O que cada leitor procura dentro de um livro? O que cada leitor encontra dentro de um livro? “A metamorfose”, de Franz Kafka, lido hoje, será o mesmo “A metamorfose”, caso lido amanhã? Um livro é sempre o mesmo livro, mas nunca é o mesmo livro? Um livro é infinito nas formas de interpretá-lo? Nas formas de senti-lo? De vivê-lo? Para alguns, ler certo poema decodifica sentimentos. Para outros, o poema pode funcionar como ferramenta reveladora de universos diferentes do seu.
Alguém pode procurar pelo vazio em “Formas do nada”, de Paulo Henriques Brito, mas encontrar um pulso ritmado, um pulso, às vezes, sarcástico e, verso a verso, prestes a parar. Alguém, nas formas breves de Robert Walser, em “Absolutamente nada”, pode, justamente, encontrar o vazio. Alguém pode encontrar em “Lili : Novela de um luto”, de Noemi Jaffe, e em “Patrimônio”, de Philip Roth, e em “A invenção da solidão”, de Paul Auster, e em “Morreste-me” de José Luís Peixoto, espelhos doloridos de determinado luto particular, mas também pode encontrar territórios propícios à pura (e, dentro desses exemplos, variada) fruição estética. Alguém pode encontrar William Kennedy em Paula Fábrio. Alguém pode encontrar Paula Fábrio em William Kennedy. Alguém, no rastro de solidões, pode inserir-se em poemas de Hilda Hilst e, de modo quase imperceptível, acender imagens de Jan Saudek. Alguém pode estudar ritmos em Hilda Hilst. Alguém, outro “desconhecido de si mesmo”, pode duplicar-se em “O passageiro secreto”, de Joseph Conrad, mas pode replicar, também, o duplo de Conrad em Fernando Pessoa.
Alguém pode escutar Cartola em “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, escutando, simultaneamente, uma sonata de Beethoven. Alguém pode tropeçar no passado, pode escorregar por um declive do bairro em que cresceu, em “Paddy Clarke hahaha”, de Roddy Doyle. Alguém pode compreender geografias remotas e a diáspora, em “De amor e de trevas”, de Amos Oz. Alguém pode projetar em “As pequenas virtudes”, de Natalia Ginzburg, um Achados & Perdidos de silêncios, um Achados & Perdidos de desterros. Alguém pode achar o Brasil do século XXI na França do século XIX de “Ilusões perdidas”, de Honoré de Balzac. Alguém pode buscar compreender a luta no ofício de milhares de mulheres em “Entre as mãos”, de Juliana Leite, e encontrar sobrevivência e ancestralidade. Alguém pode procurar a saída em Jorge Luis Borges, mas deparar-se com o impiedoso Minotauro. Alguém pode testar a balança em “A balada de Adam Henry”, de Ian McEwan, e engasgar-se com o obscuro gosto do fundamentalismo religioso. Alguém pode jurar que enxergou retratos pintados por Francis Bacon em “Ao pó” de Morgana Kretzmann; alguém pode jurar que, em “Ao pó”, enxergou “Abaporu”.
Uma tela dentro de um livro, um livro dentro de outro, uma lembrança chacoalhada por frases, uma flor, uma floresta, uma caverna, portas escondidas detrás de palavras, tantas chaves. E não é raro que alguém encontre, incrustado em páginas alheias, páginas assinadas pelo nome de alguém desconhecido, seu próprio – mais íntimo – reflexo.
Eliane Lucina, Procuradora do Trabalho em São Paulo, integrante do Coletivo Transforma MP