No processo penal feriado não é final de semana

Artigo do Procurador de Justiça e membro do Coletivo Transforma MP, Rômulo Moreira Leite, no Empório do Direito. 

 

Ao julgar o Recurso Especial nº. 1.927.325, o Superior Tribunal de Justiça decidiu não ser possível usar a similaridade dos conceitos de “final de semana” e “feriado”, com o fim de ampliar as restrições ao direito de locomoção de um réu, restrições estas já fixadas em sentença (homologatória de delação premiada) transitada em julgado.

Com esse entendimento, o relator, Ministro Ribeiro Dantas, deu provimento ao referido recurso especial, afastando a obrigação de recolhimento domiciliar integral nos dias feriados, fixada já depois pelo juízo da vara de execuções penais, ainda que a sentença tenha se limitado a determiná-la apenas nos finais de semana, conforme acertado com o Ministério Público Federal quando da celebração do acordo de delação premiada.

Segundo constava do referido acordo, o réu usaria tornozeleira eletrônica por dois anos, com recolhimento em sua residência no período noturno compreendido entre as 22h e as 6h, nos fins de semana.

Após o acordo ter sido homologado por sentença, e depois do respectivo trânsito em julgado, o juízo da vara de execuções penais decidiu ampliar os termos do acordo, obrigando o acusado a permanecer em casa também durante os feriados.

Já em sede de apelação, o Tribunal Regional Federal da 4ª. Região confirmou a sentença homologatória, por entender que “o cumprimento da pena é a regra, e os benefícios previstos em acordos de colaboração são a exceção”; assim “os termos do acordo deveriam ser interpretados de forma que as sanções previstas, ainda que menos graves do que o recolhimento à prisão, sejam, de alguma forma, executáveis.”

Inconformado com a decisão do Tribunal Regional Federal, a defesa recorreu para o Superior Tribunal de Justiça, tendo sido decidido, nos termos do voto do relator, que “o posicionamento da Justiça Federal paranaense no caso configurou verdadeira analogia in malam partem, vedada na jurisprudência brasileira.”

Segundo consta do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, “a inclusão de ´feriado` ao lado de ´final de semana`, como antítese de ´dias úteis`, só serviu para aumentar as restrições ao condenado. A mera necessidade de realizar esse raciocínio analógico, na verdade, já demonstra sua fragilidade. Em sede sancionadora, é absolutamente inviável o cumprimento de pena sem prévia cominação legal — ou, no presente caso, sem a anterior previsão no acordo de colaboração —, nos termos do art. 1º. do Código Penal, sendo inadmissível a complementação de eventual deficiência da redação do ajuste, quando já homologado por decisão transitada em julgado, a fim de agravar a posição do apenado.”

Para o relator, “a manutenção do acórdão recorrido violaria, a um só tempo: (I) a vedação à analogia in malam partem, pois a extensão da limitação aos feriados teve por fundamento a sua similaridade com os finais de semana; (II) a eficácia preclusiva da coisa julgada, uma vez que o acordo foi objeto de decisão judicial já acobertada pelo trânsito em julgado; e (III) a própria boa-fé objetiva, considerando que uma das partes do acordo pretendeu surpreender a outra, após sua celebração e homologação, com regra antes não prevista. A confiança legitimamente investida pelo colaborador no aparato estatal restaria, deste modo, completamente frustrada, em detrimento até mesmo da credibilidade do instituto da colaboração premiada.”

Pois bem.

Correta foi a decisão proferida no acórdão ora comentado, aliás, na esteira de outros julgados do próprio Superior Tribunal de Justiça, no sentido do absoluto descabimento da aplicação da analogia in malam partem no processo penal (incluindo a fase de execução penal), afinal, nada obstante o art. 3º. do Código de Processo Penal permitir que se utilize a analogia (ou a aplicação analógica) no processo penal, tal possibilidade só é possível se não for contrária aos direitos e garantias inerentes à condição de acusado.

A propósito, e como se sabe, “via de regra, fala-se em analogia quando uma norma, estabelecida com e para uma determinada facti species, é aplicável a uma conduta para a qual não há norma, havendo entre ambos os supostos fáticos uma semelhança.”[1]

Ora, não se proíbe, muito pelo contrário, a analogia como forma de (auto) integração das normas de processo penal, pois, como ressaltado acima, o próprio Código de Processo Penal assim o permite, ao se referir expressamente à aplicação analógica.

Aqui, necessário ressaltar que não se deve confundir a analogia (ou aplicação analógica) – como método de autointegração da norma – com interpretação extensiva e interpretação analógica, pois, no primeiro caso, há uma lacuna a ser suprida, enquanto que, no segundo caso, trata-se de uma norma já existente, mas que permite uma ampliação do seu alcance.

Ferrara, explicando bem esta diferença, afirma que a analogia “aplica-se quando um caso não é contemplado por uma disposição de lei, enquanto a interpretação extensiva pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando num sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra.”

Assim, segundo o mesmo autor, “enquanto a interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vontade legislativa já existente – revelando o sentido daquilo que o legislador realmente queria e pensava -, a analogia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, dum caso não previsto, para o qual não existe uma vontade legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes, relacionando-se com casos em que o legislador não pensou, e vai descobrir uma nova norma inspirando-se na regulamentação de casos análogos.”[2]

Feita esta distinção necessária, especialmente em razão do nosso Código de Processo Penal a ela fazer referência expressa no referido art. 3º., observa-se, em continuidade, que na aplicação analógica é preciso atentar para a natureza da respectiva norma, conforme lição de Florian, de tal maneira que “se se trata da liberdade pessoal, as limitações à mesma devem ser interpretadas em sentido estrito, em virtude do conhecido princípio in dubio pro reo, proclamado secularmente pelos penalistas, e admitido em todos os povos cultos.”

Florian, então, estabelece o seguinte critério geral e metodológico: “onde a lei não dita mandatos ou proibições, pode-se permitir uma margem de liberdade ao juiz e às partes, ainda que sempre conforme aos fins do processo e aos princípios fundamentais que o regem.”[3]

Neste mesmo sentido, Garcia-Velasco, após afirmar ser vedado o uso da analogia em relação às normas de Direito Penal, em razão do aforisma nullum crimen sine previa lege, anota ser “permitido e frequentemente necessário o seu uso no processo penal, que não define crimes, senão modos de julgar; mas a sua utilização deverá ser feita de forma moderada, reduzindo-a aos limites da imprescindibilidade e da concretude, para completar preceitos ou instituições de Direito processual formal, reguladora das puras formas do procedimento, não devendo ser empregada em disposições de Direito processual material que contém, com mais frequência que em outros processos, preceitos que afetam direitos proeminentes das partes.”[4]

Também Aragoneses já advertia, fazendo um paralelo entre as leis penais e as leis processuais penais, para o fato que quando a lei possa “produzir um determinado efeito prejudicial para o acusado, a interpretação deve ser restritiva”, citando como exemplo normas que afetam “a liberdade pessoal e a propriedade dos cidadãos (medidas cautelares), as que, por sua similitude com as penas, exigem esse tratamento de aproximação com os critérios interpretativos das normas penais materiais.”[5]

Assim, em definitivo, onde se lê “final de semana” não se pode ler “feriado”, nem vice-versa!

Notas e Referências

[1] FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. São Paulo: Atlas, 1994, p. 300.

[2] FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. Coimbra: Arménio Amado – Editor, 1987, pp. 162 -163.

[3] FLORIAN, Eugenio. Elementos de Derecho Procesal Penal. Barcelona: Bosch – Casa Editorial, 1933, pp. 41 e 42.

[4] GARCIA-VELASCO, Miguel Ibañez. Curso de Derecho Procesal Penal. Madrid: Universidad de Madrid – Facultad de Derecho, 1969, p. 38.

[5] ALONSO, Pedro Aragoneses. Instituciones de Derecho Procesal Penal. Madrid: 1976, p. 65.

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