Publicado no site Conjur, por Alexandre Morais da Rosa.
Na semana passada, escrevi sobre o que se poderia ler durante as férias. Recebi centenas de mails, mensagens no Instagram e no Facebook. Prometi que faria uma coluna apontando algumas dicas de leitura. Sugeri que o desafio seria transcender os limites banais e irrealistas, o que pode se apresentar paradoxal. Será preciso um certo percurso filosófico para entender de onde vem a maneira como aprendemos a realidade e seu caráter precário.
O mundo não existe como tal, nem será possível conhecer o mundo como ele é, salvo pelas lentes de uma teoria que o signifique e que dê sustentação às relações de poder que se mascaram na sociedade, especialmente pela imposição de ideologias de modo sofisticado, a fim de que o sujeito (que adere às regras da linguagem), possa se comportar de acordo.
É claro que você pode objetar que está sentado agora lendo o artigo e acredita, totalmente, que domina a realidade — que ela é aquilo que você vê —, aquilo que você está apreendendo por seus sentidos. Afinal de contas, você acredita naquilo que percebe, nas sensações que experimenta. O problema é que você está sendo manipulado de modo banal e ingênuo. Quanto mais você acredita que domina a realidade, melhor é operado pelo sistema que lhe organiza as ideias. A sensação de autoidentidade é avassaladora no campo do Direito, que justamente nomina e prescreve.
Isso porque ensinam que o Direito deve ser neutro, e o papel da interpretação é o mais alheio possível do ambiente ideológico e das querelas democráticas. Daí que em seguida se articulam discursos de aplicação do Direito de modo objetivo, neutro e universal. Mesclam ingenuidade com aparência de segurança jurídica.
Para não se iludir, todavia, será preciso compreender o desafio de onde provém o discurso. Compreender minimamente a desconstrução (não estou falando de Derrida) do pensamento metafísico no Direito pode ser obtido com a leitura do livro Verdade e Consenso e/ou Hermenêutica Jurídica e(m) Crise, ambos de Lenio Streck. O desafio de superar a descoberta de verdades existentes por métodos de interpretação é condição de possibilidade para se ir adiante no caminho da compreensão do modo como se atribui sentido no Direito. O fenômeno de compreensão, por sua vez, dependerá, depois, de novas escolhas sobre os caminhos teóricos a serem seguidos. Seria ideal ler Crátilo de Platão e compreender o que significa a analítica em Aristóteles. É que o modo de pensar por categorias aristotélico fundamenta, ainda, o como pensamos a realidade.
As discussões são maiores. Precisaremos, depois, ir adiante, quem sabe com Ernildo Stein e Sobre a Verdade. Por enquanto, todavia, o primeiro passo seria compreender o caráter precário e duvidoso da forma como aprendermos a interpretar. O importante é superar a discussão charlatã entre “vontade da norma” e “vontade do legislador”. Talvez você fique um pouco perdido, especialmente se tiver coragem de reconhecer a fraude da dita hermenêutica jurídica. Mas esse se dar conta do modo como somos manipulados abre caminho para enunciação.
Seguirei dando novas dicas. Por enquanto, se você conseguir deixar de ser o pato da hermenêutica jurídica, está mais do que bom. Os que acreditam que conseguem ouvir a voz do legislador (ouvem vozes) ou conversam com textos (descobrem o que diz a lei), no fundo, deliram e acreditam no que é enunciado. Se você parar para pensar, descobrirá que nem o legislador falou com você nem muito menos o texto, sendo que o processo de atribuição de sentido acontece no tempo e no espaço.
Acho que chegamos por hoje. Uma última recomendação: esqueça o que eu disse e siga acreditando em vontade da norma e vontade do legislador porque é aparentemente mais seguro, e todos navegam felizes em delírios compartilhados. Todo delírio é reconfortante. O problema é o preço que se paga em ser amplamente manipulado sem se dar conta. Vá por si. Quem não pensa por si perece também não sabendo nunca quem se é. Duvidar do interlocutor é o passo inicial; você pode iniciar por aqui.
Alexandre Morais da Rosa é Juiz de Direito (SC).