Por Júlio Gonçalves Melo*
A Universidade de Brasília teve a honra de contar com Miroslav Milovic como um dos professores de sua Faculdade de Direito. O professor Miro, como era chamado por seus amigos mais próximos, nasceu em 1955, na antiga Iugoslávia, onde graduou-se em filosofia pela Faculdade de Belgrado (1978). Em 1990, concluiu o doutorado em Estado em Filosofia na Universitè de Paris IV (Paris-Sorbonne), com uma tese sobre a Razão Teórica e a Razão Prática, e suas relações com a comunidade ética e política, sob a orientação de J. Chanteur; na Universidade de Frankfurt (Johann-Wolfgang von Goethe), concluiu seu doutorado em 1987, com uma tese sobre Subjetividade e Comunicação, sob a orientação de ninguém menos que Karl Otto Apel, cuja banca de avaliação ainda contava com a presença do filósofo Jürgen Habermas.
Como se sabe, o professor Miroslav circulou o mundo, dando aulas no Japão (Chiba University), Espanha (Universidad de Granada), Turquia (Middle East Technical University, METU) e, é claro, em sua própria terra natal, na Faculdade de Filosofia de Belgrado. Os ventos da história o empurraram depois para o Brasil, até que em 2003, ele passou a integrar o quadro de professores do Programa de Pós-Graduação em Direito da UnB, na qualidade de professor titular de filosofa do direito.
Fluente em várias línguas – alemão, francês, espanhol, inglês, português, italiano, grego e em seu próprio idioma, o sérvio –, o professor Miroslav, como escreveu José Geraldo Souza Júnior, “fez uma linda, profícua e intensa trajetória” na Faculdade de Direito da UnB[1].
Infelizmente, no dia 11 de fevereiro, a comunidade acadêmica foi surpreendida com a triste notícia de que o professor havia falecido em decorrência de complicações contraídas após infecção pela Covid-19. Desde então, familiares, amigos, colegas e alunos, com o semestre a se iniciar, passaram a experimentar uma mistura óbvia de sentimentos como surpresa, tristeza e indignação.
Em um artigo recente sobre Walter Benjamin e a narrativa do tempo presente, o professor Miroslav dizia que “a pandemia do novo coronavírus não era uma contingência, senão a própria imagem da História, da dominação do idêntico”[2]. Como era próprio dos trabalhos feitos por ele, a observação era marcada por uma capacidade teórica de enxergar os principais problemas experimentados pela humanidade nos tempos atuais; porém, mais do que isso, o professor era capaz de mostrar uma sensibilidade profunda para perceber as dores de diversas famílias, sobretudo pobres, que sofriam e ainda sofrem as consequências mais duras da pandemia, sem reduzir essa questão a um problema meramente acadêmico.
Se capacidade teórica não se exige de todos, sensibilidade diante de quem sofre é algo que se pode esperar das pessoas, principalmente de quem tem poder para diminuir o sofrimento dos outros que estão sujeitos a sua autoridade. Essa, porém, não foi a sensibilidade que se viu da maior liderança política do país, por mais que o Brasil estivesse entre as nações com o maior número de mortes no mundo em razão da pandemia; aliás, nem sensibilidade, nem habilidade para pelo menos reduzir a morte e o sofrimento dos brasileiros. Na verdade, o que se viu foi algo muito pior: além da indiferença em relação às pessoas que morriam – “e daí, não sou coveiro” –, liderou uma “estratégia institucional de propagação do coronavírus no Brasil”, conforme pesquisa realizada pela Faculdade de Saúde Pública da USP em cooperação com a Conectas Direitos Humanos[3].
O presidente, às vezes, fala em Jesus, e alguns religiosos dizem que ele faz orações. O fariseu, porém, que dizia de si e para si “Graças te dou, Senhor, pois não sou como os outros”, também pensava que fazia suas orações[4].
Jesus, sem dúvida, era muito diferente: andou e viveu com os pobres, conversou com prostitutas, protegeu mulheres, curou doentes e perdoou criminosos. Se estivesse em carne e osso, Ele próprio, no Brasil, estaria ao lado dos doentes; quem sabe não visitaria o professor Miro e seus alunos. Quem sabe não ouviria a nós, alunos do professor, repetindo algumas palavras que ele dizia: “a revolução é permanente”.
Sim, é permanente, existe e já está em curso. Assim como o espectro que já rondava a Europa em 1848 e o do pai de Hamlet que, mesmo antes, rondava o Reino da Dinamarca, as ideias do Professor Miroslav circulam a capital do país como um espectro, mantendo o curso da revolução de que ele mesmo falava. Ideias que eram muito discutidas em sala de aula, mas que, aos poucos, vão alcançando o coração do Brasil, cercando o centro do poder político, com alunos, outros estudantes, trabalhadores, todos eles em solidariedade com os excluídos e as excluídas em geral, e principalmente os enfermos atingidos pela pandemia, aos quais o professor se juntou e com os quais Jesus sempre esteve.
A luta, por certo, não é fácil, mas uma outra lição de Miro também é importante: “Deus é grande”. Sim, é grande e está do nosso lado. É o Deus que, no meio da marcha dos trabalhadores e, diante do impasse do confronto com as forças do estabelecido, grita ao megafone: ‘Companheiros, avancemos! Deus está do nosso lado!’”[5].
Quantas lições! Antes mesmo de entrar no mestrado em Direito da UnB, já conhecia algumas ideias do professor Miroslav. Ele foi orientador do meu orientador (Juliano Zaiden Benvindo). Meu contato com ele deu-se nas aulas que ele ministrou no semestre passado. Foram as últimas…
Tudo foi muito rápido, porém intenso. Os encontros (virtuais) com o professor duraram alguns meses que passaram com muita velocidade; no último dia de aula, apresentei um trabalho sobre o debate entre Benjamin e Derrida a respeito da violência. Aquele também seria o último dia que o veria…
Na mesma época, fim do ano passado, eu lia exatamente o capítulo da Montanha Mágica em que Thomas Mann relatava a primeira e última conversa, após um longo período de convivência entre Hans Castorp e madame Chauchat, nas dependências do Berghof, um sanatório para o tratamento de tuberculose localizado nas montanhas da cidade suíça de Davos. Os dois se olharam e se admiraram por muito tempo, em silêncio, iniciando um diálogo apenas nos últimos momentos de uma temporada que madame Chauchat estava para encerrar, a fim de dar continuidade a seu tratamento em outros lugares mais distantes.
Infelizmente, ao contrário do romance narrado no livro, que relata o retorno, tempos depois, de madame Chauchat, a partida do professor Miroslav foi definitiva. Deixou saudades inclusive para quem, como eu, teve pouco tempo para conhecê-lo. Mas o que importa é que suas ideias permanecem, e é com base nelas que muitos de nós, seus alunos, deixamos a todos aqueles com um motivo para lutar a seguinte mensagem: Uni-vos, vocês não têm nada a perder, a não ser os grilhões que os oprimem. Em compensação, vocês têm um mundo a ganhar.
*Júlio Gonçalves Melo (Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB; membro do Centro de Estudos Constitucionais Comparados da UnB) e membro do Coletivo Transforma MP
[1] Há uma matéria sobre o texto do professor José Geraldo disponível em: https://noticias.unb.br/artigos-main/4776-miro-compromisso-com-a-filosofia-politica-e-o-mundo#:~:text=Morreu%20nesse%2011%20de%20fevereiro,colegas%20e%20alunos%2C%20absolutamente%20chocados.
[2] O artigo encontra-se disponível em: http://cidade-pandemia.com.br/2020/08/24/pandemia-como-historia/.
[3] Nesse sentido, conferir, por exemplo, a matéria veiculada pelo El Pais, disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2021-01-21/pesquisa-revela-que-bolsonaro-executou-uma-estrategia-institucional-de-propagacao-do-virus.html.
[4] Lucas 18: 11 (Bíblia Sagrada)
[5] A frase é do Pastor Ariovaldo Ramos e pode ser lida em: https://ab-integro.blogspot.com/2009/03/quero-um-mundo-onde-fe-o-amor-e-paixao.html.