Por Maria Betânia Silva no GGN
Pouco anos antes de 2016, o Brasil começou a ser inundado por eventos que estremeceram as suas instituições, tendo alguns deles evoluído para o desmonte de muitas delas. As análises que cotidianamente foram e continuam sendo feitas, desde então, para explicar à sociedade o que está acontecendo parecem não caber nos cânones políticos e jurídicos, exaustivamente, repetidos por um significativo número de estudiosos e de pessoas ciosas do futuro do país.
Fomos abatidos pelo sentimento de que os cânones em relação à vida política saudável são palavras vazias diante da nossa realidade, o que é tão lamentável quanto desesperador. Política se tornou sinônimo de algo aberrante e repulsivo, como se não houvesse possibilidade para o seu exercício em prol da coletividade. Justiça, sinônimo de vingança. Engana-se quem pensa assim.
É justamente na seara da Política que o ser humano é testado para equilibrar razão e emoção e saber como fazer Justiça. Também, é nessa seara sobretudo que o ser humano deve fazer uso da linguagem (o seu maior diferencial em relação aos outros seres viventes). Uma linguagem que traduza esse equilíbrio, que seja carregada de sentido e sentimento alvissareiro; uma linguagem que demonstre empatia, depois do falante haver emprestado os ouvidos à dor alheia; uma linguagem verdadeira que anuncie com clareza e sinceridade os objetivos do ser falante; uma linguagem que aponte de forma coerente e consistente o caminho para a realização de um projeto de acolhimento das necessidades da maioria da população. Enfim, uma linguagem na qual o sujeito falante inclui respeitosamente o outro e rejeita, terminantemente, um projeto de poder individual em benefício próprio.
Ao constatar a perda do significado da Política como algo valoroso e essencial na e para vida de toda e qualquer pessoa, as análises feitas sobre o contexto político-jurídico brasileiro a partir de cânones não são desprovidas de sentido. Ao contrário, são, no mínimo, atitudes de resistência para resgatar os salutares sentidos da vida política do país e compreender alguns outros que estão sendo precária e voluntariamente forjados para levar a uma situação de caos em benefício de algumas poucas pessoas e de alguns setores econômicos vorazes no que se refere aos seus lucros. Nada mais “eficaz” e perigoso para atingir o caos numa sociedade do que nutrir o ódio e a inveja, naturalizando essa retórica apavorante, que só pode ser protagonizada por pessoas fracas de caráter, cognitivamente limitadas e acovardadas diante da existência complexa do mundo da vida.
Do ponto de vista daquilo que os mais importantes teóricos da Política e do Direito nos ofereceram ao longo de séculos de História do Ocidente – e apesar das críticas que podem ser dirigidas ao processo que culminou no culto excessivo da liberdade individual em detrimento do interesse coletivo – muitos artigos publicados em jornais acadêmicos ou não, sobre conceitos como: democracia, presidencialismo, parlamentarismo, racismo, sexismo, machismo, capitalismo, Corte Constitucional, comunismo, punitivismo, abolicionismo penal, etc trazem argumentos pertinentes e se mostram fiéis às lições deixadas por vivências do passado diante do torpor do presente. O problema é que, na atualidade, o debate público foi sequestrado e tem sido manejado de forma esquisita, por pessoas que galgaram espaço de poder e não levam em conta as contradições e superação delas como fator inerente à História. Abraça-se a História de mão única, imprimindo à realidade ares aterrorizantes ao tempo em que, rompe-se com o sentido das palavras, sem lhes conferir nenhum outro. Vivemos uma guerra cultural que fere de morte o diálogo.
O contexto é, portanto, de manipulação grosseira e forçada quanto ao sentido que as palavras têm originalmente e quanto àquele que elas poderiam adquirir naturalmente ao longo de uma convivência social saudável. Esse fenômeno de manipulação da linguagem, sufocando o sentido das palavras é algo sério e precisa ser enfrentado. Isto porque ao frustrar totalmente o diálogo entre as pessoas tanto supera a ficção, quanto rejeita a identificação exata do nosso tempo presente com eventos históricos do passado, criando algo disruptivo de forma inédita para a geração atual. A violência quanto ao sentido construtivo e possível das palavras nos faz cair num vácuo e nos desorienta, deixando subsistir apenas a própria violência. Com isso nos deparamos com o fracasso civilizatório e retrocedemos como espécie.
Esse fenômeno está ocorrendo em alguns países, mas, no Brasil se percebe que ele está bem acentuado e muito facilmente gera o incômodo de que o desenho das nossas instituições políticas e do sistema de justiça trazido no texto da Constituição de 1988 (assim como a previsão dos mecanismos que acionam o funcionamento delas, mesmo que inspirado no modelo de outros países onde as coisas funcionam relativamente bem, e embora reproduzido aqui com algumas imperfeições, além de haver adquirido pitadas do jeito de ser brasileiro) esse desenho institucional foi num curto espaço de tempo borrado pela sucessão dos fatos graves que vivenciamos e foi-se apagando, se desfazendo, se mostrando quiçá inútil para nos colocar num horizonte de sentido existencial. A sensação é que tudo não passava de um castelo de cartas, agora, no chão, enterrando-se num buraco.
A instabilidade política e jurídica que vem ocorrido no Brasil embaralha, ultrapassa e destrói, por exemplo, o chamado dogma da separação e harmonia de funções entre os poderes do Estado, sem pôr no lugar nada que valha a pena para dar alguma segurança à sociedade. Executivo, Legislativo e Judiciário são como tecidos esgarçados e imprestáveis para uma costura entre eles. Evidentemente, acreditar que esse esgarçamento deve ser levado até as últimas consequências é cavar a cova do Brasil como sociedade, como país, como Estado.
O dogma da separação de poderes que se expressa através dessas três funções e foi consagrado a partir de obra de Montesquieu é um importante legado para o mundo. Isto porque esse autor exaltou a necessidade de limitação do exercício do poder político para a este conferir alguma estabilidade social e o fez inspirado na experiência política da Inglaterra construída em torno do parlamentarismo. A tese de Montesquieu cobre várias áreas do conhecimento e resultou no clássico, “O Espírito das Leis”, difundindo o parlamentarismo como o melhor sistema de governo. Efetivamente o parlamentarismo muitas vezes assim funciona: nunca de forma determinante e automática. Tudo depende da História do país e do contexto no qual ele é implantado.
No caso inglês, por exemplo, o parlamentarismo é a forma de governo que acolhe representantes da classe social considerada superior, na Câmara dos Lordes e representantes das demais classes sociais, designada de Câmara dos comuns. Por serem essas duas câmaras representativas da configuração histórica da sociedade desde sempre submetida à realeza, um parlamentar que seja filiado ao partido majoritário no interior do Parlamento é escolhido para representar o governo do país. Na prática, essa escolha implica atribuir a um parlamentar a administração do país, levando-o a ocupar o cargo de Primeiro-Ministro que se investe do poder de escolher aqueles parlamentares que formarão a sua equipe.
Dito isto, é bom que se saiba, que numa sociedade como a inglesa, onde a aristocracia não desapareceu e é a classe social que orbita em torno da realeza, o sistema parlamentarista pende para manutenção dos interesses dessa classe social. Isto porque o partido político que a representa, em geral, tem uma participação expressiva no Parlamento e, não raro, forma a maioria, na Câmara dos Lordes. Na prática, então, politicamente, está-se diante de um país conservador e embora a aristocracia, que é etimologicamente identificada ao governo “dos melhores” tal como definido por Platão na formulação sobre as formas puras e impuras de governo, não significa o melhor para a maioria da população. Guardadas as peculiaridades de cada lugar, outras formas de governo ganham relevo e transbordam impurezas.
Na época de Montesquieu, contudo, supostamente a aristocracia ainda era identificada ao que se tinha de melhor na sociedade inglesa… e isso talvez não correspondesse à realidade. Na atualidade, então, menos ainda…
Assim, o parlamentarismo, na Inglaterra, sempre funcionou como um catalisador dos interesses da aristocracia e da Coroa, a qual, para ser mantida na cabeça dos reis e rainhas, ensaia continuamente uma conciliação com os interesses das classes sociais vistas como inferiores, e que se fazem representar por aqueles parlamentares componentes da Câmara dos comuns.
Também, é bom lembrar que, na perspectiva de Platão sobre as formas de governo, a eventual degeneração da aristocracia corresponde à oligarquia. Aliás, as lições deixada esse filósofo são assustadoramente atuais. Segundo ele, a democracia é uma forma pura de governo baseada no povo e a sua forma impura seria a anarquia; já a Monarquia, degenerada, se converteria em tirania.
Pois bem, diante de todas essas noções envolvendo o dogma da separação de poder e a forma de governo, o Brasil dá mostras de uma degeneração política generalizada, tendendo a exibir uma mistura das formas impuras de governo. Não seria absurdo ventilar a hipótese de que nunca tivéssemos vivido isoladamente a pureza de nenhuma das formas de governo mas as vivenciamos de forma embaralhada, desde sempre. Hoje, quando olhamos para um lado, vemos a democracia degenerando em anarquia; olhamos para o outro, vemos a oligarquia a todo vapor desde sempre no solo brasileiro, a forma degenerada de aristocracia e, por fim, paira sobre nós a sensação de que poderemos sucumbir a uma tirania, sem monarca, lógico, mas sob o comando de alguém que se sente como tal.
Na atualidade brasileira, os exemplos disso se acendem como flashes. Um dos mais evidentes coincide acertadamente com a trajetória da atuação do ex-juiz Sérgio Moro, que se coloca, hoje, como alguém disposto ao sacrifício para salvar o Brasil de suas mazelas. Ora, ora, menos Dr. Sérgio, por favor! Quando juiz, Sérgio Moro não salvou o Brasil da corrupção; como Ministro da Justiça muito menos, pensou inclusive na excludente de ilicitude para ação atentatória à vida praticada por policiais; como eventual Presidente, esse seu passado em nada o favorece. Aliás, aprofundaria a nossa tragédia.
Cabe lembrar que ele se aliou a Jair Bolsonaro, tornando-se seu ministro da Justiça mesmo sabendo que se tratava de um político declaradamente amante da tortura, conforme se viu na sessão de julgamento do impeachment da então Presidente Dilma Roussef, ocorrida na Câmara de Deputados, no dia 17 de abril de 2016. E isso é, no mínimo, indigesto: um ministro da Justiça que se alia a um simpatizante efusivo da tortura!
A estreia do ex-juiz na vida política partidária transborda, assim, de hipocrisia e pode ser uma caixa de pandora ainda maior do que a atual. Ao se filiar a um partido político e se lançar candidato à Presidência da República ele não pode escapar da pergunta: “o que pensa da tortura?” E como isso não bastasse, ele precisa se explicar quanto à ajuda que deu na pavimentação do caminho de Jair Bolsonaro para assumir o poder. Disso ele não prestou contas nem ao CNJ, nem ao STF que, recentemente, o declarou parcial nos julgamentos em que proferiu contra o ex-Presidente Lula.
Rememorando…
Como membro do Poder Judiciário, o ex-juiz Sérgio Moro agiu de forma muito similar a um tirano, nada a ver exatamente como um juiz, sendo guiado pela sanha punitivista permeada por idiossincrasias; ele atropelou os cânones do Direito brasileiro e adotou os parâmetros de um poder político degenerado. Só impurezas…
Ao conduzir os processos relacionados à Operação Lava Jato, que compactou investigações sobre atos de corrupção que teriam sido praticados na Petrobrás nos contratos com empreiteiras para realização de obras Brasil afora, o senhor Sérgio Moro proferiu decisões juridicamente precárias, livrando uns réus da prisão e pesando a mão sobre outros. E isso não foi algo inédito na sua carreira. O Banestado é, ainda, uma névoa. O pior de tudo, no caso da Lava Jato é que Sérgio Moro conduziu suas decisões quase que exclusivamente baseado apenas em palavras de pessoas submetidas à pressão psicológica (o que se assemelha a uma espécie de tortura), as quais teriam fornecido informações úteis arranjadas pelos membros do Ministério Público Federal atuantes em Curitiba, através da aplicação abusiva da Lei nº12850/13 a qual, em condições normais temperatura e pressão, já é um abuso. Para tanto, ele se mostrou sempre afinado com a coordenador da equipe ministerial, o ex-procurador da República, Deltan Dallagnol, também um outro candidato estreante no cenário político partidário e eleitoral.
As informações úteis, tratadas como delações de conteúdo inquestionável, foram convertidas em prova daquilo que não provavam, já que eram versões sobre um mesmo fato, cada vez contadas de diferentes maneiras. Por isso podem ser designadas de “arranjos”.
Nada disso passou em branco ao olhar de importantes nomes do cenário jurídico brasileiro, e de coletivos de juristas, como o Prerrogativas. Não faltaram alertas sobre ser a Lava Jato uma farsa, posto que, aquilo que no processo se designava prova, na verdade, implicava uma tomada da parte pelo todo, sem elos consistentes, sem uma demonstração técnico-pericial séria. Faltavam provas, sobravam convicções.
Todavia, a despeito de tudo, a Operação Lava Jato foi exaltada, em especial, pela mídia corporativa em nome do combate ao crime de corrupção, se revelando, ao fim e ao cabo, uma chave publicitária imprescindível para demonizar a política brasileira e associar partidos políticos a uma organização criminosa, e muito especificamente o PT, que esteve, antes de 2016, no governo do país. Assim, ora o combate à corrupção foi publicidade, ora discurso messiânico capaz de operar milagres. Deu-se a junção degenerada do Direito e da Política através do uso fundamentalista de um discurso de viés moralista num formato religioso.
Agora, demonstrado que a Operação Lava Jato foi a própria corrupção do sistema judicial brasileiro e que desarranjou a vida política nacional, tendo como protagonistas Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, entre outros, mesmo assim, ambos ancorados num discurso de pseudo pureza institucional pretendem migrar para a política eleitoral. Trarão a pureza para essa esfera? Certamente que não! E a ironia da História é chegarem declaradamente à política partidária depois de terem inescrupulosamente feito política escandalosa para levar à condenação Luiz Inácio Lula da Silva, sem a indicação de provas ou identificação de atos concretos de corrupção por ele praticados. Lula hoje é o favorito, de novo, nas pesquisas eleitorais para ocupar a cadeira da Presidência e como se fosse Presidente do Brasil foi tratado em recente viagem pela Europa, sendo agraciado com honrarias, declarações de respeito e admiração pelo governo que fez e pela pessoa humana que é.
É preciso lembrar que na esteira do espetáculo que Sergio Moro e Deltan Dallagnol protagonizaram, eles contribuíram para degenerar a democracia brasileira em uma forma anárquica de governo, assumida por Michel Temer em 2016 e sucedida por Jair Bolsonaro, ainda mais anárquico. Puseram Luiz Inácio Lula da Silva, na prisão por 580 dias, impedindo-o de concorrer à Presidência da República em 2018, além de aviltar os seus sentimentos mais profundos para viver o luto pelo falecimento do seu irmão e do seu neto, o que ocorreu quando ele, ainda, se encontrava preso. Hoje, ele finalmente voltou a gozar da liberdade e dos direitos políticos graças a uma decisão do STF que anulou todos os processos movidos contra ele justamente por reconhecer a parcialidade de quem o julgou, ao modo daquilo que fazem os tiranos.
Com a entrada em cena de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol a representação política por meio do voto, algo tão importante numa democracia representativa, pode definitivamente se esvaziar de sentido, caso esses dois personagens sejam beneficiados do gesto teatral que se habituaram a fazer, incorporando o aleatório ao script que ousam reverberar. Em algum lugar do passado, numa situação hipotética de involução das espécies, eles estariam assemelhados a ratos que ambicionam um enorme pedaço de queijo.
2016, o ano do teatro midiático, parlamentar e judicial em estado de degeneração, que tirou da Presidência Dilma Roussef, acenando-lhe com o cinismo de um “Tchau, querida!” ficará na História do país como a revelação d’O Espírito das Leis Brasileiras. Resumidamente, na formulação teórica sobre a Separação de Poderes, para exaltar o parlamentarismo inglês, Montesquieu afirmou que “as leis são as relações necessárias que derivam da natureza das coisas”. Pois bem, no Brasil, ficamos, portanto, atônitos com as leis que prevaleceram (relações necessárias para quem?) que expôs a crueldade da realidade brasileira: machista, elitista, racista, tudo que considerávamos minimizado pelo desenho institucional trazido na Constituição de 1988 e que, não obstante tenha lá as suas imperfeições, nos conferia o sentimento de que o povo brasileiro conquistaria a cidadania plena num panorama de estabilidade política e relação civilizada entre as funções de poder do Estado. Pensávamos, assim, que tínhamos dado um nó na História sem trilhar o gosto de sangue que ela oferta num processo revolucionário e que foi o caminho trilhado por outros povos até chegar ao amadurecimento democrático, que definiu a sua forma e regime de governo.
A despeito disso, não dá pra esquecer que a nossa História tem, sim, algum gosto de sangue derramado pelos quase quatro séculos de escravidão e ataques contínuos para conseguir o extermínio da população indígena. Tampouco se pode olvidar os períodos autoritários que atravessamos, em especial, o da ditadura militar. Mas o que dói é saber que o sangue derramado sobre esse solo coincide sempre com o dos vencidos. Não há manchas de sangue dos que saíram como vencedores. As nossas lutas contra a opressão não foram derrotas, mas também não significaram a eliminação dela. O sossego histórico nas nossas vidas vem da canção, uma felicidade tão efêmera como “a gota de orvalho numa pétala de flor”.
Pena! A sensação é que escorregamos – sem nos darmos conta- na nossa própria História, e esse escorrego talvez tenha decorrido da suposição de que pusemos a ditadura na lata do lixo de um passado estragado. Hoje, os fantasmas que ela criou emergem e circulam como uma substância altamente contaminante a nos causar pânico, sendo uma sombra que obscurece nossos sonhos e nos atormenta no nosso horizonte próximo e até longíquo.
Essas pinceladas da História recente do país parecem uma projeção da deformidade do passado e isso deve nos fazer pensar muito seriamente num modelo de Justiça que não lave a jato as condutas desses estreantes na cena política brasileira: Sérgio Moro e Deltan Dallagnol assim como de alguns outros que anunciem ter a mesma pretensão, e que colaboraram para o estado de coisas que nos aflige. Em relação a ambos, por exemplo, já é possível afirmar que dos atos praticados durante o exercício de suas funções dentro do sistema de Justiça, um prejuízo econômico foi causado ao país, por haverem levado empresas importantes à recuperação judicial, causando a demissão de milhares de pessoas; também causaram um prejuízo político, fragilizando o sistema eleitoral do país e no qual agora se embrenham para se catapultarem a cargos eletivos, quando, antes, tramaram a saída de um candidato à Presidência da República, manipulando o sistema jurídico-processual.
Assim, em relação a eles, espera-se que a sociedade brasileira se conscientize de lutar pela Memória, Verdade e Justiça tal como o exemplo inspirador recentemente trazido pelo Tribunal do Genocídio montado no teatro da PUC – SP, no último dia 25 de novembro, para julgar as ações e omissões do Presidente Jair Bolsonaro na gestão da Pandemia.
O Tribunal do Genocídio foi um dos eventos de resistência mais positivamente inspiradores ocorridos nos últimos tempos no país. Isto porque resgatou numa representação cuidadosa, racional e séria sobre o funcionamento de um Tribunal de opinião voltado ao debate profundo e argumentativo acerca da Justiça. Nunca as palavras pronunciadas nesse Tribunal fizeram tanto sentido. Ele foi o palco que trouxe de volta o significado das coisas e das palavras e fomentou uma esperança de horizontes de vida coletiva, construtiva, civilizada e equilibrada. A despeito de ter-se configurado como um Tribunal de opinião, em virtude do que a emoção também fluiu na fala dos que dele participaram, a representação do julgamento do Presidente Jair Bolsonaro foi um resgate de como a justiça tem que ser buscada e ser realizada.
Ora, reflitamos sobre o que foi a Justiça nas maõs dos lavajatistas, hoje candidatos a cargos eletivos. Ela se converteu num valor esvaziado de conteúdo e aviltante na forma, isto porque eles nem foram autênticos no exercício das funções que exerceram no seio do sistema de Justiça e por isso mesmo também não podem exibir autenticidade na esfera da vida político-partidária. Eles são verdadeiramente fingidores e estão longe, muito longe de nos trazer alguma poesia como o “poeta que finge a dor que deveras sente”, como diria Fernando Pessoa.
Eles foram exatamente o oposto do que se pode ver na representação do Tribunal do Genocídio que contou com: a) a ex-procuradora da República, Debora Duprat encarregada de sustentar a acusação contra o Presidente Jair Bolsonaro, imputando-lhe a prática de cinco crimes, dentre eles, o de genocídio; b) o advogado Fábio Tofic na defesa do Presidente, argumentando que não vê configurada, no caso, a prática do genocídio, por não enxergar o enquadramento das ações e omissões na descrição desse tipo penal, embora tenha admitido a ocorrência dos demais crimes, dentre ele, o de crime contra a Humanidade; c) a condução serena da desembargadora aposentada Kenarik Boujikian e d) a formação de um corpo de jurados representativos da diversidade de segmentos sociais que, no púlpito, manifestaram as suas opiniões acerca dos crimes, fundamentando-as.
A fala objetiva e técnica da acusação foi um alento e um resgate de um Ministério Público equilibrado, sem estrelatos, focado nos fatos donde nasce uma argumentação coerente e direta carregada de preocupação em demonstrar, através de documentos (muitos deles relativos ao trabalho da realizado pela CPI do Senado) a razão pela qual os crimes imputados estavam devidamente comprovados e o de genocídio se manifestava de forma gritante em relação às populações indígenas.
Foi particularmente salutar ouvir os argumentos do advogado de defesa cuja atuação, sem dúvida alguma, se mostrava extremamente espinhosa ante o fato de que o Brasil ostenta a assustadora cifra de mais de 614 mil mortes ocasionadas pela Covid-19. Sobretudo, a fala da defesa era difícil porque esgrimava contra estudos que apontam no sentido de que centenas de milhares de vidas poderiam ter sido poupadas se medidas sanitárias recomendadas por autoridades científicas tivessem sido rigorosamente adotadas pelo alto escalão do governo na área de saúde, submetidos à coordenação displicente do Presidente da República. Isso sem contar com o fato de que hábitos simples poderiam ter sido estimulados pelo próprio Presidente, para servir de exemplo à população, como o uso de máscaras. Ou ainda, se o governo não tivesse se esforçado para iludir a população com o discurso de tratamento precoce contra Covid-19, insuflando-a a consumir e até distribuindo fármacos como a ivermectina e a hidroxicloquirina declaradamente ineficazes para prevenir a doença, além de terem graves efeitos colaterais quando prescritos em doses contínuas, longas e alentadas.
Durante a manifestação no púlpito, as falas dos jurados foram tocantes, a do médico sanitarista Arthur Chioro merece destaque porque trouxe à tona o argumento não explorado pela defesa de que as populações indígenas, composta de vários grupos étnicos facilmente identificáveis como os descendentes dos habitantes originários do país, estão diretamente submetidas aos cuidados do governo federal que deve lhes fornecer toda a assistência médica necessária à preservação de suas vidas e à preservação de toda cultura que exibem como patrimônio social, linguístico e epistemológico do Brasil mais profundo e remoto.
A ocorrência desse Tribunal tem que servir de inspiração e orgulho sobre a resistência que podemos ter e da “virada de jogo” que somos capazes de produzir antes, durante e depois do período eleitoral, construindo um Parlamento que seja representativo dessa resistência e elegendo um Presidente humanista, desconectado do ódio.
Temos assim uma semente para fazer crescer a rejeição desses aventureiros políticos, lembrando que a derrota deles implica abrir o caminho para submeter o atual Presidente da República a um julgamento de verdade, sério e sob a acusação de crime de genocídio porque afinal admitir que ele praticou crime contra a Humanidade e não cometeu genocídio seria instaurar o paradoxo: o de negar a identidade e etnia dos indígenas que por essa condição, como descendentes dos habitantes originários do país, foram relegados à própria sorte ao invés de terem recebido cuidados extra pelo governo federal face à pandemia a fim de preservar a vida deles e fazer subsistir a sua cultura, que tem expressão máxima no trato deles com a floresta, algo fundamental para luta contra as mudanças climáticas que é o grande desafio de futuro no mundo.
Maria Betânia Silva é Procuradora de Justiça Aposentada – MPPE e Membra do Coletivo Transforma – MP