Por Gustavo Roberto Costa, na Carta Capital.
Alguns dias antes da última eleição presidencial, no comício de um dos candidatos ao cargo, o rapper Pedro Paulo Soares Pereira, mais conhecido como Mano Brown, foi chamado para fazer um discurso. Iniciou dizendo que “não gosta do clima de festa”, pois não “havia motivo para festejar” (esse era o clima do evento). Criticou partidos que se dizem populares por não saberem se comunicar com o povo; sugeriu que voltassem “para a base”. Disse que não “gosta de política”, a qual não rima e não tem swing.
Mesmo sem querer, ele já pode ser considerado há muitos anos um dos principais quadros políticos do Brasil. Política – ao contrário do que se imagina (e Brown sabe bem disso) – não é só aquela feita nos partidos, nos parlamentos e no sistema de justiça (que caiu de cabeça na política). A política pode ser feita na arte, na música, no jornalismo independente, no esporte. O que hoje são bandeiras caras para os partidos ditos populares é denunciado há pelo menos 30 anos por Mano Brown e pelos Racionais MC’s.
A banda surgiu na mesma época da promulgação da Constituição Federal em vigência (hoje em franca diluição). Brown, desde então, demonstra que da porta das favelas e guetos para dentro não houve a mesma euforia com a redemocratização do Brasil. Nos rincões, não havia Estado de Direito, e o quadro só se agravava. A linda declaração de direitos enumerados nos primeiros artigos da Constituição não estava chegando aos seus semelhantes. Pelo contrário, eram negados rotineiramente.
Numa das primeiras faixas lançadas pelo grupo, Pânico na Zona Sul, é relatada a rotina de violência e exclusão dos moradores dos bairros pobres:
“Então, Quando o dia amanhece,
Só quem é de lá sabe o que acontece
Ao que me parece permanece a ignorância e nós,
Estamos sós ninguém quer ouvir a nossa voz”.
O rapper e sua banda, desde então, insurgem-se contra os abusos praticados contra a população vulnerável:
“Justiceiros são chamados,
Por eles mesmos
Matam humilham e dão tiros a esmo
E a polícia não demonstra, sequer vontade,
De resolver ou apurar, a verdade
Pois simplesmente é conveniente
Por que ajudariam se os julgam delinquentes?”
O racismo estrutural brasileiro, tão em voga nos dias atuais, repudiado por uns e negado por outros, já era demonstrado de maneira nua e crua pelos Racionais, na canção Racistas otários:
“Racistas otários nos deixem em paz
Pois as famílias pobres não aguentam mais
Pois todos sabem,
e elas temem
A indiferença por gente carente que se tem”
O sistema de justiça e a aplicação míope da lei (o que nós percebemos de forma nítida atualmente), também foi motivo de alerta pelos músicos décadas atrás:
“Justiça,
Em nome disso eles são pagos
Mas a noção que se tem
É limitada e eu sei
Que a lei
É implacável com os oprimidos
Tornam bandidos os que eram pessoas de bem
(…)
Os poderosos são covardes, desleais
Espancam negros nas ruas por motivos banais
(…)
Eles circulam na rua com uma descrição
Que é parecida com a sua, cabelo, cor, feição
Será que eles veem em nós um marginal padrão?”
Cansados de ver seus semelhantes gritarem sem ser ouvidos, propôs o grupo a instituição de uma voz ativa para a juventude negra:
“Não proponho ódio, porém
Acho incrível que o nosso conformismo
Já esteja nesse nível mas,
Racionais resistentes, nunca iguais
Afrodinamicamente mantendo nossa honra viva
Sabedoria de rua
O RAP mais expressivo
A juventude negra agora tem a voz ativa”
Com as faixas Fim de semana no parque e Um Homem na estrada, Mano e sua turma entraram de vez para o cenário da música brasileira. Denunciaram a falta de opções de lazer nos bairros periféricos e a atração quase fatal para o envolvimento com o crime e as drogas.
“Aqui (periferia) não vejo nenhum clube poliesportivo
Pra molecada frequentar nenhum incentivo
O investimento no lazer é muito escasso
O centro comunitário é um fracasso
Mas aí se quiser se destruir está no lugar certo
Tem bebida e cocaína sempre por perto
A cada esquina, 100, 200 metros
Nem sempre é bom ser esperto
Schimth, Taurus, Rossi, Dreyer ou Campari
Pronúncia agradável
estrago inevitável
Nomes estrangeiros que estão no nosso meio pra matar (…)”
Um homem na estrada (na minha opinião, a melhor), um poema que bem poderia se tornar um filme ou um livro, dentre outras inúmeras mazelas, demonstra o completo fracasso da chamada “guerra às drogas”. Fracasso para um povo que, por ser pobre e sem perspectiva, é o principal atingido por uma política que serve tão somente para massacrá-lo.
“Uma semana depois chegou o crack
Gente rica por trás, diretoria
Aqui, periferia, miséria de sobra
Um salário por dia garante a mão-de-obra
A clientela tem grana e compra bem
Tudo em casa, costa quente de sócio
A playboyzada muito louca até os ossos
Vender droga por aqui, grande negócio.”
A estigmatização eterna de presos, dos quais são retiradas todas as chances de recuperação após passarem por um sistema prisional ainda mais excludente e perverso, também foi objeto de manifestação contundente do artista:
“A noite chega e um clima estranho no ar
e ele sem desconfiar de nada, vai dormir tranquilamente
mas na calada caguetaram seus antecedentes
como se fosse uma doença incurável
No seu braço a tatuagem, DVC, uma passagem, 157 na lei
Do seu lado não tem mais ninguém
A Justiça Criminal é implacável
Tiram sua liberdade, família e moral
Mesmo longe do sistema carcerário
Te chamarão pra sempre de ex-presidiário (…)
Assim como Brown, Blue, Edi Rock e KLJ, é necessário que mais negros e negras tenham suas vozes ouvidas. Não podemos mais – principalmente nós do sistema de justiça – medir a vida alheia com a nossa régua. Não há mais como lidar com pessoas sem ter ideia de como foram criadas, como vivem e de quais são suas dificuldades. As consequências de uma política absolutamente equivocada de genocídio e encarceramento em massa trarão resultados trágicos a toda população num futuro próximo.
PPP (Poder para o Povo Preto) é uma necessidade premente.
Gustavo Roberto Costa é Promotor de Justiça da Infância e Juventude em Guarujá, São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD. Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM.
Foto: Luiz Maximiano/VIP/Reprodução)