Sem uma análise cuidadosa do caso, qualquer homicídio praticado contra policial nessas circunstâncias será qualificado e, consequentemente, hediondo. Mas essa conclusão, adotada como padrão de julgamento, não parece a mais adequada.
Em julho de 2015 era sancionada a lei federal n. 13.142, fruto de proposta do deputado Leonardo Picciani (MDB-RJ), que seria nomeado ministro do esporte de Michel Temer em 2016. A tramitação do projeto, que recebeu várias emendas, refletiu o que já se prenunciava como fase terminal do governo Dilma Rousseff, então acuado e parcialmente dominado pelas forças do atraso, representadas pelo pior da elite nacional: uma avalanche de iniciativas, no campo jurídico, tendentes a agravar o punitivismo penal, travestidas de ações para “valorizar o policial”, proteger “os cidadãos de bem” e coisas desse tipo. Nisto entravam discursos contra a revisão da lei da anistia, pela redução da maioridade penal e outras pérolas. O país veria, alguns anos depois, já em outro governo, produtos desse pensamento afinal concretizados, expressos no incentivo oficial ao livre comércio de armas e na presença, aos milhares, de militares e policiais, da ativa e aposentados, em cargos da administração federal.
Foi por meio dessa lei que se inseriu no Código Penal um dispositivo que tornou qualificado o homicídio cometido “contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal […], no exercício da função ou em decorrência dela […]”. Além disso foi incluído na Lei dos Crimes Hediondos o crime de lesões corporais, gravíssimas ou seguidas de morte, quando praticadas contra as mesmas vítimas. Estas, segundo os artigos 142 e 144 da Constituição Federal, são os integrantes das forças armadas e das “polícias penais”, federais ou estaduais.
É preciso ver as coisas no seu tempo, a fim de partir, com segurança, para uma hermenêutica razoável daquilo que foi então aprovado. Só para falar dessa inclusão das lesões corporais como crime hediondo, houve acalorado debate na Câmara Federal, destacando-se fala do deputado Rubens Bueno (PPS-PR), no seguinte teor: “Não se trata de ser PT, PPS ou PP, e sim de termos consciência de que estamos votando um projeto que significa barbárie. Nenhum país do mundo tem isto de lesão corporal ser crime hediondo”. Isso ajuda a ter uma ideia do conjunto da obra que chegava para votação do Congresso.
Quanto à qualificadora do homicídio praticado contra policiais, tem se visto nos processos uma infinidade de pronúncias e condenações quando a vítima está em perseguição, ou troca de tiros, com o dito bandido, que será o réu submetido a julgamento pelo tribunal do júri. Considerando que o policial estava no exercício da função, o juízo criminal invariavelmente reconhecerá o homicídio qualificado, elevando a pena mínima de seis anos, do homicídio simples, para doze anos de reclusão.
Sem uma análise cuidadosa do caso, qualquer homicídio praticado contra policial nessas circunstâncias será qualificado e, consequentemente, hediondo. Mas essa conclusão, adotada como padrão de julgamento, não parece a mais adequada.
Se o suposto bandido está fugindo da polícia, provavelmente procura se esquivar da responsabilidade por algum crime já cometido. Se policiais vão atrás dele e, mais ainda, se trocam tiros, é porque estão em atividade de perseguição, coisa que qualquer pessoa pode também fazer – e possivelmente fará em determinadas circunstâncias. Afinal, qualquer do povo pode prender quem estiver em flagrante delito, reza a norma processual.
Então o indivíduo perseguido não atira nos policiais por se tratar de policiais: atiraria contra quem quer que estivesse no meio do seu caminho de fuga. Logo, a qualidade especial da vítima não terá sido essencial para a prática do possível homicídio. Dir-se-á “mas o policial estava no exercício de sua função…”. Sim, porém a compreensão do sentido da lei há de se obter a partir do conjunto de todo o sistema legal: é a chamada interpretação lógico-sistemática. Não pode ser tida por intenção do Código Penal punir alguém mais gravemente, ou menos, na dependência da profissão da vítima. Aceitar a qualificadora em qualquer hipótese, desde que o policial esteja no exercício da função, equivale a admitir que vidas valem menos ou mais, a depender do emprego de cada pessoa. No extremo oposto desse entendimento estaria o também inaceitável pensamento de que a vida do policial vale menos porque, ora bolas, foi ele que escolheu essa profissão e os seus riscos. E não tardaria a surgir proposta de uma absurda causa de diminuição de pena para o autor do homicídio…
Se nada disso é razoável, então apenas uma conjugação do elemento objetivo (exercício da função) com o subjetivismo do homicida, querendo atingir o policial porque é policial, se mostra capaz de levar a uma justa interpretação da qualificadora posta pela atual redação do artigo 121, § 2º, VII, do Código Penal.
Para tanto é preciso circunscrever esse exercício da função àquelas atividades que só podem ser praticadas por policial: patrulhamento ostensivo, investigação formal, presidência de inquérito, cumprimento de ordens de busca e apreensão. Somente nessas hipóteses é possível falar com certeza que o criminoso matou a vítima por sua condição de policial e que não teria matado outra pessoa qualquer. Em outras palavras, estando a vítima no exercício de funções que não lhe são exclusivas, a sua condição de policial há de ser determinante para o homicídio: caso contrário, não se poderá reconhecer a qualificadora.
Notícias recentes dão conta de que, desde o início do uso de câmeras portáteis em diligências da polícia militar, o índice de letalidade, sempre muito alto e por vezes crescente, caiu vertiginosamente em S. Paulo. Isto não afetou a produtividade da PM, segundo a Secretaria da Segurança: conforme dados de junho de 2021, o número de prisões em flagrante cresceu doze por cento em comparação com o mesmo mês do ano anterior. Ou seja, morre-se menos, inclusive policiais, e isto não tem a ver com a modificação do Código Penal.
Com a mortandade de antes, narrada de um lado como violência policial, de outro como agravamento da criminalidade, já não se sabia quem atirava para matar ou para se defender. Presumindo que temos um projeto de país que possa dar certo, a verdade é que não queremos mortes e que todas as vidas valem a mesma coisa. A boa hermenêutica jurídica é aquela que está sempre conectada com a realidade e que se faz por meio de outros recursos que não apenas a literal – e por vezes simplória – leitura da lei.