O Direito como instrumento e o jurista como arquiteto: a delicada relação entre autocracias, golpes de estado e a profissão jurídica 

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

 Por Rogério Pacheco Alves no GGN

Este ensaio explora a intrincada relação entre autocracias, direito e a profissão jurídica, sustentando duas teses centrais e interligadas: a primeira é que as autocracias necessitam do direito para se legitimarem e se perpetuarem no poder; a segunda é que não existem golpes de estado sem a participação ativa de juristas. O argumento principal é que o direito, longe de ser apenas um obstáculo ao poder autoritário, é frequentemente cooptado e instrumentalizado como uma sofisticada ferramenta de dominação. Nesse processo, os juristas, tradicionalmente vistos como guardiões do estado de direito, podem se transformar nos próprios arquitetos de rupturas institucionais e da consolidação de regimes autocráticos.


De fato, a ideia de que regimes autoritários operam em um vácuo legal, baseados apenas na força, é uma simplificação. Muitos autocratas são, na verdade, mestres na manipulação da lei, entendendo que a coerção explícita gera resistências, enquanto o uso estratégico do aparato legal oferece um caminho mais sutil e eficaz para a consolidação do poder. Nesse contexto, surge o conceito de “legalismo autocrático”, cunhado pela socióloga Kim Lane Scheppele, que o define como o processo pelo qual líderes carismáticos eleitos utilizam os próprios mecanismos da lei para, gradualmente, desmantela as instituições democráticas e as salvaguardas constitucionais. Esses líderes, chamados de “autocratas legalistas”, ascendem ao poder por meio das urnas com um discurso populista e, uma vez no cargo, iniciam uma “revolução constitucional” silenciosa. Usando suas maiorias parlamentares, aprovam leis que, sob uma aparência de juridiciadade, concentram poder no Executivo, neutralizam a oposição e capturam as instituições de controle, como o Judiciário e o Ministério Público. O caso da Hungria sob Viktor Orbán é um exemplo paradigmático dessa tática, mas há outros exemplos mundo afora.


O legalismo autocrático manifesta-se por meio de um roteiro comum, que inclui a captura de instituições de controle (tribunais, agências anticorrupção), a manipulação de regras eleitorais para perpetuação no poder, o ataque à sociedade civil, a movimentos sociais e à imprensa independente, e a reescrita da história com a criação de um “inimigo interno” para justificar medidas autoritárias. Ao usar o direito como sua principal arma, o legalismo autocrático representa um imenso desafio, pois explora a deferência social pela lei, tornando a subversão autoritária difícil de ser reconhecida e combatida.


Se as autocracias precisam do direito, elas precisam também dos profissionais que o manejam, pois não há golpes de estado sem juristas: advogados, juízes, promotores e professores de direito frequentemente desempenham um papel decisivo na derrubada de governos eleitos. Historicamente, a profissão jurídica tem fornecido os quadros “técnicos” e intelectuais para justificar e implementar rupturas, colocando-se na posição paradoxal de ser, ao mesmo tempo, a guardiã e a agressora do estado de direito.


As contribuições dos juristas para os golpes incluem a construção de uma narrativa de “caos” e “ilegalidade” para minar o governo, a elaboração de uma “justificativa jurídica” para a ruptura (invocando o “estado de necessidade” ou a “defesa da Constituição”), a redação de minutas de golpe e de atos institucionais que formalizam o novo regime autoritário e, por fim, a legitimação do novo poder perante o Judiciário e a comunidade internacional. Para tanto, costumam se associar às forças armadas, que se enxergam, historicamente, como poderes moderadores em momentos de crises institucionais. Naturalmente, sempre existem juristas que se mantêm fiéis à democracia, contudo, a história demonstra que a colaboração de uma parte significativa da elite jurídica é, muitas vezes, uma condição necessária para o sucesso e a consolidação de um golpe.


Os golpes militares no Brasil e no Chile são exemplos contundentes. Em ambos, o direito foi um instrumento central para a construção dos regimes autoritários, com a participação indispensável de juristas.


No Brasil, o golpe de 1964 que derrubou o presidente João Goulart contou com amplo apoio da elite jurídica. O Ato Institucional nº 1 (AI-1), redigido por Carlos Medeiros Silva, que ganharia da ditadura uma cadeira no Supremo Tribunal Federal, e Francisco Campos, o jurista do Estado Novo, é um exemplo clássico de legalismo autocrático: suspendeu garantias constitucionais e cassou mandatos em nome de uma “revolução vitoriosa”, enquanto mantinha a Constituição de 1946 formalmente em vigor. Nomes como Alfredo Buzaid e Hely Lopes Meirelles foram cruciais na construção doutrinária que justificou a repressão. Além disso, o Ato Institucional nº 5 (AI-5), o mais duro de todos, foi redigido por Luís Antônio da Gama e Silva, então Ministro da Justiça e professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco.


No Chile, o golpe de 1973 contra Salvador Allende também teve um forte componente jurídico. A oposição usou o Congresso e o Judiciário para criar um clima de ilegalidade. Após a tomada de poder, a Junta Militar foi assessorada por juristas como Jaime Guzmán, arquiteto da Constituição de 1980, que institucionalizou o regime de Pinochet.


Em suma, as autocracias contemporâneas não desprezam o direito; pelo contrário, elas o utilizam como uma poderosa ferramenta de legitimação e dominação, numa verdadeira disputa pelo léxico democrático. Da mesma forma, os golpes de estado não são apenas atos de força bruta, mas contam com a participação decisiva de juristas que constroem a arquitetura jurídica da ruptura. Essa constatação obriga a uma reflexão crítica sobre a responsabilidade ética e política da profissão jurídica na defesa da democracia, especialmente em tempos de crise, quando a fronteira entre a legalidade e o autoritarismo se torna perigosamente tênue. Qualquer semelhança com o Brasil de hoje não será mera coincidência …

Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.


Referências:
ALVES, Rogério Pacheco Alves. Ditadura civil-militar no Brasil: a disputa pelo uso do léxico democrático. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro: MPRJ, n. 52, abr./jun. 2014.
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DEL NEGRI, André. “Os juristas, o regime militar de 1964 e personalidades autoritárias que cruzaram o marco da Constituição de 1988.” História do Direito, vol. 2, no. 3, 2021, pp. 320-42. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/historiadodireito/article/view/82963. Acesso em: 19.set.2025.
Lawyers, Conflict & Transition. “Chile – Lawyers, Conflict & Transition.” Queen’s University Belfast / Ulster University. Disponível em: https://www.lawyersconflictandtransition.org/case-studies/chile/. Acesso em: 19.set.2025.
MACHADO, Rodolfo. Juristas de exceção. In: À espera da verdade: empresários, juristas e elite transnacional. História de civis que fizeram a ditadura militar. Joana Monteleone et alii. São Paulo: Alameda, 2016.
SCHEPPELE, Kim Lane. “Autocratic Legalism.” University of Chicago Law Review, vol. 85, no. 2, 2018, pp. 545-83. Disponível em: https://lawreview.uchicago.edu/print- archive/autocratic-legalism. Acesso em: 19.set.2025.

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