Foi golpe! E agora, MP?

O fato é que está cada vez mais difícil sustentar que as instituições democráticas brasileiras têm funcionado normalmente e que ainda estejamos no processo democratizante iniciado a partir das lutas populares que encerraram os anos de chumbo

Por Daniel Serra Azul Guimarães, no GGN.

(…) toda correspondência referente ao assunto ficava sujeita a rígidas ‘regras de linguagem’, e, exceto nos relatórios dos Einsatzgruppen, é raro encontrar documentos em que ocorram palavras ousadas como ‘extermínio’, ‘eliminação’ ou ‘assassinato’. Os codinomes prescritos para o assassinato eram ‘solução final’, ‘evacuação’ (Aussiedlung), e ‘tratamento especial’ (Sonderbehandlung); a deportação – a menos que envolvesse judeus enviados para Theresienstadt, o ‘Gueto dos Velhos’ para judeus privilegiados, caso em que se usava ‘mudança de residência’ – recebia os nomes de ‘reassentamento’ (Umsiedlung) e ‘Trabalho no Leste’ (Arbeitsensatz im Osten) (…)” (ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. p. 100).

É assim que golpe de Estado vira “impeachment” e o ataque à democracia torna-se “instituições funcionando”.

Em setembro de 2016, escrevi sobre os motivos pelos quais via uma escalada autoritária e um certo rompimento com valores inerentes ao Estado de Direito no sistema de justiça (http://www.justificando.com/2016/09/28/desconstrucao-do-estado-de-direito-nao-comecou-com-lava-jato/). Em novembro de 2017, escrevi sobre os motivos pelos quais me parecia que o Ministério Público Brasileiro, em um momento de acirramento dos conflitos distributivos e de ataques à democracia vindos dos setores dominantes da sociedade, vinha fazendo opções equivocadas para a preservação de sua legitimidade e do status constitucional ao qual foi elevado pelas forças democráticas que finalmente prevaleceram na Constituinte de 1988, após mais de duas décadas de autocracia e barbárie (https://jornalggn.com.br/justica/ministerio-publico-desafios-para-o-resgate-de-sua-legitimidade-pos-golpe-de-2016-por-daniel-serra-azul-guimarae/). A breve reflexão a seguir é feita em continuidade às duas anteriores, ambas infelizmente confirmadas pelo desenrolar dos fatos históricos até este momento.

Em meio ao vasto trabalho jornalístico que a agência de notícias The Intercept Brasil  vem desenvolvendo em parceria com tradicionais veículos de imprensa do país e do mundo, merecem especial atenção os fatos noticiados pela Folha de São Paulo no último domingo (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/09/conversas-de-lula-mantidas-sob-sigilo-pela-lava-jato-enfraquecem-tese-de-moro.shtml).

Basicamente, noticiou-se que, além de exercerem suas funções mediante ajustes prévios com certo juiz, ajustes estes marcados por constrangedora subserviência e aviltamento do prestígio e da dignidade do Ministério Público, além de compartilharem entre si, em telefones usados para a atuação funcional, sem qualquer pudor, o ódio por certa figura política acusada de corrupção por eles mesmos, assim como o partido e a classe social que tal figura representa, de agirem de maneira manifestamente seletiva, usarem vazamentos para pressionar investigados a aceitarem “acordos” de delação premiada, zombarem e menosprezarem a dor de um idoso diante de mortes de familiares, referirem-se a tal acusado como “9”, em alusão à sua deficiência física, decorrente de acidente de trabalho, entre tantos outros comportamentos incompatíveis com o prestígio e a dignidade da Justiça e do Ministério Público, certos procuradores da República teriam, em conluio com o referido juiz, que hoje ocupa o Ministério da Justiça, manejado um vazamento seletivo de comunicação telefônica ilegalmente interceptada, com o evidente fim de interferir na política nacional e contribuir para o impeachment da então presidenta da República Dilma Rousseff.

Impeachment levado a efeito sem que em qualquer momento fosse sequer imputado à presidenta qualquer crime de responsabilidade. Em manifesta afronta à Constituição da República, portanto. Um golpe de Estado para quem quiser ver.

Aliás, tive a honra de denunciar o enfraquecimento do Estado de Direito e este processo golpista ao lado de mais de uma centena de valiosos membros dos diversos ramos do Ministério Público Brasileiro por meio de duas notas públicas, em uma articulação em defesa dos valores democráticos que acabou levando à constituição do Coletivo Por um Ministério Público Transformador, mais conhecido hoje como Coletivo Transforma MP (http://www.justificando.com/2016/03/11/procuradores-e-promotores-divulgam-nota-contra-banalizacao-da-prisao-preventiva/ e https://jornalggn.com.br/justica/membros-do-ministerio-publico-pedem-que-deputados-votem-contra-o-impeachment/).

O registro audiovisual da sessão em que a Câmara dos Deputados apreciou a admissibilidade da acusação, que acarretou o afastamento de Dilma Rouseff da Presidência da República, com vil desprezo aos votos da maioria do povo brasileiro (mais de 54 milhões de votos), não permite qualquer dúvida quanto ao caráter golpista de tal processo. Praticamente não se falou em crime de responsabilidade ou mesmo em “pedalada fiscal” (prática comum na Administração Pública, que, logo após a deposição da presidenta, voltou a ser admitida). Afastou-se a presidenta eleita pelos motivos mais inusitados, de homenagens a familiares – à velha moda do patrimonialismo brasileiro – até uma suposta defesa do cristianismo. Houve até mesmo uma nefasta homenagem ao torturador que se encarregou de praticar atrocidades contra Dilma Rousseff na ocasião em que ela lutava, em desobediência civil, contra uma ordem ilegítima, uma ditadura militar iniciada (também) com um golpe de Estado.

O autor de tal homenagem, pela conjunção de diversos fatores, entre os quais abusos do poder econômico pela oligarquia que controla a comunicação social no Brasil e seus aliados, somados a ilicitudes praticadas no âmbito do sistema de justiça – como as reportagens do portal The Intercept Brasil vêm demonstrando – ocupa hoje a Presidência da República, após processo eleitoral do qual seu principal adversário, que ocupava o primeiro lugar em todas as pesquisas de intenção de voto, foi alijado por meio de sucessivas inovações jurisprudenciais que passaram por sua condenação criminal, sua prisão e a decretação de sua inelegibilidade, em manifesta afronta ao art. 5º,  LVII, da Constituição da República, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Todos sabemos hoje que a coisa foi muito além de inovações jurisprudenciais e processos tramitando em tempo recorde quando se tratava de um determinado agente público, o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, em uma impressionante sincronia com a ação de setores da mídia corporativa e com a agenda político-eleitoral de grupos de extrema-direita.

Hoje sabemos, graças ao referido trabalho jornalístico, liderado por ninguém menos que o jornalista Glenn Greenwald, editor cofundador do portal The Intercept Brasil, a quem o chamado “Caso Snowden” rendeu um prêmio Pulitzer, que membros do Ministério Público agiram por meios nada ortodoxos e com orientação político-partidária evidente – e pensar que quem denunciava o golpe, este tempo todo, vinha sendo chamado, no interior da instituição, de ideológico (seja o que for que se queira dizer com isso) e partidário! Desde o início, estava claro que era o oposto. Agora há provas, não apenas convicção.

Provas, é claro, válidas para a anulação de atos administrativos e processuais praticados com desvio de finalidade, mas não para a punição de seus autores, pois ainda não se sabe muito sobre a origem do enorme acervo de dados obtido pelo Intercept Brasil. Ao contrário de certos grupos pouco apegados a valores democráticos e ao Estado de Direito, eu nunca defenderia que alguém viesse a ser punido com base em provas obtidas por meios não admitidos pelo ordenamento jurídico. Em outras palavras, os fatos que têm sido revelados pelo relevantíssimo trabalho jornalístico em questão não se prestam a embasar a punição de procuradores da república e do juiz que os liderou neste ataque à democracia e ao Estado de Direito, mas obviamente acarretam, como consequência jurídica inevitável, a nulidade de tudo quanto tenham praticado com o comprovado desvio de finalidade.

O que a reportagem deste último domingo da parceria entre The Intercept Brasil e Folha de São Paulo trouxe de novo sobre tal processo é que o vazamento ilícito de interceptação ilícita da comunicação telefônica entre a então presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, vazamento este confessado pelo então juiz Sérgio Moro – que, à época, alegou que não queria gerar “polêmicas e constrangimentos desnecessários” (deve ser pura coincidência que hoje faça parte do governo de extrema-direita instalado a partir do golpe) –, vazamento este vastamente explorado por setores da mídia corporativa comprometidos com a agenda excludente e golpista, também foi fruto de articulação clandestina entre o então magistrado, procuradores e policiais envolvidos na chamada “Operação Lava Jato”, em ação arquitetada para a obtenção de resultado político-partidário muito específico – o que se evidenciaria ainda mais com o vazamento, às vésperas das últimas eleições presidenciais, da delação premiada de Antônio Palocci, mais uma vez, em ação sincronizada com partidos políticos que disputavam o poder após o alijamento do candidato favorito, algo que, dado o uso feito por setores da mídia corporativa – sempre os mesmos – certamente foi tão determinante para o resultado das últimas eleições quanto o esquema ilícito de financiamento do impulsionamento de notícias falsas (“fake news”) por meio de mídias sociais.

Talvez não seja coincidência que um dos primeiros atos do maior beneficiário desta sucessão de violações da lei em detrimento do regime democrático tenha sido agraciar o mesmo magistrado com o cargo de ministro da justiça e a promessa de uma vaga no Supremo Tribunal Federal, como amplamente noticiado.

Diante deste panorama estarrecedor, fica uma pergunta: além de desempenharmos nossas funções com respeito ao dever de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, de fazer, no cotidiano, a defesa intransigente dos interesses sociais, no contexto do projeto de sociedade presente na mesma Constituição que elevou o Ministério Público ao patamar de dignidade institucional atual, podemos os membros da instituição que nos pautamos pela ética e pela legalidade fazer mais alguma coisa em defesa dos valores constitucionais supremos que sustentam a legitimidade do Ministério Público?

É dado a membros do Ministério Público questionar o comportamento ilícito e golpista de colegas, tema central do debate público na conjuntura atual?

A resposta me parece um tanto óbvia. Começa a se esboçar, no entanto, uma aparente perseguição a este grupo mais comprometido com os valores que dão sentido à própria existência do Ministério Público, pelo mero fato de manifestarmos nossa opinião sobre o processo histórico mais recente, com base nos dados disponíveis, especialmente após o início da sequência de reportagens que tem sido chamada de “Vaza Jato”.

À guisa de fundamentação jurídica de tais atos de perseguição e censura, tem-se invocado o dever funcional previsto no art. 43, II, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público, de zelar pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções.

É praticamente impossível não nos perguntarmos quem não tem zelado pelo prestígio da Justiça, por suas prerrogativas e pela dignidade de suas funções, aqueles que resolveram, por motivos pessoais, atuar contra a ordem jurídica e o regime democrático, valores cuja defesa foi atribuída ao Ministério Público pela Constituição de 1988, ou quem, justamente em defesa do prestígio e da dignidade da instituição, vem denunciando tal comportamento golpista.

A resposta a esta questão também me parece bastante óbvia em uma República que se define constitucionalmente como Estado Democrático de Direito, eleva ao mais alto patamar do ordenamento jurídico as liberdades públicas, dentre as quais, as garantias do devido processo legal e protege fortemente a liberdade de manifestação do pensamento.

Em outras palavras, o prestígio e a dignidade da instituição não podem se basear em uma farsa.

O rei está nu!

Precisamos chamar as coisas pelos respectivos nomes. É o primeiro passo para a retomada da democracia e a recuperação do prestígio e da dignidade das instituições do sistema de justiça.

De todo modo, aqueles que pretendem permanecer na negação do óbvio, ao menos quando exercem funções públicas no âmbito da instituição incumbida da defesa da ordem jurídica e do regime democrático, devem respeitar o direito de quem, ainda que em minoria, tenha opinião diversa, sob pena de ofensa ao art. 5º, IV, da Constituição da República.

Com maior razão ainda se esta opinião tiver lastro em amplo material jornalístico produzido por consagrados veículos de imprensa, em trabalho coordenado por jornalista vencedor do prêmio Pulitzer, assim como em diversos manifestos e trabalhos científicos de juristas e outros cientistas sociais de todo o planeta.

O mínimo é respeitar a opinião franca e honestamente manifestada, no exercício de direito constitucional da maior importância, ainda que não se concorde com ela.

O fato é que está cada vez mais difícil sustentar que as instituições democráticas brasileiras têm funcionado normalmente e que ainda estejamos no processo democratizante iniciado a partir das lutas populares que encerraram os anos de chumbo, dando lugar à Constituição Cidadã, tão festejada pela comunidade jurídica mundial e tão importante para a afirmação da dignidade do povo brasileiro nas últimas três décadas.

Também está cada vez mais difícil negar a constatação óbvia de que, diante de toda a informação disponível, de tudo aquilo que revela o caráter de exceção dos processos judiciais em questão, permeados por ajustes subterrâneos e ilícitos que conspiraram contra a democracia e a soberania brasileiras, não há caminho viável para a retomada da vida democrática no país que não passe pela anulação de todos os atos de agentes públicos que tenham sido praticados mediante a corrupção da ordem constitucional democrática e, por conseguinte, pela satisfação da demanda popular por Lula livre.

Daniel Serra Azul Guimarães é Promotor de Justiça (MPSP), Mestre em Direito do Estado pela PUC-SP e membro fundador do Coletivo Por um Ministério Público Transformador – Transforma MP.

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