GREVE DIGITAL

Por Lorena Vasconcelos Porto* no GGN

Em 2023, a greve geral contra a reforma da previdência na França foi amplamente noticiada pela mídia nacional. Não é a primeira vez que os franceses usam esse instrumento para protestar contra políticas econômicas e sociais do Governo, sendo comum a paralisação do transporte público, até para evitar que as demais pessoas cheguem ao trabalho. Esse movimento, no entanto, poderia ser esvaziado pelo home office, que se expandiu consideravelmente com a pandemia do novo coronavírus. Surgiu, então, a ideia de bloquear as plataformas e redes digitais indispensáveis ao trabalho e, no dia 09 de fevereiro de 2023, a confederação sindical CGT reivindicou o corte de eletricidade que alimenta três servidores (data centers) em Seine-Saint-Denis, próximo a Paris.

Na França, o direito de greve é assegurado pela Constituição e pela Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 28), as quais não o definem. Para a jurisprudência da Corte de Cassação, a greve é a cessação coletiva total do trabalho, o que acaba por privar categorias de obreiros desse direito fundamental. Em razão da mecanização e robotização, a cessação do trabalho humano pode não implicar a interrupção da produção empresarial. Um exemplo são as linhas automatizadas do metrô de Paris que circulam sem condutor. Para que ocorra a paralisação do metrô, não basta que os condutores cessem o seu trabalho; é necessária a parada dos veículos a partir do centro de controle que os opera à distância.

Para cumprir as normas constitucionais e internacionais que garantem o direito de greve, é imprescindível ampliar o seu conceito. Emmanuel Dockès, inspirando-se na Corte Europeia de Direitos Humanos, propõe que a cessação do trabalho, na greve, não é a interrupção de toda atividade, mas sim da subordinação; é a cessação coletiva da obediência em apoio às reivindicações dos trabalhadores.

No Brasil, a Constituição Federal de 1988, ao contrário das anteriores, conferiu grande amplitude ao direito de greve, prevendo que cabe “aos trabalhadores decidir sobre a oportunidade de exercê-lo e sobre os interesses que devam por meio dele defender”. A greve é reconhecida como um direito em diversos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil, como a Carta da Organização dos Estados Americanos – OEA (art. 45.c), o Protocolo de San Salvador (art. 8.1.b) e o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais – PIDESC (art. 8.d).

Segundo a Corte Interamericana de Direitos Humanos, há três categorias de greves: as trabalhistas, que buscam melhorar as condições laborais ou de vida dos trabalhadores; as sindicais, que veiculam as reivindicações coletivas dos sindicatos; e as que contestam políticas públicas. A mesma Corte adverte que a legalidade é um elemento central para o exercício do direito de greve, de modo que as condições e requisitos para considerá-la lícita não devem ser complexos a ponto de inviabilizá-la.

Todavia, a greve é conceituada legalmente no Brasil como “a suspensão coletiva, temporária e pacífica, total ou parcial, de prestação pessoal de serviços a empregador” (artigo 2º da Lei n. 7.783/89).

O conceito de greve, no entanto, deve ser ampliado para abranger as ações realizadas pelos sindicatos ou pelos trabalhadores para a tutela de seus interesses, inclusive com comportamentos ativos. Nesse contexto, destaca-se a greve digital, que abarca a ação coletiva de trabalhadores que ocupam ou obstruem espaços virtuais utilizados pelo empregador para as suas atividades, práticas comerciais e comunicações, podendo diminuir ou impedir temporariamente a produção empresarial e, inclusive, a prestação laborativa daqueles que não aderiram ao protesto (piquete digital). Essa greve é especialmente eficaz contra empresas que utilizam tecnologias informáticas para a gestão, produção, distribuição, venda e relações com trabalhadores, fornecedores, clientes etc. Um exemplo seriam múltiplas conexões ao site do empregador, para torná-lo mais lento ou impedir o seu acesso durante o período da mobilização, ou o “entupimento” da caixa de e-mails da empresa.

Tais ações podem ter objetivos trabalhistas, sindicais ou de contestação de políticas públicas, na linha da amplitude do direito de greve assegurada pela Constituição Federal e pelos tratados internacionais ratificados pelo Brasil. A necessidade de observância desses tratados e da jurisprudência da Corte Interamericana, bem como do controle de convencionalidade das normas internas -, entre as quais, a Lei de Greve -, foi reafirmada na Recomendação n. 123/2022, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), e na Recomendação n. 96/2023, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

A greve foi e tem sido a grande arma dos trabalhadores e dos sindicatos para criar direitos e torná-los mais eficazes, e não apenas para fins trabalhistas, mas para a promoção das classes oprimidas em geral. Por isso, as leis estão sempre tentando capturá-la, e ela sempre buscando fugir. É, portanto, necessária a adoção de um conceito dinâmico, e não anacrônico, o que abrangeria a greve digital.

Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP.

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