Por Daniela Campos de Abreu Serra, no GGN.
A frase que dá título a estas reflexões é de autoria do poeta e músico Rafael Reparador e, originalmente, proferida em tom afirmativo (https://www.facebook.com/1347964985). Adaptei para o questionamento porque pretendo refletir sobre, ou seja, será que em terra de cego quem tem um olho é petralha? Nos últimos tempos, em especial desde o impeachment da Presidenta Dilma em 2016, venho me sentindo muito ofendida de ser chamada de “petralha” ou “lulista”, por isso resolvi refletir sobre esse tema.
Em outras ocasiões que tive a oportunidade de escrever na coluna do Coletivo Transforma MP, já venho refletindo, logicamente a partir da minha percepção do mundo, o “Ensaio sobre a Cegueira” que tem inebriado parte da sociedade brasileira. E essa reflexão é feita a partir de um lugar de fala muito claro: mulher, branca, classe média alta e Promotora de Justiça. Não adianta eu querer disfarçar e dizer que falo aqui como cidadã, porque as atribuições constitucionais de Promotora de Justiça permeiam minhas veias e eu vivo o Ministério Público, não há como dissociar os papéis. Não adianta eu dizer que compreendo o que é passar fome, se eu nunca efetivamente vivi e senti as dores no corpo de quem não tem o que comer. Por mais que eu compreenda o contexto histórico da escravidão e suas consequências contemporâneas, não serei capaz de compreender o sentimento daquele que já sofreu discriminação racial. Agora, como mulher, posso compreender e dizer do sentimento de ser ignorada durante uma conversação que os participantes sejam homens e você a minoria. Tais premissas são importantes, pois quando rotulamos pessoas com adjetivos como “esquerdopata”, “mortadela” ou “petralha”, olvidamos suas histórias de vida e seus lugares de fala. Isso não significa que como branca eu não possa refletir criticamente sobre o racismo e a discriminação racial, por exemplo, mas se faz importante identificar esse lugar de fala, para evitar contemporizações como “eu entendo isso que você está falando”, pois, a dimensão da compreensão de quem não viveu a situação é menor do que de quem estudou sobre.
Quando reflito sobre minha percepção de que parte da sociedade brasileira está vivendo uma espécie de “Ensaio sobre a Cegueira”, trago à reflexão que a obra de José Saramago nos permite pensar sobre como algumas ideias dominam o imaginário social como uma epidemia, capaz de cegar as pessoas e as conduzir a reações primitivas em que o ódio é o sentimento predominante, tal como atualmente observamos no Brasil. O estímulo ao ódio, principalmente entre classes, tem dificultado a percepção de que após o impeachment da Presidenta Dilma, não foi “só” o cargo da Presidência que foi ocupado por outra pessoa, mas que tal mudança impactou sobremaneira a concepção política de gestão do Estado brasileiro e, a partir de então, a construção do Estado de Bem Estar Social desenhado pela Constituição Federal de 1988, que caminhava a passos lentos (mas caminhava), deixou de ser implementado e passou a sofrer ataques que estão causando graves retrocesso sociais, como o retorno do Brasil para o Mapa Mundial da Fome.
O “resumo” dessa obra foi brilhantemente exposto pela Associação Juízes para a Democracia (AJD), entidade não governamental e sem fins corporativos, que tem dentre seus objetivos estatutários o respeito ao Estado Democrático de Direito, que preocupada e atenta aos rumos da democracia no país, através de nota pública manifestou nos seguintes termos: “O processo de deposição de uma Presidenta legitimamente eleita, ocorrido em 2016, tem paulatinamente sido reconhecido, pela maioria da população brasileira, como uma verdadeira ruptura democrática. O avanço do que poderia ser considerado um Estado de exceção não se limitou a esse ato, porém, de modo que se observam novas fraturas nas abaladas estruturas políticas que ainda sustentam a República.
Manifestações de representantes das forças armadas são proferidas para pressionar os demais poderes do Estado brasileiro, de modo a influenciar até mesmo decisões da mais alta Corte Judicial. Por sua vez, os meios de comunicação de massa eliminam do discurso as vozes dissonantes e exercem forte interferência sobre a opinião pública, subvertendo a verdade jornalística para atender interesses minoritários e restringindo, em vez de ampliar, a liberdade de expressão. Ademais, o uso das forças repressivas contra manifestantes pacíficos vem se intensificando em extensão e em violência. Mais especificamente, forças militares foram deslocadas para servir à intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro sem que houvesse motivos fáticos e históricos para tal medida.
Como se não bastasse, a partir de 2016, mais de cem ativistas sociais que lutavam pela causa dos direitos humanos foram mortos no Brasil, o que culminou com a execução da parlamentar Marielle Franco, no Rio de Janeiro, há quase trinta dias. Outros inúmeros militantes de direitos humanos têm sido ameaçados de morte, como, por exemplo, o Padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua de São Paulo.
As diversas instâncias do Poder Judiciário estão se sentindo compelidas a adaptar suas pautas ao calendário eleitoral, e mesmo o Supremo Tribunal Federal, que deveria ser o guardião da Constituição Federal, passa a realizar julgamentos modificando entendimentos jurisprudenciais consagrados para atingir (ou não!) determinados atores políticos. De outro lado, juízes com posicionamentos ideológicos divergentes do campo político majoritário são perseguidos e sofrem procedimentos administrativos com vistas à punição.
Todas essas circunstâncias levam a Associação Juízes para a Democracia a vir a público para denunciar que a ruptura do Estado Democrático de Direito no Brasil já é uma realidade, aprofundando-se a cada dia e ampliando os termos da violação cotidiana à Constituição e às liberdades cidadãs.
A AJD conclama, portanto, todos os cidadãos e cidadãs a engajarem-se ativamente na defesa do Estado Democrático de Direito e da Constituição e a oporem-se, em todas as frentes de que participem – associações, sindicatos, igrejas, clubes, partidos, o que for – ao avanço do autoritarismo e aos ataques à democracia, venham de onde vierem. São Paulo, dia 17 de abril de 2018”¹.
Sinceramente, a questão que se coloca não é mais se existiam hipóteses constitucionais ou não para a validade e legitimidade do impeachment da Presidenta Dilma, mas, que após esse fato, a gestão do governo brasileiro modificou-se estruturalmente e não mais busca atingir os objetivos fundamentais da República descritos no Artigo 3º da Constituição Federal, em especial, no tocante à erradicação da pobreza e da marginalização e da redução das desigualdades sociais e regionais. Esse para mim é o ponto que gostaria de ressaltar nessa reflexão, pois, enquanto nos dividimos em rótulos de “coxinhas” e “petralhas”, não conseguimos enxergar que a gravidade do atual cenário político brasileiro reside no abandono dessa principal parte do projeto, pois, enquanto a desigualdade de renda for o principal fator para a exclusão social no Brasil, não há como se falar em princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que não se pode garantir o mínimo existencial a todos os cidadãos brasileiros. E se defender essa premissa me torna uma “petralha”, lamento por aqueles que ainda não enxergaram a realidade brasileira, mas, no exercício da missão constitucional do Ministério Público, como Promotora de Justiça sou obrigada a defender e trabalhar pela consecução dos objetivos fundamentais da República, independente da minha visão de mundo ser liberal, socialista ou qualquer outra pensada pelos filósofos, sociólogos, cientistas políticos, entre outros.
Enquanto finalizava essas reflexões, fui surpreendida pela notícia de instauração de processo administrativo disciplinar² pela Corregedoria Nacional do Conselho Nacional do Ministério Público em desfavor do Procurador de Justiça paranaense Olympio de Sá Sotto Maior Netto. Conforme consta da referida portaria, “no dia 03 de fevereiro de 2018, o Procurador de Justiça O. S. S. M. N., Membro do Ministério Público do Estado do Paraná, durante o evento oficial denominado ‘IV Conferência Estadual de Promoção da Igualdade Racial do Paraná, ocorrido no Hotel Estação Express, na capital paranaense, do qual participou como Coordenador do Centro de Apoio Operacional de Proteção dos Direitos Humanos, representando o Ministério Público daquele estado, com consciência e vontade, finalizou seu discurso sobre o retrocesso das políticas públicas atinentes aos direitos humanos proclamando a expressão ‘FORA TEMER’. Ao assim proceder, o processado deixou de observar o dever legal de guardar o decoro pessoal e de manter conduta pública ilibada atentando contra a dignidade de suas relevantes funções e o prestígio do Ministério Público”. Ao final, nos termos legais expostos, foi proposta a aplicação da penalidade de advertência.
A instauração deste procedimento causou espanto a centenas de membros do Ministério Público brasileiro, não somente pela História deste Procurador de Justiça paranaense na defesa dos direitos humanos há décadas, cuja conduta funcional é irrepreensível, mas também por já ter exercido por duas vezes a função de Procurador-Geral de Justiça do Ministério Público do Paraná, o que também lhe confere anos de luta institucional em defesa da instituição do Ministério Público. Assim, seja no aspecto da atuação externa em defesa da sociedade como um todo e em especial das minorias, seja no aspecto da atuação interna no fortalecimento do próprio Ministério Público, não somente paranaense, mas brasileiro, não se pode conceber admitir uma afirmação que relacione o ato do Procurador de Justiça Olympio de Sá Sotto Maior Netto sem observância do “dever legal de guardar o decoro pessoal e de manter conduta pública ilibada atentando contra a dignidade de suas relevantes funções e o prestígio do Ministério Público”.
Neste sentido, importante relembrar que em março de 2017 o Coletivo Transforma MP protocolou junto à Corregedoria Nacional do CNMP extensa manifestação tratando sobre a liberdade de expressão dos membros do Ministério Público³. Na ocasião, foi exposto em nosso site que “em sua manifestação, o Transforma MP busca desfazer, sempre com base na Carta de 88, qualquer confusão quanto à possibilidade de relacionar atividade político-partidária à atuação dos membros como agentes políticos. Nesse sentido, o Coletivo destaca que o diálogo público deve ser aprofundado, para além das salas de audiência, com o intuito de influenciar nas tomadas de decisão que irão transformar a sociedade e renovar o pensamento e as práticas institucionais.
O Coletivo por um Ministério Público Transformador acredita, dessa forma, que os membros do MP devem contribuir sempre para a formação de uma visão crítica da sociedade, papel ainda mais urgente e imprescindível em momentos de crise institucional, como o que o Brasil vive desde os debates que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff até o momento atual, quando um novo governo busca impor ‘agendas políticas’ não submetidas ao diálogo com a população.
Por isso, de acordo com o documento direcionado à Corregedoria do CNMP, o Coletivo entende que restringir a atuação dos membros do MP como agentes políticos, alargando a noção do que seria atividade político partidária, não só fere os direitos estabelecidos pela constituição como impede o Ministério Público de realizar os seus objetivos estratégicos (art. 3o, Constituição) e a sua missão institucional (art. 127, caput, Constituição)”[4].
Assim, tal como exposto acima e na manifestação sobre liberdade de expressão cujo texto integral está disponível ao leitor através do acesso ao link citado, os membros do Ministério Público brasileiro precisam enxergar que para além do receio de ser rotulado como “petralha”, cada um de nós está atrelado umbilicalmente à consecução dos objetivos fundamentais da República expressos como mandamentos pela Constituição Federal de 1988 e, na defesa da construção deste Estado brasileiro posto pelo texto constitucional, temos o dever de expor e refletir sobre a ocupação do cargo de Presidente da República pelo vice Michel Temer, pois este é o marco histórico e político que deu início aos retrocessos sociais no Brasil e, em consonância com o princípio constitucional da vedação ao retrocesso, os membros do Ministério Público possuem o dever funcional e constitucional de oposição a tais retrocessos, sem preocupação com rótulos ou adjetivos, sejam eles quais forem.
Daniela Campos de Abreu Serra, Promotora de Justiça (MPMG), Mestre em Serviço Social pela UNESP e membro do Coletivo por um Ministério Público Transformador.
¹ Disponível em http://www.ajd.org.br/noticias_ver.php?idConteudo=876
² Portaria CNMP-CN nº 0106, de 09 de abril de 2018, disponível em https://diarioeletronico.cnmp.mp.br/apex/EDIARIO.view_caderno?p_id=5887
³ Disponível em https://drive.google.com/file/d/0B1HWNGXMs1c-azg4NkVvdWZpX28/view
4 Disponível em https://transformamp.com/coletivo-liberdade-expressao/