Por Érika Puppin, no Brasil de Fato.
Como promotora de Justiça há oito anos, que atuou na Vara da Infância e Juventude Infracional da Capital do Rio de Janeiro durante quase todo o ano de 2017, fazendo uma média de 10 audiências por dia, essa declaração me chamou atenção. Especialmente em razão de um fato objetivo gerar visões tão distorcidas e tacanhas.
É notório o número alarmante do abandono paterno no Brasil. Segundo o Censo Escolar de 2011, há 5,5 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento. Essa realidade é ainda mais presente nas camadas mais vulneráveis da população. Tanto que no MPRJ existem programas como o “Em Nome do Pai” para buscar o registro paterno.
Mas a questão não se limita ao registro, a dificuldade principal é os pais estarem presentes, criando seus filhos, assumindo sua responsabilidade e dever familiar. E logicamente, isso não se limita à pensão alimentícia, que mal pagam.
No dia-dia da Vara da Infância, é comum os adolescentes não terem registro paterno, ou, quando têm, o pai não é presente em sua vida. Os pais que comparecem às audiências são minoria. Geralmente dizem que não têm convívio com o filho, mas a mãe estava no trabalho e lhe pediu para comparecer.
Já atuando na Vara de Família, o que mais vejo são mães que cobram pensão e pedem para obrigar o pai a buscar o filho no fim-de-semana, pois passam meses sem ver o filho, que anseiam por esse encontro. Então, temos que informar que a visita é um direito paterno e da criança, mas não há previsão legal para obrigar o pai a buscar seu filho nos dias de visitação.
Diante desse quadro, a conclusão a que chegam é: “uma mãe e uma avó não têm condição de educar bem uma criança na favela.” Por que ao invés de colocar a culpa sempre na figura materna, não se responsabiliza quem deveria ter assumido seu dever – o pai ausente? A cultura patriarcal continua enxergando o filho como sendo exclusivamente da mãe: “quem pariu Mateus que o embale!”.
A mãe que para sustentar sua família, precisa sair às 6h, pegar 2 ou 3 conduções, passar em média 4 horas no trânsito por dia, e chega à noite em casa, tendo que cuidar da comida, da roupa e da casa, com auxílio de sua própria mãe idosa é “incapaz” de educar seus filhos? Tudo isso vivendo numa comunidade sob domínio de facções criminosas por um lado e convivendo com a opressão e confrontos com polícia militar por outro.
Para além da responsabilidade paterna, vamos falar da responsabilidade estatal.
O investimento social é parco: não há educação de qualidade que atraia o jovem; não existe escola em tempo integral; profissionalização – passa longe; esporte e lazer então, é pedir demais. Mas dinheiro para intervenção e Operação Lei e Ordem, tem. Apenas em 2018, foram mais de R$ 1 bilhão cedidos pela União para essas ações.
Os CREAS do Município do Rio de Janeiro simplesmente não dão conta de atender os adolescentes que cumprem medidas em meio aberto, não conseguem fazer um acompanhamento de qualidade individualizado, não existe vaga nem mesmo para cumprir o serviço à comunidade previsto no ECA.
Em reunião com Secretaria de Assistência Social foi dito que há grande dificuldade de se conseguir convênios para prestação de serviço porque as empresas “não querem esses meninos lá”, há dificuldade até mesmo com outras Secretarias do próprio Município que não querem receber “esses meninos porque dão problema”.
A cultura machista do abandono paterno, a omissão sistemática estatal e o preconceito contra adolescentes pretos, pobres e favelados, ainda mais se já tiverem o estigma de infrator é que precisam ser debatidos publicamente na sociedade brasileira, onde as famílias compostas por mães e seus filhos já chegam a 11,6 milhões.
Já estamos em 2018, e não é mais possível admitir a culpabilização das mulheres mães, que precisam arcar sozinhas com a omissão dos pais ausentes, do Estado negligente e da sociedade preconceituosa.
Érika Puppim é promotora de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro e integrante do Coletivo Transforma MP.