Por Thiago Rodrigues Cardin no GGN
Para além das eleições de 2020, importante que novos avanços legislativos ocorram, sempre buscando eliminar a atuação fraudulenta de dirigentes partidários cuja notória intenção é continuar alijando as mulheres da vida pública.
Como todas as conquistas já efetivadas pelas mulheres em nosso ordenamento jurídico, o direito de votarem e serem votadas foi obtido após incansável luta de milhares de brasileiras.
Nas primeiras décadas do século XX, quando ainda vigorava o Código Civil de 1916 (que sequer concedia à mulher a capacidade plena), ganhou corpo no Brasil o movimento sufragista, liderado por mulheres como Bertha Lutz, fundadora da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF) e defensora de bandeiras políticas que englobavam o direito feminino ao trabalho, o direito à licença maternidade e a equiparação de salários entre homens e mulheres.
Em decorrência das batalhas travadas pelo movimento sufragista, em 24 de fevereiro de 1932 o Código Eleitoral passou a assegurar o voto feminino em todo o país – direito inicialmente concedido apenas às mulheres casadas, com autorização dos maridos, e às viúvas com renda própria. Em homenagem à luta sufragista, mais de oito décadas depois a Lei n.º 13.086, promulgada em 2015 por Dilma Rousseff (primeira mulher eleita Presidenta da República), instituiria o dia 24 de fevereiro como o “Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil”.
Todavia, se é inegável que ocorreram notáveis avanços desde a eleição da primeira deputada federal (a médica Carlota Pereira Queiróz, que ocupou o cargo de 1934 até o fechamento do Congresso por Getúlio Vargas em 1937), o fato é que, nas décadas seguintes, continuamos nos deparando com a baixíssima representatividade política feminina.
Objetivando incrementar a efetiva participação das mulheres na vida pública, na década de 90 surgiram leis de ação afirmativa em eleições proporcionais, sendo a primeira delas a Lei n.º 9.100/1995, proposta pela então deputada federal Marta Suplicy, dispondo que no mínimo 20% da lista de candidatos de cada partido ou coligação nas eleições municipais deveria ser preenchida por candidatas mulheres.
Dois anos depois, a Lei n.º 9.504/1997, conhecida como Lei das Eleições, tornou a ação afirmativa regra para todas as eleições proporcionais (Câmara dos Deputados, Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais), aumentando para 30% o número mínimo de candidaturas de cada sexo.
Nesse momento, os partidos políticos, historicamente dominados por homens brancos, desenvolvem o primeiro meio de fraudar a intenção do legislador: valendo-se da redação originária do artigo 10, §3º, da Lei n.º 9.504/1997, que indicava que o percentual de vagas a serem reservadas para mulheres deveria ser calculado sobre o total de candidaturas que o partido ou coligação poderia lançar, as agremiações simplesmente passaram a registrar um número de candidaturas inferior ao total permitido. Assim, por exemplo, se o partido ou coligação poderia registrar até 20 candiduras (sendo pelo menos 6 mulheres – 30%), na prática acabava lançando apenas 14 candidatos – não por acaso, todos homens.
O equívoco legislativo foi sanado somente em 2009, quando a Lei n.º 12.034 deu nova redação ao artigo 10, §3º, da Lei das Eleições, o qual passou a dispor que, dentre as candidaturas que poderá registrar, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
O comando normativo “preencherá” conferiu maior efetividade para a regra em comento, determinando não apenas a reserva de vagas, mas o efetivo preenchimento do percentual das candidaturas apresentadas pelos partidos. Nesse sentido, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou, em mais de uma oportunidade, que o cálculo dos percentuais de candidatos para cada sexo terá como base o número efetivo de candidaturas requeridas pelo partido ou coligação.
Todavia, não obstante o resultado imediato tenha sido um aumento expressivo do número de candidaturas femininas, não tardou para que os dirigentes das agremiações políticas encontrassem outro meio de fraudar a legislação, sempre buscando alijar as mulheres da vida política: as candidaturas femininas fictícias.
Nesse tipo de fraude/abuso do poder político, os partidos passaram a apresentar o nome de mulheres que não tinham qualquer intenção ou vontade real de concorrer ao pleito (em alguns casos, registrando a candidatura de mulheres inclusive sem o seu conhecimento), apenas para se atingir a cota de gênero prevista na legislação eleitoral – as chamadas “candidaturas laranjas”.
Após alguns anos de inaceitável tolerância à prática, o Tribunal Superior Eleitoral passou a admitir que as candidaturas fictícias fossem impugnadas mediante Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) e, mais recentemente, também via Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE).
E, para alento dos que buscam concretizar a igualdade material entre homens e mulheres preconizada pelo artigo 5º da Constituição da República, a Corte Eleitoral, julgando casos ocorridos nas eleições municipais de 2016, passou a condenar partidos políticos pela fraude eleitoral relacionada à cota de gênero, cassando os diplomas de todos os vereadores eleitos pelo partido/coligação e declarando a inelegibilidade dos responsáveis diretos pela fraude.
No Estado de São Paulo, o primeiro caso de cassação de diplomas em virtude de candidaturas femininas fictícias confirmado pelo Tribunal Superior Eleitoral ocorreu em fevereiro de 2020, envolvendo o município de Cafelândia, não por acaso uma das 30 cidades paulistas onde nenhuma Vereadora é eleita desde 2008[ii].
No caso do pequeno município paulista, das 6 candidaturas femininas registradas pela coligação punida pelo TSE, nada menos que 5 se apresentaram fraudulentas: as cinco candidatas “laranjas” somadas conquistaram um único voto (média de 0,2 votos por candidata, contra uma média de 175,5 votos recebidos por cada homem da coligação), não receberam qualquer doação em espécie ou estimável em dinheiro (por exemplo, “santinhos”) e não realizaram qualquer ato de campanha, sendo que quatro das candidatas fictícias eram parentes entre si.
Estabilizada a importante posição do TSE, e em vias de se iniciar efetivamente o processo eleitoral das Eleições de 2020 (as convenções partidárias se encerram no próximo dia 16 de setembro), compete agora a todos os integrantes do sistema de justiça eleitoral, em especial aos órgãos de controle, rigor na fiscalização do cumprimento efetivo da cota de gênero, sob pena de tornar letra morta a regra que almeja a igualdade material entre homens e mulheres.
Para tanto, além de se verificar o número de votos que cada candidato(a) obterá no pleito, mostra-se de fundamental importância investigar, durante todo o processo eleitoral, se os partidos políticos efetivamente estão oferecendo às suas candidatas igualdade de oportunidades em relação aos candidatos do sexo masculino – análise que engloba aspectos como arrecadação e gastos de campanha, propaganda eleitoral, materiais impressos disponibilizados pelos partidos etc.
Especificamente sobre a arrecadação e os gastos de recursos por partidos políticos e candidatos nas Eleições 2020, na esteira do que decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 5.617/2018, o artigo 17, §4º, da Resolução TSE n.º 23.607/2019 estabeleceu que as agremiações devem destinar no mínimo 30% do montante do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) para ampliar as campanhas de suas candidatas, enquanto que o artigo 19, §3º, da mesma resolução determinou a destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário às candidaturas femininas. Em caso de haver percentual mais elevado ao mínimo de candidaturas femininas, os recursos devem ser alocados, pelo menos, na mesma proporção.
Para além das eleições de 2020, importante que novos avanços legislativos ocorram, sempre buscando eliminar a atuação fraudulenta de dirigentes partidários cuja notória intenção é continuar alijando as mulheres da vida pública. Nesse ponto, humildemente sugerimos que a reserva de 30% se dê não em relação às candidaturas registradas, mas sim às cadeiras colocadas em disputa no pleito – em uma Câmara Municipal composta por 10 vereadores, por exemplo, ao menos 3 cadeiras seriam reservadas ao gênero menos votado (a título de comparação, nas eleições de 2016 apenas 13,5% dos vereadores eleitos foram mulheres[iii], embora o eleitorado feminino já correspondesse na época a 53% do total).
No mais, dar às mulheres verdadeiro direito à voz no processo eleitoral nada mais é do que cumprir a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, promulgada pelo Decreto n.º 4.377/2002, que determina aos Estados Partes que tomem todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país, garantindo, em igualdade de condições com os homens, o direito a ser elegível para todos os órgãos cujos membros sejam objeto de eleições públicas (artigo 7º, itens “a” e “b”).
Por fim, lamenta-se a decisão do Superior Tribunal Eleitoral que, no último dia 25 de agosto, em resposta a consulta apresentada pela deputada Benedita da Silva e pelo instituto Educafro, descartou a imposição de reserva de vagas nos partidos políticos para candidatos negros, nos mesmos moldes do que ocorre com a cota de gênero[iv]. Embora a reserva mínima de verbas e de tempo de propaganda a candidatos negros tenha sido um avanço, a medida ainda se mostra extremamente tímida – lembrando sempre que, enquanto não se efetivar a igualdade racial consagrada na Constituição Cidadã, continuaremos vivendo em uma pseudodemocracia, que se revela ainda mais frágil em tempos autoritários.
Thiago Rodrigues Cardin – Promotor de Justiça do MPSP e membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador – Coletivo Transforma MP
“Tribunal confirma cassação de vereadores em Cafelândia (SP)”, disponível em http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Fevereiro/tribunal-confirma-cassacao-de-vereadores-em-cafelandia-sp
[ii] Disponível em http://www.presp.mpf.mp.br/index.php/en/8-noticias/1915-aproximadamente-25-dos-municipios-paulistas-nao-elegeram-vereadoras-esse-ano
[iii] “Proporção de vereadoras eleitas se mantém após quatro anos“, disponível em http://g1.globo.com/politica/eleicoes/2016/blog/eleicao-2016-em-numeros/post/proporcao-de-vereadoras-eleitas-se-mantem-apos-quatro-anos.html
[iv] “TSE rejeita cota, mas garante verba e propaganda a candidatos negros”, disponível em https://www.conjur.com.br/2020-ago-25/tse-rejeita-cota-garante-verba-propaganda-candidatos-negros