Por André Zanardo, no Justificando.
Qual a mensagem que o judiciário imprime quando até o juiz corregedor é perseguido por realizar diligentemente o seu trabalho de averiguar as condições prisionais, em respeito aos Direitos Humanos?
Diante desta reflexão, as instituições devem escolher definitivamente de qual lado elas devem ficar: dos problemas, ou das soluções.
Estado de coisas inconstitucional, é assim que o Supremo Tribunal Federal em 2015 (ADPF nº 347/DF) concluiu que o sistema prisional brasileiro se encontra. Estado de Coisas Inconstitucional não é algo que a Corte mais alta do país declara todos os dias. Precisa ser reiterado, múltiplo, em estágio avançado e estrutural. O sistema estatal que custodia aproximadamente 800 mil pessoas, emprega diretamente outras 200 mil, gasta cerca de 9 bilhões anualmente em custeio e executa a pena mais severa está na ilegalidade. É grave. Muito grave.
Essa declaração tampouco é simples de ser feita porque traz para o Poder Judiciário uma implicação de responsabilidade, afinal quem tem a chave da porta de entrada e saída da cadeia é o Sistema de Justiça. Se as prisões brasileiras vivem em desacordo com a Constituição, são por ações ou omissões também do Judiciário, como no caso do uso excessivo da prisão provisória, do descumprimento dos prazos processuais da fase do conhecimento, da demora indevida para deferimento de direitos na execução penal como a progressão de regime, da preferência pelo clamor midiático de vingança em detrimento da previsão legal na tomada de decisão ou, ainda, do descumprimento de decisões de cortes superiores como o Habeas Corpus Coletivo que determinou que mulheres encarceradas grávidas ou mães de crianças até 12 anos, em situação provisória, fossem encaminhadas para prisão domiciliar.
Poderia continuar a lista de irregularidades, mas gostaria de direcionar a discussão para outro campo de atuação do Judiciário que nem sempre é tão evidente nessa problemática, o dever de fiscalização e correição. Se o processo penal é papel sem rosto e vida sem alma, a cadeia é o contrário, tem cheiro, sentimentos e histórias. No entanto, não adianta ver seriados para saber disso, é necessário ir até elas. Não só até a sala da direção ou pelas passarelas aéreas, como quando vamos ao zoológico conhecer leões, é preciso caminhar pelos corredores, visitar todos os lugares e conversar com as pessoas presas, os familiares e os funcionários. E mais, não qualquer conversa, deve ser em condições de reserva, para evitar represálias, com real interesse e sem prejulgamentos. E, após tudo isso, corroborando com outras informações e documentos, tomar providências de correição, acionar órgãos que tenham responsabilidade direta na resolução de problemas e decidir por medidas que sejam da sua competência.
Desse constante exame entre ´o que deveria ser´ e ´o que é´, promotores, defensores e juízes da execução penal – com resguardo das suas instituições – poderiam diminuir a avalanche de ilegalidades estabelecidas nas prisões e trazer algum nível de esperança e crença no Estado para aqueles que são sujeitados à medida de privação de liberdade. Assim esperaríamos que acontecesse em todas as comarcas, mas também não é a realidade. Pior que isso, enquanto o STF vai numa direção, no caso a seguir, parece que promotor e desembargador vão em outra.
Perseguição ao juiz João Marcos Buch
Dia 15 de outubro o Tribunal de Justiça de Santa Catarina afastou o Juiz João Marcos Buch da responsabilidade do processo de uma das pessoas em execução de pena em Joinville. O magistrado é corregedor do Complexo Penitenciário de Joinville, experiente, realiza inspeções regulares com metodologia de participação ativa de servidores e dos presos, atuou em ações do Conselho Nacional de Justiça, é formador da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira (ENFAN) e reconhecido por projetos inovadores com grande impacto para a reinserção social de apenados. Em 13 de junho, ele foi ao estabelecimento semiaberto em função de denúncias anônimas de problemas estruturais. Visitou as alas, fotografou as condições e, como não pode entrar nas celas naquela oportunidade, bloqueou o celular para ligações e determinou aleatoriamente entre os mais de 50 presos, que um deles, logo auxiliado por outro, fizesse as imagens aos olhos de servidores e do próprio juiz. As fotos instruíram procedimento que requereu a visita do Corpo de Bombeiro e medidas restauração do quadro elétrico.
Pois bem, o inusitado foi que um agente de controle (terceirizado) que acompanhava a inspeção, deu entrada a um procedimento administrativo disciplinar (PAD) contra o preso por este manusear o celular que, sendo crime, poderia resultar em nova pena, suspensão de autorização para participar de atividades internas que exigirem bom comportamento, transferência para área de isolamento, entre outras penalizações. O juiz determinou a suspensão do procedimento contra os presos e solicitou que a corregedoria da administração penitenciária avaliasse a conduta do agente.
O Ministério Público de Santa Catarina surgiu na história para requerer a abertura de um procedimento investigatório contra o juiz, que por reflexo ensejou a decisão do Tribunal de Justiça de afastamento do magistrado do processo de execução do preso que fez a foto por entender que a presença dele no ato fere a imparcialidade.
Podemos fazer um jogo dos erros nesse episódio.
1º) No Estado de Coisas Inconstitucional a inspeção prisional do juiz corregedor não é só um dever, é urgência para evitar desastres, ele representa o fôlego da legalidade dentro do sistema. O problema em questão trata-se de uma estrutura comprometida, fiações expostas, uma explosão numa caixa de luz e princípio de incêndio, situação que poderia evoluir para novo incidente com risco de morte. O que parece ser mais importante nessa situação?
2º) Um celular bloqueado não exerce a função de telefonia, logo pode ser considerado um aparelho eletrônico com função fotográfica. Ele foi usado sob vigilância de agentes e do juiz por breve momento. Parece razoável a acusação contra o preso nessas condições?
3º) A pessoa presa recebeu uma determinação de fazer a fotografia de uma autoridade, poderia ela não executar? Se não o fizesse, seria considerado desacato? Sério mesmo que é razoável essa acusação de uso de celular contra o preso?
4º) É dever o Ministério Público ser o “fiscal da lei”, inclusive da Lei de Execução Penal, o que contempla a integridade física das pessoas presas, assistência material e outros aspectos que foram considerados em desacordo na inspeção realizada pelo magistrado. Tem ele cumprido sua função? Foi diligente no caso do quadro elétrico danificado?
Esses quatro pontos ilustram como o Sistema de Justiça tem invertido preocupações e porque chegamos a ter seis vezes mais chances de morrer dentro da prisão no Brasil, sobre a custódia do Estado, do que fora dela. Sem dúvida, nesse cenário, as instituições jurídicas fazem parte do problema e conformam a realidade para manutenção da tragédia. Para quem opera o Direito fica o recado que um juiz ao exercer a sua função, mesmo em situações adversas, para se contrapor ao Estado de Coisas Inconstitucional, não terá sucesso, melhor se acostumar, aceitar ou ignorar, pois o sistema pode ser voltar contra ele.
Outra contradição é que diante da miséria que vivem as pessoas presas, recursos públicos se esvaem em suntuosas estruturas governamentais com afazeres sem efetividade. Os custos de PADs contra o preso e o agente na administração penitenciária e de um procedimento investigatório contra o juiz no Judiciário, poderiam estar sendo melhor investidos se, ao receber os expedientes, no juízo de admissibilidade, fossem refutados por falta de razoabilidade e se buscasse outra estratégia de resolver os conflitos, passando por enfrentar de fato os problemas prisionais.
Neste e em muitos outros casos, estamos em tempo de atentar para o que é realmente importante e adentrar no campo da solução. Que o Tribunal de Justiça e a Secretaria de Administração Penitenciária de Santa Catarina façam jus às suas missões institucionais e democráticas, focando seus esforços na causa da superpopulação prisional, na insuficiência de serviços intramuros e de serviços de apoio às pessoas egressas, assim como fortalecendo as ações de controle e fiscalização. Essas são medidas que verdadeiramente contribuem para aumentar a sensação de justiça e segurança da sociedade.
André Zanardo é diretor de redação do Justificando.
Foto: Felipe Carneiro