Por Antonio Claudio Linhares Araújo, no GGN.
A pesquisa CNT/MDA, divulgada recentemente, revela dados preocupantes sobre a realidade social brasileira, uma vez que, em diversos tópicos pesquisados sobre a percepção dos brasileiros a respeito do cenário político e econômico, bem como sobre o funcionamento das instituições nacionais, a predominância foi de avaliações negativas e de expectativas nada esperançosas sobre o futuro do país.
O levantamento estatístico esteve centrado na coleta de informações sobre intenções de votos para a próxima eleição presidencial, sendo que neste ponto não há novidade relevante desde os últimos meses: o candidato que detém a preferência esmagadora do eleitorado brasileiro está preso e com sua candidatura sob séria ameaça de ser judicialmente inviabilizada.
Entretanto, a referida pesquisa estendeu a sondagem da opinião pública para temas bem variados e os dados fornecem um retrato da profunda crise que envolve as instituições brasileiras no tumultuado ambiente político em que o país mergulhou desde a interrupção do mandato da presidenta Dilma Rousseff, ou seja, após o golpe travestido de impeachment ocorrido em 2016.
No que se refere à avaliação do Poder Judiciário, foram formuladas perguntas destinadas a coletar a percepção do público sobre três pontos específicos: a qualidade, a confiabilidade e a igualdade de tratamento na atuação da Justiça brasileira.
A avaliação sobre a qualidade da atuação do Judiciário no Brasil é negativa (ruim ou péssima) para 55,7% dos entrevistados, com 33,6% dos entrevistados avaliando a Justiça como sendo apenas “regular” e míseros 8,8% considerando a qualidade da atuação positiva (ótima ou boa).
No item confiabilidade, 52,8,% consideram o Poder Judiciário “pouco confiável”, sendo que 36,5% dos entrevistados responderam a este quesito como “nada confiável”, ou seja, o índice total de avaliação negativa (pouco/nada confiável) alcança o elevadíssimo score de 89,3%. No quesito igualdade, o índice de avaliação repete a péssima percepção do item confiabilidade, pois 90,3% dos entrevistados responderam que a Justiça “não age de forma igual para todos”¹.
Interessante constatar que os números encontrados na avaliação do Judiciário estão bem próximos da análise também extremamente negativa que os brasileiros expressaram na pesquisa a respeito do presidente Michel Temer, tendo em vista que seu governo foi avaliado negativamente por 71% dos entrevistados (com 51% de “péssimo”), observando-se que seu índice de avaliação pessoal alcançou a marca de 82,5% de desaprovação.
Diante de resultados negativos tão expressivos para o sistema de justiça, é interessante buscar outras fontes de análise em pesquisas similares, a fim de afastar possíveis distorções metodológicas.
Pois bem, a Fundação Getúlio Vargas mantém uma pesquisa continuada, de periodicidade anual, destinada à avaliação do sistema de justiça, denominada Índice de Confiança na Justiça no Brasil – ICJBrasil. Os dados oriundos desta pesquisa confirmam os resultados negativos revelados na pesquisa CNT/MDA. No último relatório, publicado em outubro/2017, no item “percepção”, que é medido numa escala de 0 a 10 e tem como objetivo uma avaliação dos entrevistados sobre diversos pontos relacionados à qualidade do serviço judiciário (confiança, custos de acesso, capacidade e rapidez de solucionar conflitos, independência política e honestidade) observa-se que a avaliação sofreu uma queda do já baixíssimo índice de 3,4 para 2,8².
Em outra quesitação desta pesquisa, na qual é sondado o grau geral de confiança em diversas instituições, o Poder Judiciário também vem acumulando sucessivas avaliações negativas, observando-se que seu percentual caiu de 34% em 2013 para 24% em 2017, sendo acompanhado nesta queda pelo Ministério Público, que apenas entre os anos de 2016 e 2017 viu seu índice de confiança cair de 44% para 28%.
Estes dados estatísticos causam espanto, pois demonstram um elevado sentimento de descrédito da sociedade brasileira com as instituições do sistema de justiça, tendo em vista que tanto o Poder Judiciário como o Ministério Público encontram-se em uma franca tendência de queda de sua avaliação popular, tendência esta que se acentua no período do pós-golpe, acompanhando o ambiente de desconfiança e desânimo generalizado que se instalou no país.
Entretanto, é curioso constatar ser cada vez mais frequente entre os operadores do sistema de justiça a afirmação de que os juízes e tribunais precisam ouvir a “voz das ruas”. Especialmente no Supremo Tribunal Federal, tem aparecido com certa recorrência o apelo a uma necessidade de obediência à vontade popular como vetor de interpretação de normas jurídicas e da própria Constituição. O ex-ministro Joaquim Barbosa, por exemplo, notabilizou-se por utilizar o clamor popular para embasar sua postura implacável como relator da Ação Penal 470, angariando com este comportamento grande popularidade junto à imprensa, impulsionada por massivo apoio midiático.
Atualmente, a “voz das ruas” tem voltado à baila nas sessões do STF na forma de um discurso mais sofisticado, conforme se constata das manifestações do ministro Roberto Barroso ao pretender dar uma nova roupagem à velha doutrina constitucional do jurista alemão Carl Schmidt, principal jurista do nazismo, buscando ressuscitar o “sentimento do povo” como princípio inspirador da interpretação da Constituição.
Percebe-se que o clamor popular é costumeiramente utilizado nas decisões judiciais como um recurso retórico que daria legitimidade para a supressão de garantias processuais penais, autorizando a adoção de medidas de força em operações policiais. São exemplos típicos desta postura medidas investigativas de juridicidade intensamente questionadas no meio acadêmico, tais como: a detenção de investigados para interrogatório (sofisticamente chamada de “condução coercitiva”); o uso da prisão preventiva como meio de obtenção de confissões e delações; e o vazamento de informações para imprensa como forma de exposição midiática de investigados.
Todas estas medidas têm caracterizado a denominada Operação Lava-Jato e têm sido endossadas por órgãos de cúpula do Judiciário, chegando-se a afirmar em algumas decisões que a efetividade no combate à corrupção torna necessário que a persecução penal se desenvolva sem observância da legalidade estrita. Entretanto, agindo assim, os órgãos de cúpula do judiciário autorizam um perigoso ativismo judicial em matéria penal que enfraquece a função contramajoritária da jurisdição constitucional, pois o apelo à “voz das ruas” tende a naturalizar-se como recurso linguístico para embasar medidas de exceção, reduzindo a importância dos direitos fundamentais.
Ora, em vista do intenso e crescente sentimento popular de rejeição ao Judiciário, que é revelado pelas pesquisas estatísticas antes destacadas, percebe-se a situação paradoxal do Judiciário: basear suas ações em um discurso de tamanha preocupação com a “voz das ruas”, enquanto que a avaliação da opinião pública sobre seu comportamento é crescentemente negativa. Caberia então perguntar: para onde os operadores do sistema de justiça, especialmente os ilustres ministros do STF, estariam apontando seus ouvidos a fim de escutar a “voz das ruas”?
Talvez os integrantes do pretório excelso entendam que os manifestantes que saíram às ruas com as conhecidas “camisas da CBF” nos protestos a favor do impeachment sejam os grandes portadores do sentimento do povo, ao qual devem prestar reverência em suas decisões.
É bem verdade que nas manifestações pró-impeachment de 2016 havia um intenso apoio às operações anticorrupção e à postura do Judiciário que, à custa da flexibilização de garantias processuais, permitia práticas persecutórias de constitucionalidade questionável. Porém entre estes manifestantes não se encontra uma representatividade significativa da sociedade a ponto de poderem ser considerados para expressar o sentimento do conjunto da sociedade brasileira, pois são pessoas majoritariamente integrantes da classe média e classe média alta, tal como já revelado em pesquisas feitas àquela época. Além disso, estas manifestações de rua foram insufladas por um gigantesco esquema de mídia, tendo em vista que os grandes oligopólios de jornais e televisão do país exibiam um discurso uníssono de apoio e incentivo, sendo também fomentadas por poderosas corporações empresariais, podendo-se assim afirmar que estas expressões de opinião pública foram fortemente dirigidas por setores de elite do poder econômico e midiático, estando assim distantes de um representatividade popular.
Desta forma, a explicação para esse paradoxo pode estar na mais intensa representatividade social presente na expressão da opinião pública coletada nas estatísticas antes destacadas, especialmente no ICJBrasil, pois o universo de coleta é mais amplo e diversificado, representando diversas regiões e classes sociais, de maneira que o sentimento de grande descontentamento com a atuação do poder judiciário revelado nestes estudos devem ser seriamente considerado pelas corporações do sistema de justiça.
Entretanto, é interessante colocar também como objeto de reflexão a própria preocupação do Judiciário com a opinião pública como elemento de influência de seu comportamento institucional. Até agora, o judiciário tem buscado uma sintonia com a “voz das ruas” que está longe de poder ser considerada como fonte de legimitidade de suas decisões. As pesquisas de opinião pública são importantes, pois retratam o sentimento da sociedade sobre a instituição, mas é preciso diferenciar a expressão da opinião pública, mesmo aquela coletada em pesquisas bem organizadas, de um real diálogo do poder judiciário com a sociedade, tendo em vista que este pressupõe a criação de espaços de discussão racional e democrática das demandas sociais.
Na verdade, a pretensão de buscar fundamento para a interpretação de normas constitucionais no clamor popular, ou no sentimento do povo, traz consigo enormes riscos de manipulação política e, por via de consequência, de instrumentalização da própria função jurisdicional para fins políticos ilegítimos. Assim, é preciso que se questione esta própria busca por satisfazer anseios populares, pois o judiciário pode vir a perder completamente sua função estabilizadora do sistema político caso queira se comportar de maneira paranóica, em função do atendimento de clamores circunstanciais, que quase sempre são instrumentalizados pelo poder econômico e midiático.
A real fonte de legitimidade das decisões judiciais, especialmente do STF, está na força democrática que emerge do texto constitucional, cuja integridade e vigência cabe à jurisdição constitucional defender, até mesmo contra opiniões majoritárias do senso comum que conflitem com direitos fundamentais.
Enfim, o Judiciário precisa urgentemente encontrar o seu lugar correto de atuação no conturbado cenário político brasileiro e, neste contexto, a voz das ruas não deve ser supervalorizada pelos juízes, sob pena da atuação mais importante da jurisdição no estado democrático de direito, que é atuar para a garantia dos direitos fundamentais, restar por ser completamente perdida.
Antonio Claudio Linhares Araújo – Membro do Transforma MP, é Promotor de Justiça (MPRN).
¹ Os dados completos da pesquisa CNT/MDA podem ser encontrados em <http://www.cnt.org.br/imprensa/noticia/resultados-136-pesquisa-cnt-mda>
² Os dados completos da pesquisa ICJBrasil podem ser acessados em <https://direitosp.fgv.br/publicacoes/icj-brasil>