
Entre os dias 13 e 17 deste mês de agosto, no Recife, teve lugar a 5a Mostra de Cinema Árabe Feminino trazendo curtas metragens realizados por mulheres do mundo árabe ou por mulheres de outros países conhecedoras da cultura árabe.
A Mostra segue agora para a Cidade do Rio de Janeiro, Niterói e Duque de Caxias.
O encerramento dessa Mostra, no Recife, se deu com a exibição do longa metragem de Carol Mansour e Mina Khalidi que acompanhou a atuação profissional do médico Ghassan Abu- Sittah, de família Palestina e que esteve em todas as situações de ataque a Gaza nas últimas décadas, muito especialmente, após o início da invasão em outubro de 2023, marco do projeto genocida posto em prática pelo governo sionista do primeiro- ministro israelense.
Ghassan esteve atuando no hospital Al- Shifa, um dos maiores de Gaza, que acabou sendo destruído por bombardeios como todos os demais hospitais, inclusive o Al Ahli, que lá existiam. Especializado no Reino Unido em cirurgia plástica labial e reputado como o melhor nessa especialidade que demanda um elevado grau de dificuldade porque, como diz o próprio Ghassan : “os lábios do rosto são a expressão de uma beleza em movimento”, ele viveu o horror dos bombardeios ameaçadores da vida e do resto de vida de pacientes e profissionais de saúde presentes no interior dos hospitais alvo das ações militares israelenses.
O longa metragem “ Um estado de devoção” no qual a atuação dele assim como sua pessoa, a sua trajetória profissional e a sua vida familiar é posta em foco revela muito do que significa a resistência palestina ante ao processo histórico que foi estreitando as terras palestinas ao longo do tempo e ainda mais a Faixa de Gaza desde a criação do Estado de Israel 1948. O genocídio que ora se perpreta em Gaza está plasmado nas imagens do filme, tornando- se, como bem pontuou a curadora da Mostra, Carol Almeida (PE), um arquivo para História.
As cenas são impactantes tal como o discurso, as ações e a postura profundamente humanista de Ghassan Abu- Sittah que com muita sabedoria sabe usar as palavras com destreza e verdade do mesmo modo que usa seu conhecimento médico e as suas mãos para manter vivos os feridos e ajudar os que se safaram da violência das armas cuidadosamente concebidas pelo governo de Israel para dilacerar corpos e exterminar vidas.
Assistir a esse filme é uma forma de aprender a ver, ouvir ler o mundo e a vida dos palestinos através dos poros, exatamente isso. Conhecer a vida dos palestinos através da pele que lhes é arranhada e arrancada cotidianamente. Assistir a esse filme é um exercício gigantesco de saber segurar o coração num ritmo que oscila a cada instante, entre aceleração e repouso definitivo, terminal. Assistir a esse filme é uma forma de chegar perto e de se desprender do lugar de conforto no qual nos encontramos para encontrar o outro que nos é sabido e que desconhecemos ou preferimos desconhecer para não chorar. Preferimos sempre não chorar. Mas precisamos mesmo é chorar, chorar muito para sairmos da impotência, da paralisia. Quem chora sente desconforto, mas não sente o alívio imediato, que só chega com o tempo ou com ação para tanto. Se não agirmos de alguma forma enquanto temos lágrimas levaremos os sentimentos que nos dão a graça da vida.
Numa das inúmeras falas de Ghassan ao longo do filme, entre a postura firme de não se ver como herói tal como sugerem muitas das pessoas que o conhecem ou que passaram a conhecê- lo, ele declara que nunca fez tantas amputações ao longo de sua carreira como fez em Gaza quando lá esteve a trabalho, sobretudo nos últimos dois anos. Enfatiza que essas amputações têm afetado muito significativamente as crianças em tenra idade sendo, inclusive, em muitos casos, uma forma de evitar o alastramento de uma infecção que lhes poderia levar a óbito. Enfim, o conhecimento médico aí se coloca a serviço de uma medida que não se resume a optar entre a vida e a morte de um ser humano em seus primeiros anos de vida. A rigor, essa medida representa também uma necessidade de manter vivo os descendentes de um povo alvo de um genocídio. Ghassan registra que os membros amputados (mãos, pés) são postos em sacos plásticos e enterrados num cemitério sob o rótulo: “ mãos de…, pés de…”
Precisa dizer mais? Melhor não! Isso já é dor demais para escrever, pra imaginar, pra sentir…e é também dor suficiente para saber que estamos bem atrasados em agir para interrompê- la.
Falar em ‘dor suficiente’ é se valer do absurdo que as palavras podem engendrar diante das imagens dentro e fora das telas sobre a situação em Gaza. Dor é dor e cada corpo, cada pessoa suporta o que pode.
No entanto, quem vive ou vivia em Gaza, quem vai até lá, quem já foi até lá, quem conseguiu sair de lá suporta o que nunca imaginou ser capaz de suportar. Inclusive suporta ouvir da boca de muita gente (que felizmente não é a maioria ao redor do mundo) que é preciso avançar nos bombardeios e desertificar Gaza de sua gente por essa ou aquela razão. As razões mais estúpidas disfarçadas de uma racionalidade que coincide com a racionalidade do Estado exterminador de futuro e que por sua vez tem tudo a ver com os Estados do passado: aqueles que invadiram territórios alheios e exterminaram as gentes que lá viviam e que de lá nunca saíram.
Ouvir falas que expõem “razões” do ataque a Gaza justificando- o significa ser explodido por dentro, antes mesmo de ser esmagado por uma caixa de alimento jogada de um avião. Viver em Gaza se tornou sinônimo de “viver de morte”. E assim morremos todos um pouco a cada dia enquanto Gaza está servindo de laboratório e nós obedecemos a fila para viver os efeitos dos testes bem sucedidos.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP
Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça aposentada e integrante do Coletivo Transforma MP.