Artigo de Gustavo Roberto Costa* no GGN
Bolsonaro, com seus inúmeros arroubos autoritários, ainda não conseguiu impor sua vontade sobre as instituições e sobre a sociedade, que, na medida do possível, têm resistido
O coronavírus é grave. Quem quer que negue esse fato (notadamente se for titular de um mandato popular) é um irresponsável incorrigível. São necessárias inúmeras medidas, como o distanciamento social, o uso de máscaras, de álcool em gel, testes em massa, profissionais de saúde capacitados, leitos em UTI e outras, para o adequado enfrentamento da pandemia. Nada disso é fácil e exige grandes sacrifícios por parte da população.
Mas isso não quer dizer que soluções jurídicas altamente autoritárias devem ser aceitas acriticamente pela sociedade. A calamidade pública não é situação que permite a restrição de direitos fundamentais como a liberdade de locomoção. Se a Constituição Federal estabeleceu que somente os estados de defesa e de sítio (cujo formalismo é rigoroso) permitem a restrição de alguns direitos, são somente essas hipóteses – e nenhuma outra – que a permitem.
Ora, como pode um presidente da República, para a limitação dos mais caros direitos (artigos 136 e 137 da CF), ter que ouvir os conselhos nacional e de defesa nacional e, posteriormente, solicitar autorização do Congresso Nacional, a fim de adotar medidas com prazo certo de duração (máximo de 60 dias), e um Prefeito, por exemplo, poder fazê-lo mediante decreto (ato unilateral)? Como pode um juiz de primeiro grau, como aconteceu no Maranhão, decidir quem pode e quem não pode sair de casa?
Como podem os que se dizem democratas concordar com a prisão de pessoas que estão em via pública ou na praia, sozinhas, sem causar qualquer risco de propagação do vírus? Como se pode concordar com o fechamento de espaços públicos para a prática de esportes individuais, se o risco de contágio, nesse caso, é perto de zero (peço aos infectologistas que me corrijam se houver equívoco)? Surfar virou caso de polícia em municípios como Guarujá.
Como se pode concordar com o autoritarismo da Prefeitura de São Paulo, que decidiu pelo rodízio total, 24 horas por dia, dia sim dia não, para metade da frota? Como ficam aqueles que dependem de seus carros para o trabalho, como é o caso dos motoristas de aplicativo?
O governo do Distrito Federal, para não ficar atrás, estipulou multa de até R$ 2.000,00 para quem não usar máscaras (razoabilidade zero). Pelos governos de São Paulo e Rio de Janeiro foram proibidas ainda (a cereja do bolo) manifestações de qualquer tipo – o sonho de todo aprendiz de ditador.
Defender que a restrição de direitos (inclusive por decretos e por decisões judiciais) é a única forma de combater a pandemia lembra um certo desembargador, que defendeu as inúmeras ilegalidades da chamada operação Lava-Jato em razão de “problemas inéditos requererem soluções inéditas”.
O que se exigem são medidas efetivas por parte do Poder Público, a fim de testar o número máximo de pessoas, localizar aquelas que estão infectadas e isolá-las. Instituir a quarentena se for preciso. Impedir aglomerações. Mas, ao invés de perseguir o vírus, os governos resolveram perseguir os cidadãos e cidadãs (com a truculência já conhecida).
Como devem fazer os trabalhadores que não foram liberados do trabalho, e que estão trabalhando em péssimas condições de proteção contra o vírus? Devem aceitar sem protestar? E os trabalhadores que estão sendo demitidos aos montes, agora sem a intermediação dos sindicatos? Devem simplesmente resignar-se? E as comunidades que estejam eventualmente sofrendo violência policial? Também não podem se manifestar em razão da “quarentena”? Devem apanhar caladas?
Deve o povo aceitar a miséria de R$ 600,00 oferecida pelo governo federal calado? Devem aqueles que estão proibidos de trabalhar, mas têm pouca ou nenhuma condição de se manter dignamente, aceitar bovinamente o pouco caso com o qual são tratados por governos como o de São Paulo? Isso sem falar que qualquer pessoa que conviva na periferia dos grandes centros sabe que, lá, a vida está próxima do normal. Poucos podem se dar ao luxo de “ficar em casa”.
Rasgar a Constituição, em nome do combate ao coronavírus, pode ter resultados nefastos num futuro próximo. Bolsonaro, com seus inúmeros arroubos autoritários, ainda não conseguiu impor sua vontade sobre as instituições e sobre a sociedade, que, na medida do possível, têm resistido. Mas alguns movimentos ditatoriais rodeiam o Brasil (e outros países do mundo), e, se não estivermos atentos, levarão ao fim do Estado de Direito.
Que os que se dizem democratas e progressistas levantem-se, e não aceitem a implantação desse verdadeiro estado policial e de vigilância.