País decidiu pela taxação dos mais ricos e das grandes empresas como forma de minorar os efeitos desastrosos da pandemia.
O governo espanhol – tendo à frente os partidos PSOE e Unidas Podemos – decidiu pela taxação dos mais ricos e das grandes empresas como forma de minorar os efeitos desastrosos da pandemia. Na verdade, trata-se de uma tributação até inferior ao que queria o governo, mas, de toda maneira, foi um acordo importante entre os dois partidos para garantir o orçamento, sem a necessidade de cortes e outras medidas de austeridade, “inaugurando uma nova etapa que deixa para trás o caminho neoliberal.”
Esta estratégia, aliás, agora, e de certa maneira, passou a ser defendida inclusive pelo Fundo Monetário Internacional, “que se distancia cada vez mais da ortodoxia pela qual se destacou nos anos mais difíceis do chamado consenso de Washington, recomendando a criação de impostos para os mais ricos.”
A partir do acordo firmado pelos dois partidos que dão sustentação ao governo espanhol, adotar-se-á “um aumento do imposto de renda para os grandes grupos empresariais, limitando-se as isenções por dividendos e lucros gerados por sua participação em filiais.”
Ademais, estabelece-se “uma tributação mínima de 15% para as empresas cotadas de investimento imobiliário, reduzindo-se as deduções relativas a planos privados de aposentadoria para as contribuições mais altas.”
Pactuou-se, também, que haverá “uma elevação de um ponto percentual no imposto patrimonial para que disponha de mais de 10 milhões de euros (cerca de 67 milhões de reais), ficando a cargo dos governos regionais a aplicação destes recursos.”[1]
O partido de esquerda – Unidas Podemos – também conseguiu “aumentar em 5% o índice que determina boa parte dos subsídios e ajudas públicas, aumentando o salário aos funcionários públicos e as pensões, segundo a inflação oficial estimada.”
Assim, o novo orçamento “resultará em um investimento público recorde de 239,76 bilhões de euros, antecipando-se que o investimento em educação aumentará 70%, com um acréscimo de 514 milhões de euros nas bolsas de estudos e 1,5 bilhão em quatro anos para a modernização da formação profissional, injetando-se mais de 5 bilhões de euros adicionais em pesquisa e desenvolvimento, um aumento de 80%.”
Já na infraestrutura, o investimento “ganhará 6,16 bilhões de euros adicionais, uma alta de 115%; e as verbas destinadas à indústria e energia aumentarão em 5,7 bilhões de euros.” Também foram anunciadas medidas para ajudar os “setores especialmente afetados pela pandemia, como o comércio, o turismo e as pequenas e médias empresas, que crescerão 150%, com 1,3 bilhão a mais; para a cultura, se prevê uma alta de 25,6%; e a agroindústria contará com recursos adicionais de quase 790 milhões de euros, além de reforçar a saúde pública, que a pandemia colocou em primeiro plano, regulando-se, também, o controle dos preços dos aluguéis.” Dessa maneira, a Espanha “terá a lei nacional de moradia com o maior grau de intervenção pública no mercado de aluguel na Europa.”[2]
Tais medidas deveriam ser um exemplo para boa parte dos países no mundo, inclusive o Brasil. A propósito, Thomas Piketty, no seu mais recente livro – Capital e Ideologia -, de uma maneira impressionantemente clara, precisa, profunda e com base em dados empíricos e históricos, demonstra “os consideráveis perigos provocados pelo aumento da desigualdade socioeconômica observado desde os anos 1980-1990”, especialmente em razão de que “a coalização social-democrata e o sistema esquerda-direita que, em meados do século XX, haviam possibilitado a redução da desigualdade, desintegraram-se pouco a pouco, por não terem sido capaz de uma suficiente renovação, num contexto marcado pela internacionalização do comércio e pela terceirização educacional.”[3]
Citando expressamente, dentre outros, o caso brasileiro, ele observa atentamente que “essa desigualdade gera tensões sociais crescentes, alimentando o crescimento das clivagens identitárias e nacionalistas observadas hoje em quase todas as regiões do mundo.” Aliás, o Brasil merece um tópico específico no livro: “A politização inacabada da desigualdade no Brasil”, onde ele identifica, “ao longo do período entre 1989 e 2018, a formação de um sistema partidário específico de tipo classista, apresentando desafios ainda maiores em termos de redistribuição e de influências cruzadas com os outros partidos do mundo”, sem esquecer (o que é um mérito) que fomos “o último país do espaço euro-atlântico a abolir a escravidão, em 1888, e em termos gerais, que o país continua a ser um dos mais desiguais do planeta.”
Sobre o presidente da República, reconhece “que ele não esconde sua simpatia pela ditadura militar e sua preferência pela ordem social, pelo respeito à propriedade e pelas políticas duras de segurança pública”, comparando-o a Donald Trump, quando “também se fundamenta na exploração das diferenças raciais e da nostalgia da ordem do homem branco, num país onde os ´brancos` oficialmente deixaram de ser maioria”, concluindo que “no Brasil, como na Europa e nos Estados Unidos, é impossível reduzir a desigualdade, como seria desejável, sem modificar também o regime político, institucional e eleitoral.”[4]
Na Quarta Parte do livro, no Capítulo 17, Piketty, fundamentado fortemente na experiência histórica, conclui ser “possível erradicar o sistema capitalista atual e traçar os contornos de um novo socialismo participativo para o século XXI, ou seja, uma nova perspectiva igualitária universal baseada na propriedade social, na educação e no compartilhamento de conhecimentos e poderes.”
Para isso, ele estabeleceu determinados “elementos” que permitiriam uma ruptura com este sistema capitalista desigual, injusto, perverso, elitista e, sobretudo, gerador de crises sociais absurdas. Afinal, conforme Beluzzo e Galípolo, “em sua configuração atual, o capitalismo escancara a incapacidade de entregar o que promete aos cidadãos, manifestando-se esta exclusão no desemprego dos jovens, no desemprego estrutural promovido pela transformação tecnológica e pela migração da manufatura para as regiões de baixos salários.”[5]
O primeiro “elemento” indicado pelo autor francês seria o que ele chama de “propriedade justa”, a ser atingida a partir do “desenvolvimento de novas formas de propriedade social, de divisão dos direitos de voto e de participação na tomada de decisão nas empresas, substituindo-se a noção de propriedade privada permanente pela de propriedade temporária, por meio de um imposto fortemente progressivo sobre as grandes fortunas, permitindo-se financiar uma dotação universal em capital e assim organizar a permanente circulação dos bens e da riqueza.”[6]
Picketty considera como um dos pilares para um novo socialismo participativo e erradicante do capitalismo selvagem, o imposto progressivo sobre a renda e a renda básica, “a fim de evitar que uma concentração desmedida da propriedade volte a se reconstituir”, defendendo “impostos progressivos sobre a herança e a renda, para que cumpram no futuro o papel que tiveram ao longo do século XX, com alíquotas atingindo ou ultrapassando 70%-90% no topo da hierarquia dos patrimônios e das rendas durante décadas (em especial nos Estados Unidos e no Reino Unido), décadas que, olhando hoje em retrospectiva, parecem os períodos de maior crescimento jamais observado na história.”[7]
Evidentemente, e segundo ele próprio adverte, apenas estes dois impostos (sobre a herança e a renda) não bastam, devendo “ser complementados com um imposto progressivo anual sobre a propriedade, a ser considerado como ferramenta central para que se possa assegurar uma verdadeira circulação do capital.” Eis, então, o tríptico pikettyano do imposto progressivo: propriedade, herança e renda!
E o que se vê no Brasil, desde uma lógica neoliberal concebida a partir de uma visão canalha da economia e do mercado? Tenta-se rigorosamente o contrário: ressuscitar com uma justificativa falsa (substituir os tributos cobrados sobre a folha de pagamento das empresas) a Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos e Direitos de Natureza Financeira, conhecida como CPMF, tributo que incidiu sobre quase todas as movimentações bancárias e que vigorou no Brasil por 11 anos, sendo extinta apenas em 2007.
Como se sabe, a ideia gestada no gabinete do ministro da Economia é criar um imposto sobre transações digitais, ainda que se saiba que tributos sobre transações financeiras são um dos fatores mais prejudiciais para o crescimento da economia, pois, além de ser nitidamente cumulativo (exigido a cada transação e em quase todos os elos da cadeia produtiva), é indireto e regressivo (cobrado a partir de uma relação inversa com os rendimentos do contribuinte), onerando, em razão disso, as pessoas com menor poder aquisitivo.
Um outro caminho apontado por Piketty é a justiça educacional, abandonando-se o que ele chama de “hipocrisia educacional”, o que exige a promoção de “uma substancial transparência em termos de alocação de recursos”, tendo em vista que, atualmente, “na maioria do países, os procedimentos para regular os gastos com educação são relativamente opacos e não permitem uma apropriação coletiva dos cidadãos.”
Como ele nota, sempre a partir de dados historicamente comprovados – e isso caracteriza toda a obra de Piketty, o que a torna, sob este aspecto também, absolutamente confiável -, “em algumas situações, a remuneração média dos professores aumenta à medida que o estabelecimento recebe mais alunos socialmente favorecidos.” Ademais, para agravar a questão da desigualdade educacional, especialmente nos países periféricos (mas não apenas), “em outras situações, o investimento público em educação é quatro vezes mais elevado para certos grupos (por acaso também os mais privilegiados) do que para outros de uma mesma geração.”[8]
Ainda neste aspecto, outro problema enfrentado por Piketty – também, e mais uma vez, de forma empírica – é o da “coexistência de estabelecimentos públicos e privados, tanto no primário e no secundário quanto no ensino superior.” Como acontece no Brasil, onde a “hipocrisia educacional” é uma realidade absolutamente visível, “na prática, os estabelecimentos particulares costumam receber financiamentos públicos, direta ou indiretamente, através de um estatuto jurídico e tributário específico, exercendo, sobretudo, uma atividade do serviço público essencial, a saber, o direito de cada criança à formação e ao saber.”
É preciso que estes estabelecimentos privados de ensino “estejam sujeitos a uma regulação comum em conjunto com os estabelecimentos públicos, tanto no que diz respeito aos recursos disponíveis quanto aos processos de admissão”, sob pena de que “todos os esforços para estabelecer padrões de justiça aceitáveis no setor público sejam, de imediato, ignorados e desviados para as escolas privadas.”[9]
Finalmente, como um último “elemento” que permitiria avançar na direção de uma perspectiva igualitária universal, o economista francês aborda a questão “da democracia e da fronteira, e o modo como é possível repensar a atual organização da economia global em benefício de um sistema democrático transnacional, fundamentado na justiça social, tributária e climática, rumo a uma democracia participativa e igualitária.”
Como fica demonstrado ao longo do livro, “todas as trajetórias históricas mostram o quanto a estrutura da desigualdade está intimamente ligada à forma do regime político em vigor”, pois, qualquer que seja a sociedade, “o modo de organização do poder político permite que um certo tipo de regime desigualitário perdure.”
De certa maneira, o brasileiro Milton Santos já alertava para este fenômeno, quando dizia que a “concorrência superlativa entre os principais agentes econômicos, a competitividade, ocasiona a emergência de um lucro em escala mundial, buscado pelas firmas globais que constituem o verdadeiro motor da atividade econômica, produzindo ainda mais desigualdades. E, ao contrário do que se esperava, crescem o desemprego, a pobreza, a fome, a insegurança do cotidiano, num mundo que se fragmenta e onde se ampliam as fraturas sociais.”[10]
Voltando a Piketty, ele faz referência àquilo que reputa “a mais delicada questão para definirmos a sociedade justa: a fronteira justa, como forma de repensar o federalismo social em escala global.” Assim, a globalização deve ser organizada de forma diferente, “substituindo os atuais acordos comerciais por tratados bem mais ambiciosos, visando a promoção de um modelo de desenvolvimento equilibrado e duradouro, incluindo objetivos comuns passíveis de deliberação e processos de deliberação democrática adequados.”
Atualmente, “o modo de organização da livre circulação de bens e dos capitais reduz consideravelmente as capacidades dos Estados de escolherem suas políticas tributárias e sociais”, de uma tal maneira que, “longe de fornecer o contexto neutro que pretendem, as regras internacionais levam à adoção de certas políticas e violam as soberanias sociais.”
Para Piketty, poder-se-ia considerar como uma sociedade justa “aquela que permite ao conjunto de seus membros o maior acesso possível aos bens fundamentais, sobretudo a educação, a saúde, o direito a voto e, em termos mais amplos, a participação de todos nas diferentes formas da vida social, cultural, econômica, civil e política”, de uma tal maneira que os seus “membros menos favorecidos se beneficiem das mais elevadas condições de vida possíveis, a partir das relações socioeconômicas e de propriedade, além da distribuição de renda e de patrimônio.”
Obviamente que uma sociedade justa não implica uma absoluta uniformidade ou uma igualdade total. Mas – isso é importante -, “resulta de aspirações distintas e opções de vida diferentes, em que se permite melhorar as condições de vida e aumentar o leque de oportunidades abertas aos mais desfavorecidos; então a desigualdade de renda e de propriedade pode ser justa. Mas isso deve ser demonstrado e não pressuposto, e tal argumento não deve ser usado, como se costuma fazer, para justificar qualquer nível de desigualdade.”
Tratar-se-ia a proposta de Piketty uma utopia? Talvez, mas, conforme acentua Dowbor, analisando exatamente as ideias do economista francês, também “já foram utópicos o imposto de renda (´os ricos nunca aceitariam`), a renda mínima, o direito de greve e tantas outras impossibilidades, até que essas ideias encontraram âncoras na mente das pessoas.” Ademais, Piketty, “sem ceder a ódios, nem preconceitos, oferece bases empíricas extremamente sólidas para se entender quão nocivo se tornou o reinado dos rentistas para a economia e para a política, trazendo a ferramenta mais útil, nas últimas décadas, para compreendermos as dinâmicas econômicas, sociais e políticas atuais, pois foi quem compreendeu que a desigualdade se tornou o desafio principal, e o imposto progressivo sobre o capital acumulado a sua principal ferramenta.”[11]
Portanto, e levando-se em consideração as ideias acima resumidas, o caso espanhol serve de exemplo para o mundo.
Rômulo de Andrade Moreira, Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia, membro do Coletivo Transforma MP e Professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador – UNIFACS.
[1] Além disso “o Governo elevou em três pontos percentuais o imposto de renda de pessoa física sobre ganhos de capital superiores a 200.000 euros (1,34 milhão de reais), o que atinge um número muito pequeno de contribuintes ? poupando a classe média e os mais pobres?, mas com valor político e simbólico em plena crise. O acordo também aumenta em dois pontos o IRPF para a renda do trabalho superior a 300.000 euros (dois milhões de reais), o que abrange um número menor de contribuintes do que o Governo propunha inicialmente, que eram 130.000 (871.000 reais). A elevação do imposto de renda para quem ganha mais de 300.000 euros afetará 16.740 contribuintes, segundo fontes governamentais, ou 0,08% do total de declarantes. Somando-se a elevação na alíquota sobre ganhos de capital, o aumento no IRPF pode afetar 36.200 contribuintes, ou 0,17% do conjunto.”
[2] As novas contas oferecerão uma antecipação de 27 bilhões de euros dos recursos europeus e incluirão outras mudanças tributária no imposto sobre consumo de 21% sobre bebidas açucaradas e adoçadas; a criação de um novo tributo sobre embalagens plásticas descartáveis; políticas fiscais verdes e modificações na tributação direta e indireta. Disponível em: https://brasil.elpais.com/internacional/2020-10-27/governo-da-espanha-propoe-taxar-mais-ricos-e-grandes-empresas-para-fechar-a-conta-do-coronavirus.html. Acesso em 28 de outubro de 2020.
[3] PIKETTY, Thomas. Capital e Ideologia. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2020.
[4] Este tópico específico sobre o caso brasileiro está incluído no Capítulo 16, da Quarta Parte (pp. 808-812).
[5] BELLUZZO, Luiz Gonzaga e GALÍPOLO, Gabriel. A Escassez na Abundância Capitalista. São Paulo: Contracorrente, 2019, p. 193.
[6] Aliás, a preocupação de Piketty com a tributação sobre o patrimônio já havia sido claramente demonstrada em sua obra anterior, o clássico O Capital no Século XXI, publicada em 2014, quando, sempre desde uma visão empírica que caracteriza a sua vasta produção intelectual e acadêmica, ele comprova ter havido um aumento exponencial na desigualdade de renda nas principais economias do planeta.
[7] Ele demonstra tal afirmação, claramente, no Capítulo 10 da Terceira Parte, nos Gráficos 10.11 e 10.12 (pp. 400-401).
[8] Aqui, ele mostra com o Gráfico 17.1 a desigualdade existente na França quanto à distribuição global do investimento educacional por geração (p. 851).
[9] “Desoneração da folha de escolas particulares não reduz mensalidades”, “Faculdades que recebem recursos do Fies reajustam preços acima da inflação” ou “Faculdades privadas tentam cobrar de aluno reajuste do Fies barrado pelo MEC”: esses são os títulos de apenas três das notícias encontradas numa rápida pesquisa no Portal da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino, entidade que representa mais de um milhão de professores e técnicos administrativos que atuam no setor privado de ensino em todo o Brasil. Disponível em https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-parentesco-desastroso-para-a-educacao/. Acesso em 28 de julho de 2020.
[10] SANTOS, Milton. O País Distorcido. São Paulo: Publifolha, 2002, p. 80.
[11] DOWBOR, Ladislau. A Era do Capital Improdutivo – A nova arquitetura do poder, sob dominação financeira, sequestro da democracia e destruição do planeta. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p. 149.