Por Leonardo Lusitano, no Le Monde Diplomatique Brasil.
Rimos quando uma pessoa que passou a vida como engenheiro, por exemplo, pega uma faca afiada e resolve operar o nosso coração, mas não quando opiniões são emitidas sem fundamentação alguma a respeito do que deveria ser a educação dos nossos jovens, aqueles que serão o futuro do nosso país.
Assim como em todos os outros campos do conhecimento, a educação constitui um campo científico, com ensino e pesquisas diversas. O governo Bolsonaro, recém-eleito, promete incluir no currículo escolar as disciplinas educação moral e cívica (EMC) e organização social e política brasileira (OSPB), que eram ensinadas durante a ditadura militar.
Ao contrário dessa proposta sombria de resgate da moral e cívica (que tem mais a ver com obediência do que com a formação de pessoas capazes de pensar por conta própria e modificar a sociedade), as linhas de pesquisa da educação existentes hoje nas universidades apontam para uma escola inclinada para a gestão democrática do ensino público e progressiva autonomia pedagógica. Apontam para a construção de espírito crítico. Seu triunfo, enfim, seria apresentar mundos possíveis e não “verdades” para reproduzir. Assim, homens e mulheres poderiam descobrir suas posições e afetos, sendo ativamente formados, sendo impulsionados a criar seu próprio caminho.
Além de não fazer parte de nenhuma linha do campo educacional, nem teórica e muito menos curricular, “moral e cívica” serviu como espantalho para o desmonte da escola pública a partir da lei 5962, a LDB publicada pela ditadura, em 1971. Foi combinada com a exclusão da liberdade de cátedra (principio que assegura a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber). Vale lembrar que na época da ditadura, Filosofia e Sociologia foram retiradas do currículo para dar lugar a essa disciplina, junto com OSPB, dando um claro recado para a sociedade: há valores pré-estabelecidos que devem ser seguidos invariavelmente; pensar é prejudicial aos poderes estabelecidos.
Mais do que visar o mercado de trabalho ou doutrinar um povo, o conhecimento deve servir para libertar as pessoas das servidões e ampliar seu universo afetivo. Só se aprende a amar um país imenso e múltiplo como o Brasil quando se mergulha em sua história, em sua vida cultural, em seus labirintos naturais, sociais e psíquicos, em suma, em sua diferença. Não é com subordinação a símbolos que formaremos brasileiros aptos a contribuir e participar ativamente na construção (sempre em vias de se fazer) do nosso tão jovem país.
Agora, vemos retornar essa iniciativa “moralizante” junto com outras barbaridades propostas por um presidente eleito (e por seu guru “intelectual” com suas indicações para ministérios), como a adoção da educação à distância no ensino fundamental, médio e universitário e do falacioso Escola sem Partido. Como nos anos de chumbo, essas propostas pretendem apenas sucatear escolas públicas, transformando seus alunos em mão de obra subalterna e disciplinada.
Reduzir a educação à moral é adoecer os espíritos, torná-los vulneráveis. É um ataque direto às conquistas democráticas iniciadas nos anos 1980 e efetivadas principalmente a partir da LDB de 1996, que teve como relator Darcy Ribeiro: menor nível de analfabetismo infantil, liberdade de ensino, universalização do ensino fundamental, queda nas taxas de reprovação, aumento de vagas na pré-escola, ampliação do investimento em educação básica. “O mais importante é inventar o Brasil que nós queremos”, dizia o antropólogo mineiro, autor de O povo brasileiro.
Essas conquistas são afirmadas nas últimas décadas com diretrizes básicas voltadas para uma educação democrática, que atenda crianças, jovens e adultos, com liberdade de pensamento e investimentos obrigatórios do poder público (é preciso lembrar que a lei 5962/71 retirou a obrigação da União de investir em educação, algo que se pode esperar do próximo governo). É preciso estimular o pensamento, não constrangê-lo: só assim podemos aprimorar os meios em que vivemos, abdicando do medo, da raiva e de encontros tristes, como nos lembra o grande filósofo holandês Espinoza. Criar é possível.
Leonardo Lusitano é professor de História da rede pública de Itaboraí, no Rio de Janeiro.