O MP e a erradicação da pobreza: escolha ou missão?

Por Daniela Campos de Abreu Serra, na coluna semanal do Transforma MP no site GGN.


O Ministério Público brasileiro e o objetivo fundamental da República de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais: escolha ideológica ou missão constitucional?

A Constituição Federal de 1988, quando instituiu dentre os quatro objetivos fundamentais da República “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, reconheceu a desigualdade brasileira como um dos principais desafios a serem enfrentados para a construção de uma sociedade que tenha como valor central a dignidade da pessoa humana.

Logicamente que não bastava a promulgação da Constituição de 1988 para que a pobreza e a desigualdade social brasileira deixassem de existir, no entanto, após o novo texto constitucional, ao longo de todos os governos que se sucederam, uns com mais, outros com menos intensidade, as políticas públicas foram sendo construídas nos três níveis (federal, estadual e municipal), em especial, nas áreas de saúde, educação e assistência social, sendo esta última fundamental para a garantia da vida humana com mínimo de dignidade.

Aliás, pela própria natureza da assistência social, não se pode falar em objetivo fundamental da República consistente na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais, sem tratar desta política pública e, justamente em relação a ela, que pretendemos pensar sobre o papel do Ministério Público brasileiro nesta singela reflexão.

Importante esclarecer que não se trata de simplesmente creditar todos os avanços obtidos na construção desta política aos governos do Partido dos Trabalhadores, até porque, ainda no curso dos governos petistas, é possível apontar uma série de críticas ao desenvolvimento da política, tais como a descontinuidade temporal entre a transferência de renda e os projetos de geração de renda com vistas à emancipação e superação do assistencialismo, o despreparo técnico dos profissionais lotados nas áreas afetas à assistência social, a inexistência de acompanhamento especializado das condicionantes relativas à saúde e educação das crianças e adolescentes oriundos de situação de vulnerabilidades, dentre outros. No entanto, após o impeachment da Presidenta Dilma, temos observado retrocessos na política de assistência social que podem comprometer o futuro do “recém-nascido” Estado de Bem Estar Social brasileiro e, consequentemente, inviabilizar a consecução do objetivo fundamental da República de erradicação da pobreza e redução das desigualdades sociais.

Em matéria publicada no portal de notícias da UOL em 11/08/2017 (https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/11/bolsa-…), verificou-se que “o número de beneficiários pagos pelo Bolsa Família em julho registrou a maior redução em relação a um mês anterior desde o lançamento do programa, em 2003. Entre junho e o mês passado, o número de benefícios encolheu em 543 mil famílias”.

Também merece destaque, segundo informações da Frente Mineira em Defesa do SUAS (https://www.facebook.com/frentemineiraemdefesadosuas/), que “o atraso na execução financeira [da política de assistência social] chega a 1 bilhão e 300 milhões, visto que os repasses [federais] aos municípios e estados estão em atraso com parcelas de 2016 e 2017”.

Isso sem falar na própria “Reforma” da Previdência Social, amplamente defendida pelo governo como o “único meio de salvar o Brasil”, que busca alterar o tripé da Seguridade Social do artigo 194 da Constituição Federal formado pela saúde, previdência social e assistência social.

Estes são alguns dos exemplos, no entanto, cotidianamente tem chegado ao conhecimento dos brasileiros medidas governamentais e legislativas que ameaçam as conquistas sociais e contribuem para o desmonte do Estado de Bem Estar Social construído pelo constituinte em 1988, não podendo o Ministério Público brasileiro permanecer omisso ou alheio a estas mudanças, sob pena de, quando der por si, o atraso histórico ser irrecuperável.

Esta subscritora, modestamente, entende que cabe ao Ministério Público brasileiro compreender seu papel em três linhas estratégicas transdisciplinares: segurança pública, corrupção (perpassando não somente o desvio dos recursos públicos, mas a eficiência no gasto e o controle social) e o desmonte do “recém-nascido” Estado do Bem Estar Social brasileiro. E essa compreensão precisa ser feita considerando a eficiência da tecnologia institucional e da gestão da informação do próprio Ministério Público. Para essa breve reflexão, tratamos com mais ênfase sobre a terceira linha, porque as duas primeiras são comumente identificadas como prioridades, relegando a segundo ou terceiro plano, o papel do Ministério Público na consecução dos direitos sociais e, em especial, na erradicação da pobreza e na redução das desigualdades sociais e regionais.

Importante consignar que, apesar de tantos antagonismos inerentes à natureza dialética do Ministério Público brasileiro, temos grandes líderes institucionais com aprofundado conhecimento prático e científico que estão pensando a instituição e fazendo isso a partir da matriz constitucional de 1988. Vejamos alguns exemplos.

O Colega do Ministério Público de São Paulo, Marcelo Pedroso Goulart, produziu farto material teórico sobre a diferença entre o “MP demandista” e o “MP resolutivo” e propõe uma forma de atuação em consonância com as premissas constitucionais, que a partir de 1988 transformaram o Ministério Público brasileiro. Atualmente, Marcelo tem dialogado com a prática através de planos, programas e projetos, pensando outras perspectivas de atuação do Ministério Público que dizem muito mais do seu compromisso com os objetivos fundamentais da República (art 3º da CF), do que com a atividade demandista de judicialização da política pública.

Outro Colega que merece destaque é meu conterrâneo mineiro Gregório Assagra de Almeida, cuja doutrina institucional reconhece o Ministério Público como instrumento constitucional para exercício da garantia fundamental de acesso à justiça e cujo trabalho de assessoria na Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público tem auxiliado na modernização do controle da atividade extrajurisdicional pelas Corregedorias do Ministério Público brasileiro e na elaboração do texto da “Carta de Brasília”, aprovada em sessão pública no 7º Congresso de Gestão do CNMP, em setembro de 2016.

Para finalizar os exemplos, cito a recente notícia sobre a palestra final da Semana do MPMG 2017, “Tolerância e igualdade”, quando a conselheira Nacional de Justiça e ex-procuradora-geral de Justiça paranaense, Maria Tereza Uille Gomes, manifestou sua percepção de que “um dos maiores obstáculos ao enfrentamento da violação dos direitos humanos atualmente pelo MP é a desorganização de dados. A gestão da informação, embora ainda pouco valorizada pelas instituições, foi apontada por ela como um instrumento fundamental para a redução da desigualdade” (http://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/-gestao-da-informacao-e-instr…). Assim, para além dos instrumentos existentes na Constituição Federal e na legislação infraconstitucional com vistas a viabilizar a atuação do Ministério Público na defesa dos direitos sociais, a gestão da informação também precisa ser reconhecida como instrumento para a consecução dos objetivos fundamentais da República e, como tal, deve ser uma preocupação dos membros do Ministério Público brasileiro.

Seria possível citar diversos outros valorosos Colegas que se dedicam à construção da doutrina institucional para o Ministério Público brasileiro, no entanto, as menções ora realizadas são suficientes para exemplificar os argumentos que permeiam a presente reflexão.

Assim, precisamos ter em mente que o Ministério Público brasileiro posto pela Constituição Federal de 1988 vincula todos os membros e servidores aos objetivos fundamentais da República, independentemente de sua posição ideológica quanto ao modelo de Estado que entende filosoficamente mais adequado e, por imperativo constitucional, estamos todos vinculados à consecução da erradicação da pobreza e da redução das desigualdades sociais e regionais, na busca do objetivo maior que é a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.


Daniela Campos de Abreu Serra – Promotora de Justiça (MPMG). Mestre em Serviço Social pela UNESP


 

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