos que chegam cotidianamente sem endossar os indiciamentos de pessoas pobres e pretas apreendidas com pequenas quantidades de drogas, em especial, em situações que reiteradamente têm sido consideradas ilegais pelo Superior Tribunal de Justiça.
A questão relativa à identificação da causa concreta de perigo para a prisão provisória deveria ser tão básica no Estado Democrático de Direito contemporâneo, quanto é o hábito de escovar os dentes para evitar cáries, no entanto, quando se debate a atuação do Ministério Público nos crimes de tráfico de drogas e se questiona quais os riscos reais das substâncias que são proibidas se comparadas com as que não são, a discussão não se sustenta sem argumentos imaginários quanto ao perigo construído no imaginário social de traficantes fortemente armados ou usuários zumbis, que na maioria das vezes não se verificam nos casos concretos dos que são encarcerados nos flagrantes.
Não é raro em grupos de conversa instantânea de carreiras do Ministério Público e da Magistratura ler comentários do tipo “o STJ está acabando com o Brasil”, em clara crítica aos recentes julgados que buscam uniformizar a interpretação da Lei de Drogas aos parâmetros constitucionais e legais, em assuntos complexos como a entrada no domicílio e a abordagem de pessoas em local público.
Nessa discussão, há que se ter a clareza do compromisso institucional com os objetivos fundamentais da República, o combate ao racismo e “não basta dizer que não é racista, é preciso ser antirracista”, incorporando essa perspectiva nos pareceres e denúncias. Regra geral, a atuação do Ministério Público tem sido “ratificar os APFDs com os ‘contos da Carochinha’ pouco factíveis, mas com sentimento de justiceiros porque estamos livrando a sociedade de mais um meliante”, esquecendo que assim agindo contrariamos garantias fundamentais.
Ser antirracista perpassa por assumirmos que as digitais do MP estão no viés racista do atual encarceramento brasileiro, como Michelle Alexander identifica em sua obra “Nova Segregação Racial”: a “segregação racial é feita pelos juristas”. Basta fazer uma inspeção em qualquer presídio brasileiro ou participar de audiência de custódia em crimes de tráfico de drogas para constatar que a realidade descrita por ela e pelo documentário “A 13ª Emenda” (disponível no Netflix) também refletem a realidade penitenciária brasileira.
A negativa constante dos integrantes do sistema de justiça de que o pretenso combate às drogas se realiza com claro viés racista e classista impede a atuação constitucional destes agentes estatais e deve ser criticada para constranger e tirar da inércia aqueles que ainda resistem a compreender que o titular da ação penal deve exercer o poder encarcerador considerando os limites que vêm sendo reiteradamente impostos nos casos concretos pelo Superior Tribunal de Justiça.
Daniela Campos de Abreu Serra é promotora de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Mestre em serviço social e graduada em direito pela Unesp (Universidade Estadual Paulista). Membra do Coletivo Transforma MP e do coletivo Repensando a Guerra às Drogas.