Aqui temos um ponto (entre vários) que o STF não entendeu: as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma.
Duas notícias em sentido opostos vieram à tona quase simultaneamente. De um lado, o Supremo Tribunal Federal – STF, pela sua primeira turma, entendeu inexistente vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que se utilizam de plataformas digitais para realização de seu negócio, encaminhando a questão para o plenário para julgar a questão de forma definitiva e ainda determinando que seja oficiado o Conselho Nacional de Justiça para que juízes do trabalho que julgam de forma diferente sejam punidos. De outro, o Conselho e o Parlamento Europeus chegaram a um acordo inicial para a melhoria das condições dos trabalhadores em plataformas por meio de uma diretiva, que criará critério para determinar a existência da relação de emprego. Não poderia haver um contraste maior: uma corte suprema retirando todos os direitos dos trabalhadores, inclusive fundamentais relativos ao trabalho e legisladores reconhecendo a existência de direitos trabalhistas e da relação de emprego.
O Conselho Europeu foi bem claro na comunicação que fez ao público: “atualmente, a maioria dos 28 milhões de trabalhadores em plataforma na União Europeia, incluindo motoristas, trabalhadores domésticos e entregadores de comida, são formalmente autônomos. Não obstante, um número deles tem que obedecer às mesmas regras e restrições de um empregado. Isso indica que existe de fato uma relação de emprego e deveriam desfrutar dos direitos trabalhistas concedidos aos trabalhadores assalariados ao abrigo do direito nacional e da União Europeia” (grifos no original, nossa tradução). Como afirma o comunicado, a diretiva “dá resposta a esses casos de classificação incorreta e facilita a reclassificação desses trabalhadores como empregados”.
Para isso, a futura diretiva utilizou a técnica de feixe de indícios, especificando alguns já utilizados para reconhecimento de relação de emprego no direito do trabalho europeu, prevendo que será considerado empregado se houver pelo menos dois de cinco indicadores na relação com a empresa: 1) limites máximos de montante que um trabalhador pode receber; 2) supervisão da execução do trabalho, inclusive por meios eletrônicos; 3) controle da distribuição ou atribuição de tarefas; 4) controle das condições de trabalho e restrições à escolha do horário de trabalho; e 5) restrições à liberdade para organizarem o seu trabalho e regras relativas à sua aparência ou conduta. Podem ainda os Estados-Membros acrescentar outros indicadores. Nos casos em que haja pelo menos dois indícios, há uma presunção da existência do vínculo empregatício, cabendo às empresas o ônus de comprovar em juízo que não existe relação de emprego. A diretiva também avança em relação à utilização dos algoritmos, mas isso é algo tão avançado para o nível da discussão no Brasil, que é bastante rasa, que deixaremos de lado esse importante ponto para analisarmos com mais calma os indicadores trazidos pela nova diretiva.
Percebe-se que o primeiro indicador da existência da relação é ligado à própria noção de trabalho autônomo: a precificação do trabalho deve ser realizada pelo trabalhador, e não pela empresa. A possibilidade de indicar o preço do seu trabalho é central para a caracterização do trabalho por conta própria, pois não há independência se o quanto você ganha é determinado por outra pessoa. Se uma empresa coloca um teto remuneratório para o seu trabalho, este não é de forma alguma autônomo.
O segundo indicador é a verificação da existência da subordinação, inclusive aquela realizada por meio de algoritmos, o que inclusive já tem previsão expressa na Consolidação das Leis do Trabalho (art. 6º, parágrafo único).
Os terceiro e quarto indicadores também preveem formas de controle que são considerados compatíveis com uma situação de relação de emprego, por meio de atos que demonstram a participação do trabalhador em atividade econômica alheia.
O quinto indicador é relativo a uma das facetas do poder empregatício, que é o poder organizativo da atividade econômica. Se há o poder de organizar a atividade econômica, inclusive em relação à aparência ou condutas dos trabalhadores, esses não são, de forma nenhuma, autônomos.
Alguém que conhece a práticas das empresas que se utilizam de plataforma digital para realização do próprio negócio, seja ele o transporte de pessoas ou de mercadorias, poderia afirmar que todos os indicadores são encontrados de maneira límpida. Entretanto, há sim empresas que por meio de suas plataformas digitais na qual não serão encontrados todos esses indicadores, como plataformas digitais que não se imiscuem na gestão do serviço prestado pelo trabalhador, nem no preço do trabalho, como por exemplo a GetNinjas.
Aqui temos um ponto (entre vários, é verdade) que o STF não consegue entender: as plataformas digitais utilizadas por cada empresa não funcionam da mesma forma. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. Não são iguais nem mesmo aquelas que atuam no mesmo ramo de negócio.
A decisão do STF citada no começo do artigo tem equívocos de várias dimensões ou camadas. Um pequeno trecho da sessão de julgamento, na fala do relator Ministro Alexandre de Moraes, pode demonstrar uma dessas dimensões de equívoco: “Aquele que dirige um veículo, aquele que faz parte da Cabify, da Uber, do Ifood, ele tem a liberdade de aceitar as corridas que ele quer”. No entanto, a afirmação genérica é falsa. As empresas não funcionam da mesma forma, não têm o mesmo algoritmo e não têm a mesma política. Ao contrário, cada uma delas atua com uma especificidade. As empresas não atuam de forma igual nem mesmo aquelas no mesmo ramo de negócio. E ainda dentro da mesma empresa há modelos diferentes.
Tomemos o exemplo da iFood. A iFood tem duas formas de atuar: uma com os chamados de entregadores “nuvem”, que atuam diretamente na plataforma, controlados pelo algoritmo e GPS, com preços prefixados pela empresa, tarefas distribuídas pela plataforma, e prejuízo na classificação ao negar entregas; outra forma é o “OL”, de Operador Logístico, modelo no qual a iFood terceiriza a gestão dos trabalhadores para uma empresa, que os arregimenta, os “administra” em horários fixos em que não se pode negar chamados.
Já a Rappi atua com trabalhadores empregados na categoria “personal shopper”, que é o comprador nos supermercados, e por entregadores contratados via plataforma digital. Em tese, os entregadores podem negar chamados, no entanto, passam a não receber trabalhos, que são garantidos somente aos que se comprometerem a cumprir turnos fixos e que ativem o botão “autoaceitar”. Além disso, a empresa realiza exigência de produtividade em relação a aceitações, conclusão, avaliação do cliente, número de reservas de horários e trabalho em períodos de alta demanda que para que o trabalhador seja classificado na empresa, que tem várias categorias, que definem quem receberá mais e melhores trabalhos.
A Uber, por sua vez, entrou inclusive com ação judicial em face de desenvolvedora de aplicativo que orientava os motoristas a escolherem as melhores corridas, impedindo a sua utilização. Além disso, a não aceitação influencia na nota final dos trabalhadores.
Todas essas empresas precificam o trabalho, realizam supervisão eletrônica, fazem distribuição e atribuição de tarefas, controlam as condições de trabalho e restrigem a organização dos trabalhadores.
Assim, as decisões partem de uma premissa equivocada, muito distante da realidade. A distância quilométrica da realidade se dá por um motivo muito simples: não cabe ao Supremo Tribunal Federal analisar fatos. O STF, pela Constituição, somente pode fazer análise de constitucionalidade das decisões judiciais, não cabendo delimitar quadro fático. Não tem competência para isso, ainda mais na via estreitíssima da Reclamação Constitucional.
E nisso difere profundamente nossa corte suprema de algumas europeias que já julgaram a questão, como por exemplo a Corte de Cassação na França, a Suprema Corte do Reino Unido e o Tribunal Supremo na Espanha, que são instâncias revisionais e julgaram com base nos fatos de cada ação que chegou a eles. E difere mais ainda no procedimento: julgaram nos limites subjetivos e objetivos de cada lide que chegou, não pretendendo dar nenhum efeito vinculante a essas decisões.
A Suprema Corte brasileira está prestes a determinar a inexistência de vínculo empregatício em razão da pessoa (empresas que se autoproclamam plataformas digitais), de maneira abstrata, com base em pressupostos que se mostram longe da realidade, com decisão vinculante, e ainda pretende punir os juízes do trabalho que julguem conforme determina a Constituição analisando os fatos a partir da causa de pedir. Cada uma dessas particularidades jamais foi vista em todo o mundo, quem dirá todas elas conjuntamente, o que mostra o absurdo que estamos vivenciando. É uma jabuticaba transgênica gigante com agrotóxicos.
No mundo inteiro, e a diretiva europeia renova e reforça esse aspecto, a relação de emprego é verificada a partir de um quadro fático. A relação de emprego surge na realidade e o contrato é dela derivado, e não o contrário.
Assim, estamos em uma situação em que o Brasil, por sua Suprema Corte, pretende fechar a porta de acesso aos direitos fundamentais da Constituição, julgando com base em discursos retóricos das próprias empresas e pretendendo julgar a inexistência de uma relação de emprego de forma absoluta e, possivelmente impossibilitando o legislador de dizer o contrário, pois supostamente o STF está interpretando a Constituição. Enquanto isso, na Europa, as instituições estão, ao contrário, preocupadas com a fraude à relação de emprego realizada por essas mesmas empresas e deixando mais claro ainda os pressupostos para que seja reconhecida. O Supremo Tribunal Federal está levando o Brasil para a contramão do mundo civilizado. Isso talvez diga muito não somente sobre nossa corte suprema, mas também sobre o próprio Brasil.
*Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Rodrigo Carelli é Procurador do Trabalho, professor da UFRJ e Integrante do Coletivo Transforma MP