John M. Olin é a figura-chave para quem quiser entender a análise econômica do direito. Olin não é o seu pai, mas certamente pode ser considerado o padrinho da Law and Economics. Ele não era economista, nem mesmo jurista, e sim graduado em química e, primordialmente, um magnata do setor da indústria química.
Suas empresas tiveram uma longa história de problemas trabalhistas e ambientais, tendo sido os primeiros e principais alvos da Environmental Protection Agency – EPA, criada em 1970 para a proteção ao meio ambiente nos Estados Unidos, devido a dois desastres ecológicos gigantescos por elas causados: a produção do pesticida DDT, causador de contaminação fatal da cadeia alimentícia e a poluição de rios com mercúrio, tendo as empresas sido afinal condenadas.[1]
Obviamente, Olin não era nem um pouco satisfeito com a regulação estatal que atingia duramente seus negócios, e a entendia como parte de algo que ele chamava como sinônimos de liberalismo ou socialismo, e que essas leis mereciam “estudo muito sério e correção”. Para realizar o “estudo” e a “correção”, Olin colocou à disposição os milhões de dólares à base de isenções fiscais injetados na Olin Foundation, historicamente ligada à perseguição de intelectuais e de publicações de esquerda, tendo lavado milhões de dólares para a CIA, serviço secreto do governo estadunidense. Após a morte de Olin, em 1982, a fundação ficou com boa parte de sua herança, sendo então possível colocar em marcha as ideias do acadêmico conservador James Piereson, diretor da Olin Foundation, para quem o combate deveria ser travado dentro das grandes instituições de ensino estadunidenses.
Piereson sabia que dominar as grandes faculdades de direito levaria tempo, porque nenhuma instituição respeitada aceitaria dinheiro para a criação de programas com claro conteúdo ideológico, e por isso resolveram financiar programas de Law and Economics, pela sua somente aparente neutralidade, fato confessado por Piereson em entrevistas. [2] A proposta era clara: como poder descumprir as leis ou até modificá-las em favor do poder econômico? Ora expandindo uma corrente jurídica que lhe permitisse isso a partir de argumentos econômicos que dominariam os jurídicos. Até então a chamada Law and Economics, criada na Chicago Law School e também financiada por fundações de magnatas conservadores e reacionários como a Volker Fund, apesar de ter construído a reputação de intelectuais como Ronald Coase e Richard Posner (que aliás escreveu a obra “Economic Analysis of Law”), não tinha conseguido grande alcance nas demais universidades estadunidenses, somente sendo ofertada por mais outras duas faculdades de direito sem grande nome em todo o país. A oportunidade de entrada na mais prestigiosa faculdade de direito estadunidense, Harvard, somente acontece em 1985, quando surgiu reportagem de capa da revista The New Yorker que afirmava que professores de esquerda da faculdade estariam incentivando estudantes a sabotarem os escritórios de advocacia empresarial. O presidente da instituição de ensino é convencido a receber a maior doação até então feita pela Olin Foundation, que dará origem à
John M. Olin Center for Law, Economics and Business at Harvard Law School. A partir da criação do programa em Harvard, a disciplina explode nas demais universidades: em cinco anos já são cerca de 80 faculdades oferecendo a matéria. Nesse período, 83 por cento dos custos desses programas em todas as faculdades foram bancados pela Olin Foundation.[1]
Outras frentes completaram o plano da Olin Foundation, como por exemplo o financiamento de seminários a juízes em resort paradisíaco na Flórida. Os juízes ficavam cerca de duas semanas no resort, ouvindo pela manhã os acadêmicos do Law and Economics discursarem contra o direito ambiental e o direito do trabalho, podendo curtir o resort livremente à tarde e jantando à noite com os mesmos acadêmicos, com tudo pago pela fundação. Cerca de 40 por cento dos juízes federais estadunidenses teriam passado por esses seminários paradisíacos.[2] A mesma estratégia foi copiada mais tarde por grandes empresas no Brasil com juízes, até a prática ser coibida pelo Conselho Nacional de Justiça, mas que de certa forma continua pelas brechas deixadas pela resolução. Atualmente, até ministros do Supremo Tribunal Federal vêm participando de eventos e bate-papos, alguns inclusive fechados, com entidades financeiras.
A outra estratégia bancada pela Olin Foundation foi o financiamento da organização de estudantes conservadores chamada Federalist Society, que se espalhou por 150 seções em faculdades de direito e que atualmente tem 5 juízes da Suprema Corte como seus membros.[3]
Assim, a Análise Econômica do Direito faz parte de uma ampla estratégia de cunho ideológico financiada por magnatas para fragilizar a regulação estatal e favorecer argumentos das grandes empresas em litígios judiciais. A falsa neutralidade que tenta se dar a uma disciplina que, principalmente a partir de seu nome Análise Econômica do Direito, é na prática a simples submissão do Direito à Economia. E aqui temos outra falsa neutralidade: o que se entende por economia passa a ser somente uma de suas vertentes teóricas: a teoria ortodoxa ou neoclássica, que tenta incluir a disciplina na área de Exatas. A Economia é sempre política, é tomada de decisão de certo modo de alocação de recursos. Nada menos exato, então, do que uma análise econômica. A retirada do adjetivo “política” à ciência e a imersão dos estudos em equações complexas é uma tentativa de dar um ar de ciência dura – pretensão de dar maior credibilidade às decisões políticas tomadas – à economia. Como afirmou o economista John Kenneth Galbraith, “a única função das previsões econômicas é fazer com que a astrologia pareça respeitável”.
A análise econômica do direito, ao fim e ao cabo, é simplesmente o instrumento de justificar o não cumprimento do direito posto por argumentos pretensamente econômicos, mas que em verdade são economicistas, pois baseados em certa perspectiva econômica isolada, que escolheu a priori os valores, sendo assim antidemocrática e antijurídica. No limite, poderia legitimar ilegalidades porque em certos aspectos poderiam trazer benefícios econômicos estritos, como permitir organizações criminosas ou a destruição ambiental que tenham grande presença no PIB e geram muitos empregos.
Essa submissão do direito a argumentos economicistas tem tido grande sucesso no Brasil, chegando a figurar em pelo menos 39 decisões na Suprema Corte brasileira, e tendo sido emplacada a “análise de impacto regulatório” na “Declaração de Direitos de Liberdade Econômica”. Além disso, recentemente foi modificada a norma do Conselho Nacional de Justiça sobre concurso para juízes e incluída a Análise Econômica do Direito entre os pontos obrigatórios para a seleção de novos magistrados.
Porém a Economia, em sua vertente ortodoxa, completamente míope, e às vezes deliberadamente cega, parte de um pressuposto falso como dogma: o crescimento ilimitado em um planeta finito. A teoria econômica ortodoxa leva, inexoravelmente, ao fim do mundo. Ela teve suas bases lançadas em um momento do mundo em que não se pensava a ecologia. A natureza, para a teoria econômica ortodoxa, está fora dos modelos econômicos, vista apenas como “externalidade” ou como recursos a serem extraídos. Como se isso não bastasse, seus instrumentos de análise, como o PIB, são capengas dada sua miopia congênita, pois não levam em conta nenhum custo humano, social ou ecológico que a produção causou. Para ela, tudo isso, que a Economia não quer ou não consegue levar em conta, é mera “externalidade”.
Além disso, a teoria econômica só consegue ver o que é quantificável, reduzido a números. É o que Alain Supiot chamou de sonho humano já velho de alguns milênios de poder encontrar a harmonia do mundo pelo cálculo.[1] Se pegarmos, no entanto, os direitos fundamentais que estão em nossa Constituição, veremos que a maior parte contém valores incalculáveis, jamais redutíveis a números.
Estamos em plena crise climática, todos os seus efeitos já são sentidos por nós e não podemos continuar nos apoiando em teorias negacionistas como a Análise Econômica do Direito e a economia neoclássica, que nos trouxeram à beira do precipício. Continuar a seguir o caminho que estamos tomando é afundar em um poço que não se sabe se tem fundo, talvez sem possibilidade de retorno. É o que nos demonstra recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC). A Economia ortodoxa, baseada no insano dogma do crescimento eterno, não tem qualquer chance de conduzir esse processo e vai nos levar ao pior cenário esperado e multiplicar exponencialmente os desastres que estamos presenciando.
O que realmente precisamos, no Século XXI, não é de uma gambiarra patrocinada por magnatas para não precisarem respeitar normas de proteção a trabalhadores e à população em geral ou ao meio ambiente, baseadas em uma ciência humana cujas bases corroídas datam do século XVIII. Precisamos auxílio urgente da Ecologia, área do conhecimento desenvolvida neste século, que nos mostra que somos parte da natureza, não estamos externos a ela. Formamos um ecossistema, uma comunidade fechada com os seres do planeta, e cada ação tem uma reação, como demonstra o acelerado aquecimento global como consequências catastróficas que já estão sendo sentidas. O planeta deve ser um ente a ser ouvido, por meio de suas reações e respostas que a ciência transmite na linguagem humana. Não é que os elementos econômicos estarão ausentes na Análise Ecológica do Direito, muito pelo contrário, mas como uma das variáveis. Não há Ecologia também sem a questão social: defender a natureza sem proteger as relações sociais é retirar novamente o ser humano da natureza. Assim, a Ecologia a ser ouvida é a Ecologia Social, aquela que consegue perceber que nossas condições sociais nos levaram à atual situação dramática e somente com nova organização da sociedade, dando atenção ao seu bom funcionamento, é que poderemos
sobreviver no planeta e reverter sua degradação. A Ecologia Social percebe algo que a vertente dominante da economia não quer enxergar: a questão do poder. A pergunta “para quem?” talvez preceda ao “o quê?” e ao “como?”.
Somente com uma análise ecológica do direito poderemos perceber os verdadeiros efeitos de determinadas ações. Por exemplo, tomemos um desmatamento. Pela análise econômica do direito e sua cegueira deliberada, poderia ser observada a geração de renda e emprego pela utilização da terra desmatada. Pela análise ecológica do direito, seria visto que o desmatamento causará desequilíbrios de magnitude incontrolável, que vão desde a redução da diversidade animal e vegetal, fim de biomas, aquecimento da região e do planeta, extermínio de populações que vivem da mata, desertificação, destruição da água potável disponível, migração forçada para as cidades, tempestades de poeiras e de fumaça nas cidades, chegando até poder causar epidemias graves. Tudo isso tem consequências econômicas gigantescas, impossíveis de serem alcançadas com a análise econômica do direito, que, aliás, foi construída com o fim de omitir isso tudo mesmo.
Da mesma forma, o uso de contratos precários de trabalho e seu incentivo por leis, governos e tribunais podem ser defendidos por uma análise econômica do direito tosca, que nega as consequências ecológicas-sociais. A análise ecológica do direito observaria economistas como David Card, atual vencedor do Prêmio do Banco da Suécia em Ciências Econômicas em Memória de Alfred Nobel, e, ao contrário dos raivosos e desapontados ortodoxos que o chamaram de traidor da causa da Economia, verificaria a essencialidade da regulação do trabalho para a conservação das condições do planeta e a necessidade de ir além para a redistribuição do trabalho (e da riqueza) existentes, na forma de conclusões abrangentes e não observadas de forma individualista, na miragem do homo economicus racional.
Os economistas já começam a perceber tudo isso com mais força, como é exemplo Kate Raworth e seu excelente “Economia Donut. Uma alternativa ao crescimento a qualquer custo”.[1] A autora propõe que seja novamente dado um fim para a Economia, que é servir a sociedade, e não ser um fim em si mesma e direcionar a sociedade para cumprir a sua própria profecia, e girar em torno de si mesma sem se ater com os resultados na vida da maior parte das pessoas. E esse fim da economia, para ela, seria a Donut, ou seja, direcionar a sociedade para um espaço entre dois círculos concêntricos que seriam um teto, o ecológico, e um limite interno, que seria o alicerce social pelo atendimento das necessidades de bem-estar da sociedade. Esse donut, como espaço de equilíbrio social-ecológico, também deveria ser o fim da análise ecológica do direito. Ou seja, não somente a economia, mas o direito também teria um fim a ser seguido.
Precisamos de juízes que saibam sopesar fins jurídicos insculpidos na nossa sociedade não em termos matemáticos, como se o mundo fosse uma máquina em equilíbrio e operasse segundo regras exatas, mas sim como mundos dinâmicos, tendentes à entropia, e que necessitam do direito para a manutenção de certos equilíbrios, na forma de neguentropia. É mais do que a hora de abandonarmos os instrumentos antigos de navegação, criados de maneira enviesada, desenhados e financiados para causar desequilíbrios, como prova o caso da análise econômica do direito. Precisamos substituir essas malas pesadas que estão nos fazendo afundar em um oceano (acidificado?) e substituí-las por instrumentos atuais que podem nos guiar para fora do pântano (ou seria deserto?) que nos metemos. Pelo fim da análise econômica do direito e pelo nascimento da análise ecológica do direito: esse é o nosso único caminho de sobrevivência.
Rodrigo Carelli é Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro e membro do Coletivo Transforma MP
[1] RAWORTH, Kate. Economia Donut. Uma alternativa ao crescimento a qualquer custo. Rio de Janeiro: Zahar, 2019.
[1] SUPIOT, Alain. La gouvernance par les nombres. Paris: Fayat, 2015.
[1] MAYER, Jane. Dark Money. The Hidden History of the Billionaires Behind the Rise of the Radical Right. New York: Penguin, 2016.
[2] MAYER, Jane. Dark Money. The Hidden History of the Billionaires Behind the Rise of the Radical Right. New York: Penguin, 2016.
[3] TELES, Steven M. The Rise of The Conservative Legal Movement. The Battle for Control of The Law. Princeton: Princeton, 2008.
[1] MAYER, Jane. Dark Money. The Hidden History of the Billionaires Behind the Rise of the Radical Right. New York: Penguin, 2016.
[2] TELES, Steven M. The Rise of The Conservative Legal Movement. The Battle for Control of The Law. Princeton: Princeton, 2008.