Por Rômulo Moreira* no GGN
Quando escrevi esse texto o mundo ainda não sabia (como ainda não sabe) quando vai acabar a pandemia e, no Brasil, segundo a comunidade científica, nem sequer se atingira o pico da doença
“E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio, não veio a utopia, e tudo acabou, e tudo fugiu, e tudo mofou. E agora, José?”
(Carlos Drummond de Andrade)
Quando escrevi esse texto o mundo ainda não sabia (como ainda não sabe) quando vai acabar a pandemia e, no Brasil, segundo a comunidade científica, nem sequer se atingira o pico da doença.[1] O nosso país registrava quase 60.000 casos e ultrapassava a barreira de 4.000 mortes pelo coronavírus. Havia sido 346 novos óbitos apenas em 24h. Já eram cerca de três milhões de casos no mundo, e os Estados Unidos lideravam com mais de 53.000 óbitos.[2]
Vejo – não com entusiasmo, mas com um triste olhar de confirmação – como agora os homens (neoliberais) do mercado agitam-se e imploram ajuda ao Estado, esquecendo-se de se socorrerem da “mão invisível” da qual falara Adam Smith.[3]
Dessa vez – como, aliás, deu-se em outras crises – o liberalismo econômico fracassou na sua missão de (livremente) regular o mercado e as relações socioeconômicas, dando-se como se fosse um pedido de socorro do perverso e indiferente Estado Liberal ao Estado Social, uma súplica dos moços do Mont Pélerin Society às ideias keynesianas. Deram um tempo – por assim dizer – nos velhos manuais de Hayek, Popper, Friedman e tantos outros.
Aliás, foi exatamente assim que ocorreu, como já vimos outrora, especialmente nas crises de 1929 (e o New Deal, do democrata Roosevelt); em 1947, no pós-guerra (com o Plano Marshall, do democrata Truman); na bolha imobiliária de 2008 (e o Troubled Asset Relief Program, aprovado por um Congresso controlado pelo Partido Democrata), para se referir apenas às catástrofes mais conhecidas e mais citadas na literatura contemporânea.[4]
Hoje, como se vê mais uma vez, o mercado está nu!, tal como o rei só visto pela criança de Andersen, surgida de súbito dentre os súditos enquanto o tolo do rei desfilava sem roupas.[5]
Nada obstante, o meu receio é que o mercado, ainda que saiba que a criança tem sempre razão e olhos só dela, continue exibindo-se desavergonhadamente como aquele mesmo rei da história, e mais indiferente do que nunca. Afinal, urge que continue o desfile, ainda que à custa da miséria e de milhões de vidas humanas.
(Lembrei aqui de Freud, quando perdeu Sophie, contaminada pela “peste espanhola”, mesma dor pela qual passa hoje tantos pais e tantas mães; sem superar a perda de sua quinta filha, que estava grávida, ele escreveu ao seu amigo e colega Ludwig Binswanger: “Sabemos que a dor aguda que sentimos após uma perda seguirá seu curso, mas também permanecerá inconsolável e nunca encontraremos um substituto. Não importa o que aconteça, não importa o que façamos, a dor estará sempre lá. E é assim que deve ser. É a única maneira de perpetuar um amor que não queremos abandonar.”).[6]
Não podemos esquecer os fatos históricos para, aprendendo com eles, não repetirmos os erros do passado, afinal “fazer história significa construir pontes entre o passado e o presente, observando ambas as margens e agindo nas duas.”[7]
E também recordei do livro de Camus, tão atual!, quando Dr. Rieux, o médico que protagoniza a história, e que lutava contra a peste, após mais uma exaustiva reunião com “um prefeito desorientado”, ao chegar na casa de sua velha mãe, pergunta-lhe:
– “Está com medo, mamãe?
– Na minha idade, já não se teme muita coisa”, respondeu-lhe.[8]
De toda maneira, esperemos que esta tragédia represente, como diria Canotilho (ainda que em outro contexto, obviamente), uma viragem histórica para a humanidade, e que não continuemos a ser “apenas mais um tijolo na parede”[9], tampouco aguardemos os últimos instantes para lembrarmos do nosso Rosebud, aquele velho trenó que Kane recordou momentos antes de morrer, e que lhe proporcionara, talvez, a sua única fase verdadeiramente feliz em toda a vida.[10]
Esta crise mostra-nos como “no mundo muita coisa ainda está inconclusa.” E, exatamente por isso, é preciso “velejar em sonhos, sonhos diurnos, muitas vezes do tipo totalmente sem base na realidade.” Essa capacidade própria de nós, seres humanos, homens e mulheres, é que nos faz termos – e só a nós – a extraordinária capacidade de “fabular desejos e entrar em efervescência utópica, movendo-se os sonhos.”[11]
E, afinal, a casa (para quem a tem), presos como estamos nela, não deixa de ser um exílio (como uma categoria metafísica) e, “se há algo de bom no exílio, é o fato de ensinar a humildade, lição suprema dessa virtude.”[12]
*Rômulo de Andrade Moreira – Procurador de Justiça no Ministério Público do Estado da Bahia e Professor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade Salvador – UNIFACS
[1] Este texto foi publicado originalmente no Boletim do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP), ano 3, nº. 9.
[2] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-04-25/ao-vivo-ultimas-noticias-sobre-o-coronavirus-e-a-crise-no-governo-bolsonaro-com-a-saida-de-moro.html, acessado em 26 de abril de 2020. Hoje (28), já passamos de 55.000 mortos, mais do que o número total de óbitos de brasileiros na Guerra do Paraguai, que durou quase seis anos.
[3] Veja, por exemplo, o que disse o presidente de uma grande empresa aérea: “Sem ajuda governamental a indústria não sobrevive. A depender de quanto tempo durar a crise, com demanda inexistente, as empresas chegarão em situação de insolvência absoluta. E aí vai precisar uma ajuda mais contundente. As empresas precisam ter acesso a crédito. E ele terá de vir de fundos públicos.” Disponível em https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2020/04/22/setor-aereo-nao-sobrevive-sem-ajuda-do-governo-diz-presidente-da-latam.htm?fbclid=IwAR22At3khdy–bdgXHf7au2J0Y4thhfswEeHBGp4YySUburrjNCBKg4Q9wY. Acesso em 26 de abril de 2020.
[4] Este “Programa de Alívio de Ativo Problemático” previa a liberação de 700 bilhões de dólares em ajuda para os bancos. No seu anúncio, em 24 de setembro de 2008, disse o republicano George W. Bush: “Eu acredito muito na livre iniciativa, por isso o meu instinto natural é se opor a intervenção do governo. Eu acredito que as empresas que tomam más decisões devem sair do mercado. Em circunstâncias normais, eu teria seguido esse curso. Mas estas não são circunstâncias normais. O mercado não está funcionando corretamente. Houve uma perda generalizada de confiança, e grandes setores do sistema financeiro da América estão em risco.”
[5] ANDERSEN, Hans Christian. A roupa nova do Rei. Conto de 1837.
[6] Disponível em: https://www.clarin.com/cultura/tragedia-freud-pandemia-cambio-teoria_0_GmhBP71Bq.html?utm_term=Autofeed&utm_medium=Social&utm_source=Facebook&fbclid=IwAR3ys9swhO8wQtW1dwEA1_MZwkckpHzqzu5yJANpzpO7347XOXe7WFLeW7c#Echobox=1587490682. Acesso em 26 de abril de 2020.
[7] SCHLINK, Bernhard. O Leitor. Rio de Janeiro: Record, 2009, p. 198. Nesse romance, que trata muito bem as questões da culpa e da vergonha (adaptado para o cinema por Stephen Daldry, em 2008), Michael Berg, um jovem advogado, muito interessado no direito durante a época do Terceiro Reich, chega a uma conclusão a que também cheguei, há anos: “Era uma felicidade para mim ver como os artigos do código penal foram produzidos como guardiões solenes da boa ordem, transformando-as em leis que se esforçavam por ser belas e, com sua beleza, dar provas de sua verdade. Durante muito tempo acreditei que há um progresso na história do direito, apesar de terríveis retrocessos e passos para trás, um desenvolvimento em direção à maior beleza e à verdade, à racionalidade e à humanidade. Desde que me ficou claro o fato de tal crença ser uma quimera, trabalho com uma outra imagem do percurso da história do direito. Nessa imagem, o percurso ainda se orienta para uma meta, mas a meta de que se aproxima, após diversos abalos, desorientações e fanatismos, é o seu próprio ponto de partida, de onde, assim que o alcança, precisa partir novamente.” E pergunta, então, lembrando-se de Homero: “Ulisses não retorna para ficar, e sim para partir novamente. A Odisséia é a história de um movimento ao mesmo tempo em direção a uma meta e sem meta nenhuma, bem-sucedido e em vão. Em que a história do direito é diferente disso?.” Em nada, digo eu!
[8] CAMUS, Albert. A Peste. Rio de Janeiro: Best Seller, 2018, p. 118.
[9] WATERS, Roger, “Another Brick In The Wall, Pt. 2”.
[10] ORSON, Welles, “Citizen Kane” (1941).
[11] BLOCH, Ernst. O Princípio da Esperança. Rio de Janeiro: Contraponto, 2005, p. 194.
[12] BRODSKY, Joseph. Sobre o Exílio. Belo Horizonte: Âyiné, 2016, p. 21.