Rômulo de Andrade Moreira no Empório do Direito
O Conselho Especial do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, julgando incidentalmente uma arguição de inconstitucionalidade, declarou a inconstitucionalidade (formal) de uma lei que havia alterado o Código Penal, em razão de um vício procedimental na tramitação do respectivo projeto de lei no Senado Federal, sob o argumento que teria havido supressão de uma das etapas do processo legislativo constitucional, consistente – tal supressão – no impedimento de eventual interposição de recurso para apreciação do plenário da Casa.
Eis a respectiva ementa: “ARGUIÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE. ART. 4º. DA LEI 13.654/18. PROCESSO LEGISLATIVO. VÍCIO NA TRAMITAÇÃO DO PROJETO DE LEI NO SENADO FEDERAL. Da análise da tramitação do projeto de lei que deu origem à Lei 13.654/18, constata-se que houve vício procedimental no Senado Federal, especificamente quanto ao erro na publicação do texto final do PLS nº 149/15 aprovado pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania, que não permitiu o conhecimento da matéria pelos demais Senadores e a eventual interposição de recurso para apreciação do Plenário. A supressão de uma fase do processo legislativo quanto à revogação do inc. I do § 2º. do art. 157 do Código Penal – causa de aumento da pena para o crime de roubo com o emprego de arma que não seja arma de fogo – configura a inconstitucionalidade formal do art. 4º. da Lei 13.654/18, por manifesta violação aos arts. 58, § 2º, inc. I, da Constituição Federal e 91 do Regimento Interno do Senado Federal. Arguição de inconstitucionalidade julgada procedente. Efeitos inter pars e ex nunc.”
Do interior teor do acórdão, destacam-se os seguintes trechos, que elucidam bem a matéria controversa; vejamo-los:
“Na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal, o projeto de lei foi distribuído à relatoria do Senador Antonio Anastasia e, nos termos do parecer do relator reformulado para incorporar ao texto a emenda aditiva apresentada pela Senadora Simone Tebet, foi aprovado pela Comissão, ficando mantida a revogação do inc. I do § 2º. do art. 157 do Código Penal. Importante ressaltar que a matéria foi apreciada pela CCJC em caráter terminativo, em que é dispensada a deliberação pelo Plenário do Senado, salvo se houver recurso subscrito por um décimo de Senadores, nos termos dos arts. 58, § 2º, I, da CF e 91 do Regimento Interno do Senado.”
Nada obstante, e conforme consta do voto da relatora da arguição de inconstitucionalidade, “o texto final do PLS nº 149/15 foi elaborado pela CCJC sem o art. 3º, que previa a revogação do inc. I do § 2º. do art. 157 do Código Penal, e enviado para ciência do Presidente do Senado Federal. Portanto a questão referente à revogação da causa de aumento da pena para o crime de roubo com o emprego de arma que não seja arma de fogo, efetivamente aprovada pela CCJC, não foi submetida aos demais Senadores, por meio de publicação no Diário do Senado Federal, para fins de apresentação do recurso previsto nos §§ 3º. e 4º. do art. 91 do RISF.”
Assim, continua o acórdão: “encerrado o prazo de cinco dias úteis em 20/11/17, sem a interposição de recurso, o texto final foi revisado pela Coordenação de Redação Legislativa, momento em que a revogação do inc. I do § 2º. do art. 157 do Código Penal foi reincluída no projeto de lei, que posteriormente foi encaminhado para análise da Câmara dos Deputados. Acrescente-se que na Casa revisora o PLS nº 149/15 passou a tramitar como PL nº 9.160/17 e foi aprovado um Substitutivo, mas sem modificação do dispositivo que previa a revogação do inc. I do § 2º. do art. 157 do Código Penal, o qual, após retornar ao Senado Federal, foi aprovado pelo Plenário, encaminhado à sanção presidencial e deu origem à Lei 13.654/18, cujo art. 4º. é objeto da presente arguição de inconstitucionalidade.”
Após descrever detalhadamente toda a tramitação do respectivo projeto de lei, o órgão especial do Tribunal de Justiça constatou, acertadamente, “que, de fato, houve vício procedimental no Senado Federal, especificamente quanto ao erro na publicação do texto final do PLS nº 149/15 aprovado pela CCJC, que não permitiu o conhecimento da matéria pelos demais Senadores e a eventual interposição de recurso para apreciação do Plenário.”
Ainda que se pudesse alegar, conforme consta do voto da relatora, “que com a publicação do correto texto final da CCJC não haveria certeza de que seria interposto recurso pelos demais Senadores, fato é que uma fase do processo legislativo foi suprimida, o que não se confunde com matéria interna corporis, em clara violação aos arts. 58, § 2º., inc. I, da CF e 91 do RISF.” (o grifo não consta do original).
Logo, “o vício identificado no processo legislativo é insanável, por isso não há convalidação por meio da sanção presidencial”, destacando-se “que a própria Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado Federal apresentou novo projeto de lei (PLS nº 279/18) ‘para restabelecer para o crime de roubo a causa de aumento de pena do emprego de arma’, e, embora não conste da ‘Justificação’ o defeito na tramitação do PLS nº 149/15, que deu origem à Lei 13.654/18, evidencia o fato de que a matéria carecia de amplo debate à época da sua revogação.”
Destarte, conheceu-se da arguição incidental, em sede de controle difuso, declarando-se a inconstitucionalidade (formal) do art. 4º. da Lei 13.654/18, que revogou o inciso I do § 2º. do art. 157, do Código Penal, com efeitos ex nunc e inter pars.[1]
Com base na decisão incidental da Corte Especial, a respectiva apelação foi julgada improcedente (como não poderia deixar de ser em razão da chamada preclusão hierárquica) tendo sido, então, interposto o RE 1297884, que foi julgado procedente, decidindo-se, na esteira de vários precedentes da própria Suprema Corte (todos exaustivamente citados no acórdão), não caber ao Poder Judiciário examinar a interpretação de normas regimentais estabelecidas pelo parlamento.
A decisão foi tomada na sessão virtual encerrada no último dia 11 de junho, com repercussão geral reconhecida, prevalecendo o voto do relator, Ministro Dias Toffoli, segundo o qual “a jurisprudência do STF é pacífica no sentido de que, em respeito ao princípio da separação dos Poderes, não é possível o controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas, sendo vedado ao Poder Judiciário substituir o Legislativo para dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, matéria de natureza interna.”
Segundo o relator, a decisão do Tribunal de Justiça, ao declarar a inconstitucionalidade do referido dispositivo legal, “restringiu-se à interpretação do art. 91 do Regimento Interno do Senado Federal, sem apontar desrespeito às normas pertinentes ao processo legislativo previstas nos arts. 59 a 69 da Constituição Federal, o que permitiria ao Poder Judiciário revisar os atos praticados pelo Parlamento.”
Assim, decidiu-se não caber ao Poder Judiciário fazer o controle jurisdicional da interpretação do sentido e do alcance das normas regimentais das Casas Legislativas quando não ficar caracterizado o desrespeito às regras constitucionais pertinentes ao processo legislativo.
Com a decisão, assim ficou redigida a tese de repercussão geral aprovada: “Em respeito ao princípio da separação dos Poderes, previsto no artigo 2º. da Constituição Federal, quando não caracterizado o desrespeito às normas constitucionais pertinentes ao processo legislativo, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação do sentido e do alcance de normas meramente regimentais das Casas Legislativas, por se tratar de matéria interna corporis”.
Pois bem.
Como se sabe, o art. 58, caput e § 2º., I, da Constituição, estabelece que o Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação. A estas comissões, em razão da matéria de sua competência, cabem discutir e votar projeto de lei que dispensar, na forma do regimento, a competência do plenário, salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa. Eis o ponto: “salvo se houver recurso de um décimo dos membros da Casa”.
Por sua vez, o art. 91 do Regimento Interno do Senado dispõe caber às comissões, no âmbito de suas atribuições, dispensada a competência do Plenário, nos termos do art. 58, § 2º, I, da Constituição, discutir e votar: projetos de lei ordinária de autoria de Senador, ressalvado projeto de código; projetos de resolução que versem sobre a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei declarada inconstitucional por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal, além de projetos de decreto legislativo relativos à outorga e renovação de concessão, permissão e autorização para o serviço de radiodifusão sonora e de sons e imagens.
Nos termos do seu § 1º., o Presidente do Senado, ouvidas as lideranças, poderá conferir às comissões competência para apreciar, terminativamente, determinadas matérias; encerrada aquela apreciação terminativa, a decisão da comissão será comunicada ao presidente do Senado para ciência do plenário e publicação no Diário do Senado, e, no prazo de cinco dias úteis (contado a partir da publicação daquela comunicação) poderá ser interposto recurso para apreciação da matéria pelo plenário, assinado por um décimo dos senadores e dirigido ao presidente da Casa.
Ora, veja-se que não se trata de uma mera interpretação de norma regimental, mas de uma verdadeira supressão de uma oportunidade recursal dentro do processo legislativo, constitucionalmente exigida, especialmente quando prevê a possibilidade de recurso de um décimo dos senadores.
Portanto, esta possibilidade de recurso para o Plenário, nos casos em que se dispensa a sua competência, está expressamente prevista na Constituição, não se tratando de simples interpretação de disposição regimental; e a Constituição, como escreveu Lassalle, nada obstante ser também lei, “não é uma lei como as outras, uma simples lei: é mais do que isso, é mais do que simples lei.”[2]
Assim, aquela previsão regimental que exige, após o encerramento da apreciação terminativa, seja a decisão da comissão comunicada à Presidência da Casa, a fim de publicação no Diário do Senado, dando-se ciência aos senadores e possibilitando eventuais recursos ao Plenário, deflui indiscutivelmente de um imperativo constitucional.
Não se trata, portanto, de uma interpretação (certa ou errada) dada a um dispositivo regimental, mas uma verdadeira burla ao texto constitucional, o que legitimaria a intervenção por parte do Poder Judiciário, seja em sede de controle difuso ou concentrado.
A propósito, “a resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição, bem como de seu pressuposto fundamental, a vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós.”[3]
Importante sempre lembrar, com Kelsen, que “a busca político-jurídica por garantias da Constituição, ou seja, por instituições através das quais seja controlada a constitucionalidade do comportamento de certos órgãos de Estado que lhe são diretamente subordinados, como o parlamento ou o governo, essa busca corresponde ao princípio da máxima legalidade da função estatal, princípio específico do Estado de direito.”[4]
Observa-se que o processo legislativo é “um conjunto de atos (iniciativa, emenda, votação, sanção, veto) realizados pelos órgãos legislativos, visando à formação das leis constitucionais, complementares e ordinárias, resoluções e decretos legislativos.”[5]
Ainda que ele esteja previsto na Seção VIII do Capítulo I do Título IV da Constituição (abrangendo os arts. 59 a 69), é inegável que o disposto no art. 58 é matéria, ainda que antecedente ao processo legislativo propriamente dito, cuja observância é de rigor, sendo inconstitucional, por vício formal de origem (e insanável), qualquer lei que o viole, suprimindo, por exemplo, uma exigência formal que possibilitaria um recurso dos senadores para o Plenário.
A propósito, a expressão “processo legislativo”, conforme antiga lição de Nelson de Sousa Sampaio, deve ser lida não somente desde um ponto de vista jurídico, mas também sob um aspecto sociológico. Segundo ele, sociologicamente, “refere-se ao conjunto de fatores reais ou fáticos que põem em movimento os legisladores e ao modo como eles costumam proceder ao realizar a tarefa legislativa.” Já do ponto de vista jurídico, observa Nelson Sampaio que “o direito regula a sua própria criação, estabelecendo as normas que presidem à produção de outras normas, sejam normas gerais ou individualizadas.”[6]
Obviamente, como prevê o próprio texto constitucional (art. 58, § 2º., I), nem sempre o projeto de lei, após a sua aprovação na comissão para a qual tenha sido enviado, seguirá para o respectivo Plenário; mas, de toda maneira, ainda nestes casos excepcionais, o texto constitucional possibilita que haja recurso de um décimo dos senadores (ensejando o seu encaminhamento para o Plenário), permitindo-se que “cada parlamentar tenha a oportunidade de apresentar sua posição pessoal, cuja finalidade é influir na votação subsequente por seus pares, quando terão direito à palavra.”[7]
Conforme Canotilho, “a doutrina tradicional considera que os vícios formais da lei incidem sobre o procedimento constitucionalmente estabelecido para a formação das leis e sobre o acto-lei, como momento terminal desse processo.” Para o jurista português, “hoje, põe-se seriamente em dúvida se certos elementos tradicionais não reentrantes no processo legislativo não poderão ocasionar vícios de inconstitucionalidade.”[8]
É indiscutível que, conforme consta do voto do relator, “em respeito ao princípio da separação dos poderes, previsto no art. 2º da Constituição Federal, é defeso ao Poder Judiciário exercer o controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas”, mesmo porque, conforme Häberle, “os tribunais devem ser extremamente cautelosos na aferição da legitimidade das decisões do legislador democrático.”
Nada obstante, “existem leis, como as reformas do Código Penal, que despertam grande interesse na opinião pública, provocando discussões permanentes, aprovadas com a participação e sob o controle rigoroso da opinião pública pluralista. Ao examinar essas leis, a Corte Constitucional deveria levar em conta a peculiar legitimação democrática que as orna, decorrente da participação de inúmeros segmentos no processo democrático de interpretação constitucional.”[9]
Portanto, no caso ora analisado, deveria a Corte Suprema confirmar a decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, reconhecendo a inconstitucionalidade da lei, em razão de vício formal na tramitação no Senado Federal, pois não se tratou de uma simples interpretação de norma regimental, mas de uma afronta clara ao texto constitucional.
[1] Incidente de Inconstitucionalidade nº. 2018.00.2.005802-5, Relatora Desembargadora Vera Andrighi (DJ-e 08/11/2018); acórdão integralizado em embargos de declaração, sendo relatora designada a Desembargadora Carmelita Brasil (DJ-e 15/04/2019).
[2] LASALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. Rio de Janeiro: Lumen Juris Editora, 2010, p. 8.
[3] HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 32.
[4] KELSEN, Hans. Jurisdição Constitucional. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p. 239 (o grifo não consta do original).
[5] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 496.
[6] SAMPAIO, Nelson de Sousa. O Processo Legislativo. São Paulo: Saraiva, 1968, pp. 1 e 2.
[7] TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 825.
[8] CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1305.
[9] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional – A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997, pp. 44 e 45.