Por Daniel Serra Azul Guimarães, no GGN.
O momento de profunda instabilidade institucional por que se passa no Brasil desde a ruptura promovida pelo Legislativo em 2016, com apoio da mídia empresarial, de certos grupos sociais e, em certa medida, com o concurso de setores do sistema de justiça, impõe uma reflexão cautelosa e franca, corajosa e humilde, para que possamos evitar que, por nossas mãos, sejam reiteradas iniquidades que deixaram feridas ainda abertas na história recente da humanidade, da América Latina e de nosso país.
O processo democrático foi interrompido – é cada vez mais difícil negar isso – e alguns setores do sistema de justiça, movidos por um ingênuo ideal de universalização da aplicação da lei penal, somado a uma cândida crença em uma estratégia repressiva para afastar, de uma vez por todas, sujeitos e grupos impuros do processo político, têm, consciente ou inconscientemente, concorrido para a veemente negação do projeto democratizante da Constituição Cidadã.
É por isso que o momento exige, como já afirmado acima, muita humildade e coragem, além de postura reflexiva, o que é um grande desafio em um meio em que cada vez mais profissionais são formados a partir de livros que ensinam um direito “simplificado”, “descomplicado” ou coisa semelhante, atendendo a uma demanda crescente por soluções técnicas “de prateleira” que se encaixem, sem maior esforço, em estratégias concebidas individualmente ou por pequenos grupos a partir de crenças e valores extraídos do senso comum.
A razão crítica nunca se fez tão necessária, o esforço teórico heterodoxo, voltado à construção de práticas transformadoras conscientes e consequentes, é urgente entre nós, dada a armadilha fisiológico-oligárquica que parece ter aprisionado setores consideráveis do Ministério Público Brasileiro.
Segundo o Índice de Confiança na Justiça (ICJ), da Escola de Direito de São Paulo (FGV), entre 2016 e 2017, a confiança no Ministério Público despencou de 50% para 28%. O fenômeno certamente é multicausal, mas uma causa me parece indubitável: Nem o mais otimista e menos autocrítico dos membros do Ministério Público Brasileiro arriscaria sustentar que temos apresentado bons índices de efetividade no tocante à afirmação de direitos que contribuam para a concretização do projeto de sociedade democrática insculpido na Constituição de 1988.
Leia também: Do rigor punitivo à educação de gênero: Os desafios do enfrentamento à violência contra a mulher
As “novas” missões atribuídas à instituição pelo texto constitucional (prestes a completar trinta anos) têm esbarrado em bases institucionais (materiais e culturais) anacrônicas. Um exemplo disso é a discrepância entre a quantidade de órgãos de execução voltados à manutenção da ordem e preservação de interesses patrimoniais privados e daqueles pertinentes à afirmação dos direitos fundamentais e promoção das reformas sociais civilizatórias determinadas pelo constituinte, revelando as prioridades institucionais concretas das últimas décadas.
A Constituição Cidadã, que rompeu com o regime autocrático e excludente anterior e estabeleceu um projeto de sociedade inclusiva, plural, democrática e justa, atribuiu ao Ministério Público a tarefa de defender este projeto contra as forças reacionárias. Ocorre, no entanto, que os textos jurídicos não têm o condão de mudar a realidade social, a não ser pela prática (refletida, consciente e consequente) dos operadores jurídicos.
O projeto constitucional de mudança social, de superação da fome, da pobreza, da exclusão, da intolerância, da violência, da corrupção e de tantas outras mazelas que têm marcado nossa história desde nossa formação escravocrata e patriarcal, é um projeto ousado, uma aposta no futuro, nas novas gerações, na construção diária de novas instituições que nos permitam romper com tal tradição, em direção à cidadania e à democracia substantiva.
Foi neste contexto que o constituinte apostou em um novo Ministério Público, de perfil resolutivo, comprometido com os resultados concretos de sua atuação ou, em outros termos, comprometido com a efetividade no processo de construção de uma realidade social mais justa e civilizada. Refiro-me a um Ministério Público reflexivo, proativo e resolutivo em oposição ao velho modelo intuitivo, reativo e demandista. Reivindicamos a condição de agentes políticos, mas parecemos muito apegados ao papel de meros agentes processuais, com uma pretensão de neutralidade técnica que ora se apresenta como ingenuidade, ora como subterfúgio retórico.
No que se refere ao problema da corrupção, por exemplo, muitas atuações têm partido de pressupostos absolutamente equivocados, pré-reflexivos, construídos com o relevante reforço de uma mídia plutocrata que noveliza o problema, sempre o apresentando como algo sobre sujeitos, grupos, partidos etc. Não se veiculam discussões sobre estruturas, sobre como os sistemas político e socioeconômico tornam quase inevitável a porosidade nociva nas relações entre instituições públicas e os detentores do poder econômico.
Nossa percepção da corrupção é fortemente condicionada pela crença de que nossa cultura nacional tem como traço constitutivo uma peculiar flexibilidade moral que faz com que tenhamos, mais que outros povos, a tendência de sobrepor relações pessoais às institucionais. Só no Estado, claro! No mercado, o toque de midas da velha “mão invisível” nos transforma em sujeitos virtuosos, impessoais, sem as contradições típicas do humano. Obviamente, não se trata de demonizar o Estado ou o mercado, ambos criações humanas ambivalentes, que incorporam as contradições que nos constituem.
Esta representação quase mística dos desafios para a construção da democracia e superação da corrupção levam a crer que o problema da corrupção diz respeito a um conflito entre grupos sociais honestos, livres de uma “cultura da corrupção” e outros grupos desonestos, um permanente embate entre vítimas e vilões, chegando-se até mesmo à representação alegórica da corrupção como um monstro que mata silenciosamente, tamanha a necessidade de mistificação e apelo a argumentos de terror, a única maneira de se sustentar uma narrativa tão simplificada e sem conexão com a realidade social concreta, mas que cumpre bem o papel de acalmar angústias e estabelecer um sentido existencial fácil, rápido, “de prateleira”, que, a um só tempo, isenta do árduo trabalho de reflexão crítica e confirma crenças já sedimentadas.
Com a coisa posta desta maneira, uma verdadeira fábula, com vítimas e vilões bem definidos, torna-se tentador, para quem tem o papel de buscar a afirmação da lei contra os atos de corrupção e improbidade administrativa, colocar-se na posição de herói. Esta é uma das grandes armadilhas que a atuação na área em questão apresenta, armadilha esta que só não captura quem se dispuser a ter humildade e coragem suficientes para o desempenho permanente de um penoso esforço crítico (especialmente autocrítico).
Em momentos de incertezas, de turbulência política e instabilidade institucional, é natural que, quase instintivamente, se busque o retorno a um lugar (real ou imaginário) de proteção, como a casa, a família, a pátria, a tradição, um momento glorioso etc. Em nossa cultura escravocrata e patriarcal, não é raro que este lugar seguro seja a proteção de uma figura forte.
Enquanto acreditarmos que nosso papel no enfrentamento do problema da corrupção é ser esta figura forte, um papel heroico na proteção dos bons contra os maus, não teremos nenhuma chance de planejar e executar uma atuação séria, com maior efetividade e, portanto, apta a resgatar nossa legitimidade institucional.
Parece-me muito claro que, ao invés da proteção de uma figura (indivíduo, grupo, instituição etc.) forte, o que o povo brasileiro precisa é ser fortalecido. Ele é quem deve ser forte. Nenhuma missão institucional é mais fundamental para o Ministério Público que a de fortalecer a cidadania, fortalecer aquele que é o titular do poder e cujos direitos justificam qualquer exercício de poder no contexto republicano, conforme ressaltado já no primeiro artigo da nossa constituição.
O fortalecimento dos mecanismos de participação e controle social, a busca de afirmação progressiva da transparência e a contribuição possível (nos limites das funções institucionais) para a produção das condições materiais e culturais que viabilizem um movimento democratizante, apto a propiciar os tensionamentos necessários para a superação de um sistema político que transforma o poder em mercadoria, são vetores que me parecem inevitáveis para qualquer atuação institucional séria no enfrentamento do problema da corrupção.
Não se trata de não se promover a aplicação da lei, por meio da atuação repressiva, diante dos inúmeros esquemas de sobreposição de interesses privados aos públicos juridicamente tipificados como crime ou improbidade administrativa, mas sim de priorizar uma atuação que permita alguma efetividade no sentido da redução da incidência da corrupção em nossa sociedade, sempre com a compreensão de que a superação desta e de outras mazelas que historicamente têm dificultado nosso desenvolvimento social não é (e nunca será) um processo protagonizado por qualquer categoria de burocratas estatais, por melhores que sejam suas intenções e por melhor que seja sua formação e preparo técnico.
Cabe-nos devolver ao povo o poder que é do povo. Defender a democracia e o Estado Democrático de Direito sem maniqueísmo, moralismo ou messianismo. Interpretar a realidade social, as contradições que se opõem ao avanço em direção ao estado de coisas constitucionalmente projetado e as ações potencialmente tendentes à superação de tais contradições. Este é o trabalho árduo, complexo e, sobretudo, coletivo (sem espaço para espetáculos narcisistas) a ser realizado, a partir da elaboração horizontal e participativa de planos gerais de atuação e programas de atuação que orientem as ações racionais e consequentes, preferencialmente extrajudiciais, de promotorias de projetos.
Os desafios são enormes, especialmente se considerarmos a inversão que vem sendo promovida no discurso hegemônico, especialmente a partir da década de 70, mas que se tornou mais forte entre nós a partir da década de 90, em que, ao invés de instrumentos para a realização dos direitos sociais, os orçamentos públicos passaram a ser vistos como algo destinado a garantir ambientes seguros para a acumulação de capital financeiro. Enquanto nos escandalizamos com desvios e pagamentos de propina, quantias de vulto incomparavelmente maior são destinadas aos processos especulativos dependentes exatamente da desconstrução dos patamares civilizatórios constitucionalmente projetados.
Como se sabe, para financiar suas atividades, o Estado pode tributar ou contrair empréstimos. Dada a quase confusão entre as elites econômica e política no Brasil, não foi difícil a construção de um sistema tributário regressivo e reprodutor da desigualdade, somado a um imenso volume de sonegação e à opção pelo endividamento, em detrimento da construção de um sistema tributário compatível com os objetivos estratégicos da sociedade brasileira, constitucionalmente projetados.
Praticamente naturalizamos o desvio de cerca de metade do orçamento para o serviço da dívida pública. A saúde, a educação, a assistência social e todas as demais áreas de políticas públicas, necessárias para a afirmação de direitos e a construção do estado de coisas constitucionalmente projetado, ficam com o que sobra. E hoje já se começa a dizer (com ressonância no meio jurídico, inclusive) que os direitos assegurados na Constituição não cabem no orçamento.
Em uma era em que ter e ser se confundem, em que não se faz absolutamente nada sem a mediação das trocas mercantis, em que a compra e a venda de mercadorias são compulsórias, é evidente que o formulador do orçamento tem um grande poder sobre a realidade individual e corporativa de todas as categorias de burocratas estatais.
O grande perigo é acreditarmos que dependemos, para termos a estrutura institucional adequada e até mesmo para recebermos remuneração compatível com a complexidade de nossas funções e as responsabilidades que elas envolvem, de alianças com uma elite política majoritariamente corrompida e associada à elite econômica. Enquanto evitarmos a construção democrática de uma atuação independente e altiva, em uma paralisia alimentada pelo receio de perdas – institucionais ou corporativas – eventualmente decorrentes do descontentamento da elite política, estaremos condenados à contínua perda de legitimidade que a pesquisa referida acima retrata.
O Brasil está em ebulição e o Ministério Público diante de uma escolha estratégica inevitável: Abrir-se ao povo, titular do poder, especialmente aos grupos explorados e oprimidos, razão última de suas funções institucionais, ou seguir ao lado das oligarquias que têm golpeado tão duramente a Constituição Cidadã que lhe incumbe defender e que, obviamente, não hesitarão em voltar sua força contra a instituição para defender seus próprios interesses, caso seja necessário estancar algum tipo de sangria.
Daniel Serra Azul Guimarães é Promotor de Justiça (MPSP), mestre em direito do Estado pela PUC-SP, membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
Foto: Marcello Casal Jr/ABr