Ana Carolina Bartolamei Ramos, André Augusto Salvador Bezerra, Fernanda Orsomarzo, Gustavo Roberto Costa e João Marcos Buch.
“O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para esta perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou ver dele só o que, em cada momento, for susceptível de servir os nossos interesses”. José Saramago
Em tempos de modernidade líquida, não faltam opiniões que tentem negar a crise que assola o sistema carcerário brasileiro, a despeito da ausência de evidências neste sentido. A fundamentação desse pensamento talvez esteja sedimentada na ideologia pertencente ao eixo neoliberal da “lei e ordem”.
Olvida-se, porém, que a realidade tem primazia sobre os mecanismos. Se uma hipótese, amparada em uma razão qualquer, apresentar resultado diverso do que se verifica no mundo real, não é o mundo real que está errado. Assim sendo, necessário restabelecer a realidade fática.
Publicado no Estadão.
De início, é preciso lembrar que o discurso clássico de que a razão da pena é a repressão da culpabilidade resta superado. Faz algum tempo que se sabe que o direito penal existe para impor limites ao poder punitivo do Estado e que toda sua hermenêutica deve ter como filtro a Constituição.
Por outro lado, o fenômeno da violência, especialmente a urbana, vem sendo objeto de estudos da ciência há séculos, desde Lombroso, com sua criminologia etiológica individual, passando pela genética e a “marca de Cain” e pelo “behaveourismos” (estudo do comportamento dos animais).
Seguindo na criminologia – e aqui é preciso fazer essa incursão porque parece que essa ciência não está na pauta ou não é conhecida por alguns atores do sistema de justiça criminal – Durkheim nos trouxe, no início do século XX, a teoria da anomia, que evoluiu com Merthon, e para quem o desligamento do coletivo e passagem para a violência se dá em razão da pressão social pelo consumo e progresso econômico, sem que sejam ofertados meios para isso. Metaforicamente falando, a pessoa é convidada para a festa e barrada na porta.
Posteriormente, tivemos a teoria das sub-culturas delitivas, de Cohen e Cloward Ohlin, que indicam que, além da pressão pelo progresso econômico, o conflito vai se estabelecer quando o jovem das classes economicamente mais vulneráveis almejar o modo de vida do jovem da classe média, sem encontrar condições oficiais para conseguir o intento.
Ainda na criminologia de base social, chega-se à Escola de Chicago, que acresce às teorias anteriores o fato de que a desorganização da sociedade, especialmente nos grandes centros, contribuiria para o aumento da criminalidade. Seria a anomia, somada à desorganização, que gerariam a violência.
Finalmente, na segunda metade do século XX, surge a criminologia crítica (que tem em Alessandro Baratta um de seus principais pesquisadores) rompendo com a criminologia tradicional/etiológica, para a qual o crime é um fenômeno preexistente ao indivíduo e à sociedade e sua causa seria ou um defeito individual do sujeito (etiologia individual) ou um defeito de sua socialização (anomia, sub-culturas).
Para a criminologia crítica, especialmente a do “labbeling aproach”, o crime existe porque o Estado o define a partir de comportamentos eleitos como tal e o criminoso a partir da taxação/estigma que incide nesse comportamento.
Em resumo, disso tudo é possível retirar algumas considerações sobre o fenômeno da violência. Tendo em conta que pobreza não é sinônimo de violência e que a violência segue a linha da riqueza, quando uma nação forma consumidores e não cidadãos, o jovem que desejar a felicidade pelo ter sobre o ser e não encontrar referências nas instituições, não reconhecendo a educação como forma de superar os obstáculos que a vida lhe apresenta, tem grandes chances de partir para a marginalidade como meio para alcançar seu intento.
E, após uma progressiva escalada de violência, sem que o Estado para ele olhe e cumpra seu dever de desenvolver políticas públicas consistentes (vide Estatuto da Criança e do Adolescente, que até hoje é em boa parte ignorado em seu conteúdo programático), esse mesmo jovem alcança a maioridade penal e é preso uma primeira vez. Neste fatídico momento ele receberá um selo indelével na testa que o estigmatizará para o resto de sua breve vida como “bandido”. E assim a violência urbana é gerada.
Feitas tais considerações, passamos à uma breve análise do sistema carcerário brasileiro e dos recentes números divulgados pelo Ministério da Justiça por meio do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – INFOPEN 2017.
Segundo o relatório, o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo contando, atualmente, com 726.712 pessoas presas. Caminhamos a passos largos em direção ao primeiro lugar já que, dentre aqueles que estão à nossa frente (Estados Unidos e China), somos o único país que apresenta aumento no número de indivíduos encarcerados, com um crescimento, desde dezembro de 2014, de mais de 104 mil pessoas.
Falando em números e estatísticas, além do INFOPEN, existe o Geopresídios, que é uma radiografia do sistema prisional desenvolvida pelo Conselho Nacional de Justiça. Ele tem sido usado em contraponto ao INFOPEN, pois apresenta números menores de pessoas encarceradas.
Nesse ponto, é preciso dizer que a fonte dos dados do Geopresídios está no relatório mensal do cadastro nacional de inspeções nos estabelecimentos penais. Quem alimenta esses cadastros sãos os juízes da execução penal. Por sua vez, quem fornece os números a esses juízes são, de regra, as secretarias e departamentos penitenciários, sediadas nas capitais dos Estados. Eis aí o que aparenta ser uma deficiência do sistema do Geopresídios.
Lamentavelmente, os dados e números que as secretarias e departamentos repassam aos juízes, em boa parte, não retratam a realidade. Tome-se como exemplo fatos enfrentados por um dos autores deste artigo (João Marcos Buch – Juiz de Direito e Corregedor do Sistema Prisional da Comarca de Joinville/SC).
No ano de 2015, com dúvidas sobre o número de vagas no Presídio Regional de Joinville informadas pelo Departamento de Administração Penitenciária de Santa Catarina, determinou-se constatação por oficial de justiça. Eis que enquanto o Departamento apontava 650 vagas para 700 detentos, o auto de constatação verificou 580 para mais de 700 detentos. A partir de então, foi este número que passou a ser informado no relatório mensal do cadastro nacional de inspeções nos estabelecimentos penais.
Outro fato. Este ano foi publicada na mídia a classificação dos presídios. Em Santa Catarina a maioria teve classificação baixa ou regular, sendo que apenas 6% foram considerados excelentes.
Pois bem, os dados foram retirados do sistema do Conselho Nacional de Justiça, igualmente alimentado pelos juízes da execução penal no relatório mensal.
Se observarmos melhor, porém, o campo para essa classificação em cada relatório, não encontraremos critérios objetivos e qualitativos a condicionar a classificação. Ela é subjetiva, conforme a impressão do juiz. Tanto é que a Penitenciária Industrial de Joinville/SC, certamente uma das que mais se aproximam do cumprimento da Lei de Execução Penal em todo o Estado catarinense, não foi incluída como excelente.
E por quê?
Porque o juiz da execução penal assim não a considera, uma vez que nela ainda faltam postos de trabalho e estudo e a assistência social e atendimento à saúde ainda não são exemplares. Ou seja, a classificação veiculada não se originou de elementos concretos e objetivos.
Por último, um dos fatos mais graves.
Nada obstante haver ordem legal e regulamentar a respeito de que todo mandado de prisão cumprido deva ser comunicado imediatamente ao Juízo Processante e ao Juízo da Execução Penal do local onde ocorreu a prisão, as falhas nesse quesito são frequentes.
Em uma das inspeções judiciais, descobriu-se detento no Presídio Regional de Joinville preso há mais de onze meses, em razão de prisão preventiva decretada por furto, cujo processo sequer tinha chegado à fase da denúncia, e cujo mandado de prisão não fora comunicado à Justiça.
Na falta de advogado ou defensor público, não fosse a inspeção, o indivíduo permaneceria preso e perdido dentro do sistema carcerário. E isso tudo ocorre em um estado que possui alguma estrutura.
A questão é que os sistemas de controle da população penitenciária apresentam falhas. Tanto é assim que, em razão da necessidade de se ter um retrato correto, permanente e atualizado das pessoas presas no país, bem como a fase do processo respectivo a que elas respondem, a Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ministra Cármen Lúcia, capitaneia a instalação do Banco Nacional de Monitoramento de Prisões – BNMP 2.0.
Os Estados de São Paulo, Santa Catarina e Roraima foram escolhidos para iniciar o projeto, que já está em funcionamento. Espera-se que com este se resolvam e se evitem de uma vez por todas falhas como a do detento supramencionado, preso por onze meses sem que a Justiça soubesse.
De clareza solar, portanto, o equívoco de se propalar não ser o Brasil um país superencarcerador. É bem verdade que não podemos confiar nos números, mas parece-nos que, no (improdutivo) debate acerca da plausibilidade dos índices de encarceramento recentemente divulgados, tende-se à negativa dos fatos.
Mas a discussão vai além e deve se ater, sobretudo, à realidade. Uma simples visita à uma cadeia pública escancara o estado de coisas inconstitucional já reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal quando do julgamento da ADPF 347, de relatoria do Ministro Marco Aurélio.
E tal quadro, segundo o eminente relator, não pode ser atribuído a um único Poder, sendo fruto da omissão de todos os poderes públicos da União, dos Estados e do Distrito Federal: “A responsabilidade do Poder Público é sistêmica, revelado amplo espectro de deficiência nas ações estatais. Tem-se a denominada ‘falha estatal estrutural’. As leis existentes, porque não observadas, deixam de conduzir à proteção aos direitos fundamentais dos presos. Executivo e Legislativo, titulares do condomínio legislativo sobre as matérias relacionadas, não se comunicam. As políticas públicas em vigor mostram-se incapazes de reverter o quadro de inconstitucionalidades. O Judiciário, ao implementar número excessivo de prisões provisórias, coloca em prática a ‘cultura do encarceramento’, que, repita-se, agravou a superlotação carcerária e não diminuiu a insegurança social nas cidades e zonas rurais”.
Fica, portanto, o questionamento acerca do propósito de se tentar minorar um problema tão cristalino. Mais uma vez, voltamos à necessidade de que profissionais da área se desapeguem dos números, voltando seus olhares e suas ações à realidade, já que a mera observação afasta qualquer possibilidade de amenização.
A regra no país são estabelecimentos penais que apresentam número muito maior de pessoas presas que a capacidade projetada.
Não é preciso buscar os livros, a doutrina, as estatísticas. Basta ir a campo. Aqui vale lembrar, por exemplo, que, segundo dados do Conselho Nacional de Justiça, em janeiro de 2017 havia 564.198 mandados de prisão expedidos aguardando cumprimento no Brasil, número que em muito supera as 368 mil vagas oficialmente existentes nos presídios.
Ora, um operador do direito despido das burocracias que o dia-a-dia lhe impõe e comprometido com a realidade extra-autos facilmente constata que o sistema prisional brasileiro é pautado na violação generalizada dos direitos fundamentais, como o caso de suspeitos mantidos dentro de viaturas em face da ausência de vagas no sistema carcerário do Rio Grande do Sul.
Enfim, considerar a punição e a ameaça da dor como controladoras e dissuasivas de comportamentos indesejáveis por si só é um ponto de vista restrito e, por isso, precário. Não há conexão clara entre número de crimes e prisões. Faltam evidências que indiquem alguma influência de um sobre outro. Eles existem numa relação pouco compreendida e as pesquisas e estatísticas que se apresentam são imprecadas de inúmeras variantes, começando pelas cifras ocultas que nunca chegam aos sistemas estatais, que não podem ser consideradas conclusivas.
Por outro lado, a história prova que a harmonia se estabelece numa sociedade quando o contrato social se firma, quando todos se sentem pertencentes, quando todos são reconhecidos em suas profissões, estudos, modo de vida, quando todos, embora diferentes em sua individualidade, têm direitos iguais, oportunidades iguais e quando o direito penal é colocado no seu devido lugar, mínimo, como última alternativa.
Cumpre aos atores jurídicos a consciência disto e a descoberta de caminhos que coloquem um pouco de racionalidade na irracionalidade do sistema criminal, disseminada tendenciosamente no senso comum.
Esse é um imperativo ético.
Ana Carolina Bartolamei Ramos, Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná
André Augusto Salvador Bezerra, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de São Paulo
Dezidério Machado Lima, Defensor Público da Defensoria Pública do Paraná
Fernanda Orsomarzo, Juíza de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná
Gustavo Roberto Costa, membro do Transforma MP, Promotor de Justiça do Ministério Público de São Paulo
João Marcos Buch, Juiz de Direito do Tribunal de Justiça de Santa Catarina