Por Érika Puppim, na Carta Capital.
Como Promotora de Justiça no Estado do Rio de Janeiro há 9 anos, já atuei em diversas Comarcas e em diferentes atribuições, dentre elas, na Violência Doméstica. Sempre me chamou a atenção esses casos onde podemos enxergar a materialização do machismo sobre os corpos das mulheres. Mas semana passada, um caso em especial deixou bem clara a forma como a cultura patriarcal subjulga as mulheres.
Após 7 anos de casamento, 2 filhos, diversas brigas e agressões, Daniele* resolveu dar um basta. Júlio* não aceita o fim do relacionamento, cisma que está sendo “chifrado”. Numa dessas brigas, resolveu pegar um facão, tentando atingir a barriga de Daniele, mas ela conseguiu se proteger e este acabou cortando seu antebraço.
Daniele vai à Delegacia, consegue a medida protetiva. Ao receber a intimação do afastamento, Júlio tomado pela raiva, manda áudios com várias ameaças, numa delas diz: “Pode me prender, mas eu vou fazer uma desgraça com você na frente dos policiais!” Não satisfeito, manda uma foto com o facão com que a lesionou dias atrás.
Na audiência especial, ela mostra o áudio e ouvimos todos na frente da Juíza e dos Policiais. Ele reconhece que “deu mesmo uma coça nela” e mandou o áudio porque estava com raiva. Prisão por descumprimento decretada, sai algemado da audiência direto pra Bangu.
Depois fomos para meu gabinete fazer as degravações do celular dela e ouvimos um que ele falava: “Já gozei na sua cara e agora você faz isso comigo?” Ela abaixa a cabeça e diz que está muito envergonhada, então falei: “Não tenha vergonha! Ele é um covarde, que te agride, te violenta, você é a vítima, não se culpe por isso! Ele é o criminoso! Ele é que devia se envergonhar!”
Ela assente, mas ainda confusa com tudo, afinal foi ensinada a vida inteira preservar a família acima de tudo, mas o pai de seus filhos está indo preso e o sentimento de culpa parece estar presente.
Não é de se espantar que numa sociedade patriarcal, tantas mulheres não consigam romper relações abusivas, pois se encontram presas ao ideal da família “sacralizada”, mesmo que para isso, precisem pagar com seu próprio corpo e às vezes, com a própria vida.
Ao nos deparar com violências de gênero brutais como essa, muitos tentam justificar o ato com uma suposta loucura ou doença do agressor: ‘Ah, esse cara só pode ser louco”, “É um doente mesmo!”. É preciso rechaçar a patologização da violência de gênero, pois os homens agridem mulheres porque encontram no machismo, que enxerga a mulher como sua propriedade, a aceitação social para perpetrarem abusos como esse.
Segundo relatório da ONU, cerca de 87 mil mulheres no mundo foram vítimas de homicídio em 2017. Desse grupo, aproximadamente 50 mil – ou 58% – foram mortas por parceiros íntimos ou parentes. Isso significa que, por hora, no ano passado, seis mulheres foram assassinadas por pessoas que elas conheciam, o que não pode, de forma alguma ser atribuído a alguma doença ou loucura, mas sim a uma violência estrutural em razão da condição de gênero feminino da vítima, e que ainda encontra legitimação social para sua perpetuação.
Como decorrência desse machismo entranhado na sociedade, na quarta passada, dia 7, em uma cerimônia de homenagem aos 13 anos da Lei Maria da Penha, o Ministro da Justiça, afirmou que:
“Talvez nós homens nos sintamos intimidados, talvez nós homens percebamos que o mundo está mudando e, por conta dessa intimidação, infelizmente, por vezes, nós recorremos à violência para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”.
É… talvez Júlio estivesse tão intimidado que cortou o braço de sua companheira com um facão e mesmo recebendo intimação da Justiça sobre a medida protetiva, continuava ameaçando-a e humilhando-a sem nenhum pudor.
Infelizmente, pouco adianta patrulha da PM, com a nova “Ronda Lei Maria da Penha”, para um crime que acontece no recôndito do lar, não adianta penas severas enquanto a cultura do machismo persistir e discursos de autoridades continuarem colocando a vítima como culpada e o homem desresponsabilizado, que apenas reage a algum comportamento considerado “inadequado” da mulher.
É a cultura machista que sustenta a violência de gênero, e enquanto isto não mudar, não há pena de prisão que solucione esse problema estrutural.
Sr. Ministro, homens não estão intimidados com o novo comportamento da mulher “moderna”, porque a violência de gênero sempre foi a base da sociedade patriarcal, pois é a ameaça constante de agressão e impossibilidade de uma vida livre, autônoma e digna, que resultam na dominação masculina. E isso não tem nada a ver com superioridade.
Em razão disso, as medidas preventivas, como centros de atendimento e abrigos à mulher vítima, capacitação de servidores e a educação de gênero nas escolas, são fundamentais para a mudança nessa cultura machista que permeia toda a sociedade e as instituições, podendo trazer a transformação social necessária para vivermos com mais igualdade e menos violência.
O Ministro ainda continuou afirmando que:
“Mulheres são melhores, mas precisam de proteção maior, até por essa condição”.
Sr. Ministro, mulheres não são melhores nem piores. São apenas seres humanos – e não uma “categoria à parte”. Queremos apenas dignidade e respeito.
Érika Puppim é Promotora de Justiça (MPRJ), integrante do Transforma MP
*Nomes fictícios