
Por Antônio de Padova Marchi Júnior no GGN
A Costa do Descobrimento, por todo o seu simbolismo, diversidade étnica e riqueza natural, talvez seja o marco mais adequado para mobilizar e reclamar a necessária atenção para o destino do Brasil nessa quadra tão complexa da nossa história.
Possui 111.930 hectares onde se concentram 23 áreas de proteção ambiental, distribuídas entre 12 municípios do sul da Bahia e quatro do norte do Espírito Santo.
Enquanto reserva da Mata Atlântica, recebeu o título de Patrimônio Mundial concedido pela Unesco em razão do seu elevado valor para as ciências e para a preservação do ecossistema de interesse universal.
São tantas paisagens, praias paradisíacas, patrimônio arquitetônico, vilas históricas entrelaçadas com importantes reservas indígenas, que fica difícil não se apaixonar pela simplicidade e pelo charme local.
Além dos cenários naturais, a região é dotada de aeroporto, boa estrutura rodoviária, considerável rede hoteleira, rica gastronomia e muita agitação, tornando-se a preferida, verão a verão, de milhares de turistas que a elegem como o local perfeito para fugir do stress e repor as energias.
Contudo, nessa estação de 2025, em que se completa o primeiro quarto de século após os 500 anos do descobrimento, impossível não se refletir sobre o processo histórico que desaguou na CR/88 e o rumo que o país tomará ante os riscos para a democracia impostos pelos desafios de hoje.
A exploração predatória do meio ambiente, largamente empregada em diversas atividades econômicas desde os tempos do Brasil Colônia, passou a ser efetivamente enfrentada somente a partir dos anos 70 por meio da paulatina mobilização de pequenos grupos ecológicos, das advertências advindas da ciência e do crescente envolvimento da classe artística, trabalhadora e estudantil.
O movimento foi ganhando corpo a cada agravamento das condições ambientais decorrente do desenvolvimento econômico acelerado, da intensificação do processo de urbanização, da construção das grandes usinas hidrelétricas, da crescente exploração mineral e outros fatores de risco.
A formação dessa “consciência ambiental”, ainda que tardia (especialmente para a Mata Atlântica), contribuiu para incluir a temática no círculo político, favoreceu a criação de órgãos governamentais para o controle e a regulamentação das atividades nocivas ao meio ambiente e, mais adiante, motivou o debate na Assembleia Constituinte que levou à formação de uma frente ambientalista suprapartidária e obteve como resultado a inserção de um capítulo especial sobre o meio ambiente na CR/88.
Para a proteção do meio ambiente, o legislador constituinte permitiu a adoção de competências concorrentes, a instituição da responsabilidade objetiva, a criação da ação civil pública e outros princípios que determinaram significativo avanço legislativo nas esferas administrativa, cível e penal.
O operoso trabalho desenvolvido a partir de então por organizações governamentais, não-governamentais e instituições do sistema de justiça, a par de ter alcançado importantes objetivos em favor da preservação do meio-ambiente, da defesa do patrimônio histórico-urbanístico e de proteção da população indígena, ainda não conseguiu consolidar a ideia da imprescindibilidade de tais propósitos.
O avanço da extrema-direita, a frágil regulamentação das big techs, o uso e o abuso de mentiras como poderosa tática política empregada nas redes sociais, a revisão da história, a desconstrução do conceito de democracia e os discursos de ódio contra as minorias, tendo os indígenas como um dos grupos mais afetados, colocam em risco o longo caminho trilhado pela sociedade brasileira em favor da vivência harmônica entre suas etnias e da preservação do meio ambiente.
Em artigo intitulado “Não basta defender a democracia”, publicado em sua coluna na Folha de São Paulo, o Professor Oscar Vilhena Vieira adverte para o esboroamento do conceito de democracia:
“Enquanto para o campo liberal a democracia é uma forma de governo em que o exercício do poder pela maioria só será legítimo quando balizado pela constituição e em conformidade com os direitos humanos, inclusive direitos de minorias, para populistas muitos desses direitos e balizas constitucionais são descritos como obstáculos espúrios à plena realização da vontade do povo, devendo, portanto, ser abandonados”.
A débil educação, o ressentimento e a cobiça, somados a outros sentimentos menores, engrossam o caldo de violência e ódio que animam desmatadores, grileiros, garimpeiros e aventureiros de toda ordem a enxergarem como inimigos os povos indígenas e os protetores do meio ambiente.
O pior é que boa parcela da população – talvez a sua ampla maioria – aceita ou se cala frente a tais agressões.
A tragédia que assola a TI Yanomami, exponencialmente mais drástica no governo Jair Bolsonaro (2018-2022), é um exemplo claro de quão vulneráveis ainda se encontram os indígenas brasileiros.
A Bahia é o estado brasileiro com a segunda maior população indígena recenseada, conforme apurado pelo IBGE no Censo de 2022, ocasião em que 191.950 pessoas se autodeclararam indígenas. O número corresponde a aproximadamente 12,9% de toda a população indígena do país que, no último balanço, era de mais de 1,4 milhão de pessoas.
A maior parte vive no sul do Estado, na região da Costa do Descobrimento, onde estão localizadas as aldeias dos povos Pataxó, Truká, Tuxá, Atikun, Xucuru-Kariri, Pankararé, Tumbalalá, Kantaruré, Kaimbé, Tupinambá, Payayá, Kiriri, Pankaru e Pataxó Hã Hã Hãe.
Apesar das demarcações e regularizações, casos de exploração e violência ainda fazem parte do cotidiano dos indígenas que vivem nesses territórios, com o registro de diversos homicídios ocorridos nos últimos anos.
O processo de demarcação de um território indígena (TI) é composto por cinco etapas: estudo do território, delimitação, declaração, homologação e regularização.
A declaração e a homologação são competências atribuídas ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Presidente da República, mas a regularização somente é concluída com o registro cartorário da área em nome da União com usufruto indígena.
Os municípios de Santa Cruz de Cabrália, Porto Seguro, Prado e Pau Brasil, localizados no sul da Bahia, possuem TI’s regularizadas. Pelo menos outros 11 territórios já foram reconhecidos pelo Ministério dos Povos Indígenas e três já se encontram em processo de regularização.
Enquanto se aguarda o julgamento final do Tema 1.031 com a confirmação do STF pela rejeição da tese do marco temporal, não se pode perder de vista que a regularização das terras é apenas um passo para a proteção e o efetivo respeito ao povo indígena, à sua autonomia e à sua pluralidade étnica.
É inaceitável que, passados 525 anos do descobrimento, ainda hoje seja preciso combater o preconceito e a discriminação contra os indígenas ao invés de se explorar o conhecimento tradicional, a diversidade cultural e os rituais de cada etnia, tão fundamentais para a preservação do meio ambiente e da cultura brasileira.
Revisitar a Costa do Descobrimento é revisitar a história do Brasil, processo indispensável para a necessária reflexão sobre que país desejamos ser.
Optar por um Estado populista, que busca contornar os princípios constitucionais de garantia, driblar os mecanismos de proteção das minorias e limitar os inadiáveis cuidados com o meio ambiente em favor de uma “liberdade” (nada mais irritante do que a ardilosa cooptação do vocábulo pela extrema-direita para se alcançar exatamente o oposto) para, ao fim e ao cabo, favorecer os interesses da elite financeira que dita as regras da economia mundial equivale a recrudescer e a aceitar a permanência da exploração das riquezas nacionais.
O Brasil não pode voltar a ser colônia.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.
Antônio de Padova Marchi Júnior é Procurador de Justiça MPMG. Mestre e Doutor em Direito pela UFMG. Professor do Curso de Direito do IBMEC. Membro do coletivo “Transforma MP”.