Por Ana Gabriela Brito Melo Rocha, no GGN.
Buscando ter um tempo para contemplar a força desafiadora da vida, mormente depois de um ano complexo, refugiei-me em Morro Grande, localidade de Itamonte/MG. Mais do que meu corpo, minha mente implorava por encontros sinceros e silêncios. Na manhã do último dia do ano de 2018, reconheci meus mais profundos desejos em uma cena fortuita mas de singular vitalidade.
Sentei respeitosamente em uma árvore, a qual, por um capricho da natureza, cresceu deitada, admirando o passar ritmado das águas. Pouco tempo depois, chegou um grupo que, dada a minha necessidade de quietude, talvez nem me chamasse a atenção, não fosse pela conduta de três garotas.
As meninas, que aparentavam ter entre 10 e 13 anos, vestiam-se de jeito semelhante: shorts jeans, sandálias rasteiras e camisetas coloridas. Cobriam-se de uma irmandade evidente. Sem qualquer cerimônia, vivazes, festejaram nas frias águas empossadas, e não demorou para que iniciassem a subida das pedras da Cachoeira do Escorrega.
A intrepidez delas me encantou. A menor ia à frente, como que guiando as demais. A segunda, fisicamente semelhante à pequena grande líder, seguia segura. A terceira, de cabelos mais curtos e passos ligeiramente temerosos, tinha seu ritmo próprio.
Alcançado o topo, as duas primeiras lançaram-se plenas na ladeira de pedras e águas, na mesma ordem em que subiram. A última, contudo, hesitou e, receosa, sentou-se nas pedras. “Estou com medo! Alguém me ajuda a descer?”, disparou firme, em tom alto.
Fui imediatamente invadida por intensa admiração pela coragem daquela garotinha. Pensei na miríade de experiências as quais abortei porque, paralisada pelo medo, retrocedi. A naturalidade com a qual ela, obstinada a prosseguir, pedia auxílio sem temor de parecer frágil, inferior, ou de ser alvo de brincadeiras que a diminuíssem era surpreendente. Em tempos de desfiles de vidas e pessoas perfeitas em redes sociais, a declaração autêntica e o pedido valente da menina escancaravam, na minha cara, a coragem dela, muito maior que a exigida para descer a Cachoeira do Escorrega. Eu quis gritar algo para incentivá-la a se atirar nas águas. Ela já havia se tornado minha heroína.
É fato que eu, se piscava, o fazia muito espaçadamente para não perder a beleza do ato. Todavia, em poucas piscadelas, antes que eu pudesse formular alguma fala encorajadora, as amigas retornaram ao cume, atendendo ao chamado. Poderiam, como eu ensaiei, ter se limitado a gritar palavras motivadoras. Porém, foram ao encontro da amiga. Aguardei pelas explicações que, na minha cabeça, seriam fornecidas sobre a facilidade da descida ou o melhor modo de se lançar. Minha protoempatia não podia alcançar, até então, o real poder do pertencimento.
Despidas de qualquer ar professoral, as ajudantes se propuseram, de plano, uma descida conjunta. E assim o fizeram. Logo após a guia deslizar, seguiram, literalmente juntas, as outras duas. A garota que chamou pelas demais desceu entre as pernas da amiga.
Mal tive tempo de degustar aquilo que acabara de testemunhar e visualizei as três, na mesma ordem, novamente subindo as pedras da cachoeira. No meio do caminho, minha ídola escorregou e, surpreendida pelo inesperado, foi compelida a enfrentar sozinha boa parte do escorrega natural. Meu coração acompanhou aquela descida desajeitada com ansiedade e apreensão. Aquilo, de alguma maneira, diminuiria o destemor da garota de superar os próprios limites? Seria a rasteira do destino tomada como uma punição do Universo pela ousadia de insistir?
Interrompeu meus pensamentos sobre os possíveis desdobramentos negativos do escorregão involuntário outra subida do trio de amigas. Dessa vez, a menor, ainda na vanguarda, orientava a terceira sobre os locais a serem pisados. A menina do meio se apossou da corda que atravessava as pedras da cachoeira e que estava amarrada em duas árvores de lados opostos, entregando-a à amiga que vinha atrás. Atenta às instruções e com as mãos na corda, a garota chegou ao ponto da descida com as amigas e decidida, sem ajuda, escorregou logo após as duas.
Vibrei e entrei em gozo perene. Mais uma vez eu estava enganada. A queda desavisada, longe de se tornar um trauma, fez a menina encontrar sua potência e perceber que ela podia escorregar sozinha.
Um único livro – Sociedade do cansaço, do filósofo coreano Byung–Chul Han – despertou-me para a imprescindibilidade dos momentos de contemplação. Contudo, foram inúmeras as leituras sobre Justiça Restaurativa, Comunicação Não Violenta, Constelação Familiar, Educação e outros, além de cursos e práticas que me permitiram compreender a grandeza e a desejabilidade das relações daquelas garotas com elas mesmas, entre elas e com a natureza. Numerosas horas dedicadas à desconstrução de um arcabouço cultural de desconexão e violência, alicerçado em relações de dominação balizadas pelo controle, pela assimetria e pelo autoritarismo, que sequer percebemos, não raras vezes.
As três garotas, entretanto, nas relações de parceria, exalavam sensibilidade e respeito em sabedoria inata e intuitiva.
Aproveito o ensejo para recomendar a leitura da envolvente obra O poder da parceria, da socióloga, professora e bacharel em Direito Riane Eisler. A autora austríaca, vítima do regime nazista, ao discorrer sobre a costumeira alegação do senso comum de que seríamos pré-programados para relações dominadoras, alerta que são pouco analisados os escritos de Charles Darwin acerca da evolução no nível humano, bem como que geralmente é ignorado o lado da evolução do amor, da empatia e dos cuidados com os filhotes. Segundo a escritora, olvida-se que a empatia e o acolhimento desempenham um papel crucial na sobrevivência ou extinção de muitas espécies e de que todos os mamíferos precisam de certa dose e proteção e cuidados de seus pais para os filhotes sobreviverem. Assim, conclui, “a capacidade e a necessidade de sentir empatia e cuidar dos outros estão embutidas na biologia de nossa espécie, sendo parte de nossa herança evolutiva”1.
Na biologia da nossa espécie e, portanto, tanto de machos como de fêmeas, frisa-se. Se tal conclusão fizer parte daquilo que muitos e muitas depreciam com o uso da vaga expressão “politicamente correto”, que seja eterno e cada vez mais amplo o reinado deste. Aqui, é oportuno revisitar uma fala de Mahatma Gandhi, também lembrada por Eisler, sobre a perigosa confusão entre o habitual, i.e., o culturalmente construído e repassado a gerações, e o natural, o orgânico. Por apego às tradições, é comum que tomemos por naturais a comunicação violenta, a sujeição de grupos politicamente minoritários, a relação predatória com a natureza, as estereotipadas associações da masculinidade com a violência e a dominação ou do feminino com os trabalhos e as ações de cuidado e os papéis de gêneros, por vezes abrigados sob “metáforas” das cores azul e rosa.
Se queremos paz, algo que não diz respeito à ausência de conflitos, mas à forma com a qual lidamos com estes, precisamos estar atentos aos nossos sentimentos e necessidades e, igualmente, aos sentimentos e necessidades de todas as formas de vida que nos rodeiam. Temos o dever de perceber os modelos culturais causadores de dor que temos reproduzido e de construir relações diferentes com a natureza, conosco, em nossos lares, no ambiente de trabalho e em nossas comunidades. É fundamental que criemos condições que incentivem relações de cuidado e acolhimento, em vez de inibi-las.
Que sejamos capazes de fazer a escuta ativa dos sentimentos e necessidades próprios e alheios, que tenhamos espaços para expressar todas as nossas possibilidades e que nos livremos dos tiranos que nos habitam! Acima de tudo, que nos conscientizemos do nosso papel de coautores da vida individual e coletiva.
Mais do que um ano novo, desejo um mundo novo, a ser erguido com o resgate, por cada um e por cada uma, do melhor que há em nós.
Registro, neste espaço, minha gratidão pelas três mestras da manhã do dia 31 de dezembro de 2018.
Ana Gabriela Brito Melo Rocha é Promotora de Justiça em Minas Gerais e membra-fundadora do Coletivo Por Um Ministério Público Transformador
1 RIANE, Eisler. O poder da parceria. tradução Marcos Fávero Florence de Barros. São Paulo: Palas Athena, 2007, p. 54.