
Na calada da noite do dia 16 se setembro, a Câmara dos Deputados aprovou a chamada PEC da Blindagem, que condiciona a abertura de processo criminal contra um parlamentar à autorização de sua casa legislativa. Se um deputado federal porventura assaltar alguém em cima de uma moto ou desviar bilhões em esquemas de orçamento secreto (e essa é apenas uma hipótese), só poderá ser processado criminalmente se houver autorização de seus colegas da Câmara dos Deputados.
E na calada da noite do dia seguinte (17 de setembro), a Câmara dos Deputados empilhou mais uma atrocidade: aprovou urgência para a votação de um projeto de lei de anistia para os condenados pela tentativa de golpe de estado ocorrida em 08 de janeiro de 2023.
Não sei o que as próximas noites nos reservam, mas os deputados federais desta legislatura parecem ter um apego especial pela ausência de luz, para ser bem sutil em minha crítica. Os horários das votações e os orçamentos secretos que o digam. Mas se a fotofobia é uma epidemia generalizada que se instaurou nas casas legislativas brasileiras, tratemos de lançar luz sobre alguns pontos.
Em primeiro lugar, as duas propostas são flagrantemente inconstitucionais. A PEC da blindagem atenta contra a divisão de poderes e impõe barreiras desarrazoadas que na prática garantem a impunidade de parlamentares. E para quem duvida disso, trago à luz um fato histórico. Quero lembrar aos desmemoriados que este mesmo regime de blindagem já esteve em vigor no Brasil entre 1998 e 2001, período em que a abertura de processo criminal contra parlamentares também dependia da aprovação das respectivas casas. Como era esperado, o corporativismo parlamentar impediu a tramitação de quase todos os processos criminais que o Ministério Público tentava mover contra os congressistas. Nesse noturno período, foram 253 pedidos de abertura de processo criminal embarreirados e apenas em uma oportunidade a autorização foi concedida. O placar é esse mesmo: 253 a 1. Reparem que o número é bastante expressivo. 254 processos criminais contra parlamentares em 4 anos. A média é de aproximadamente 60 casos de impunidade por ano. E ainda querem fazer crer que a lei penal é para todos.
A solitária exceção foi a autorização concedida no caso do deputado federal Jabes Rabelo (PTB-RO), acusado de receptação por comprar um veículo roubado. Nos outros 253 casos, a autorização foi rejeitada pela complacência dos colegas de legislatura. Destaco apenas alguns exemplos, como o caso do ex-deputado federal Hildebrando Pascoal, acusado de liderar um grupo de extermínio no Acre e que teve o pedido de abertura de processo criminal engavetado. Outro caso famoso foi o do então deputado federal Nobel Moura, acusado de tentativa de homicídio contra um caminhoneiro. Para fechar a lista exemplificativa, no ano 2000, o STF pediu autorização para processar criminalmente o senador Luiz Estevão por desvio de verba pública na construção do prédio do TRT em São Paulo. Em todos esses casos, o regime de blindagem garantiu a impunidade dos parlamentares.
A anistia por crimes que atentam contra a democracia também é flagrantemente inconstitucional. A fundamentação é um tanto óbvia: o Estado de direito e a democracia são princípios fundamentais de organização do Estado brasileiro e qualquer atentado contra estes pilares não pode passar em branco. O laboratório da história brasileira exige que não devemos repetir a receita da impunidade dos bárbaros crimes cometidos durante a ditadura empresarial-militar de 1964-85. Não repitamos o erro. A anistia para atentados contra a democracia é uma escatologia jurídica e o STF tem precedentes neste sentido.
As duas propostas provavelmente não serão aprovadas. Não porque são inconstitucionais, isso não é problema nenhum para a maioria dos parlamentares. Elas não devem ser aprovadas porque a repercussão na mídia e nas redes sociais foi muito negativa. A repercussão é um holofote que ilumina tudo aquilo que os deputados querem que permaneça nas sombras. Atrai a atenção da mídia, do Ministério Público e do Judiciário e cria um sentimento de desgaste que prejudica a renovação da legislatura. E esse é o ponto que gostaria de me aprofundar no que toca às chamadas “crises da democracia”.
Que as instituições da democracia burguesa não representam de fato os interesses do povo, isso é um tanto óbvio para qualquer um que dedique vinte minutos para ler as manchetes dos jornais. O ponto não-óbvio é a inter-relação entre o modo de produção capitalista (a base econômica da sociedade) e as instituições político-estatais que lhe suportam. O capitalismo, tal como o Rei Midas, transforma em mercadoria tudo o que toca. Com isso, a superestrutura que lhe suporta (dentre elas, as instituições do Estado) também passa a ser regida pela lógica da concorrência mercantil. É o princípio da concorrência, não o do bem comum ou do interesse público, que rege o sistema político nos países de democracia formal-burguesa, pois é este o princípio que regula a Economia e estrutura a sociedade. Como resultado, formou-se um “mercado eleitoral” que disputa a atenção dos eleitores em troca de voto. Este mercado desvirtua os canais reais de representação e hipostasia a institucionalidade política do resto da população.
Essa é, inclusive, uma questão histórica. A ontologia genética das democracias modernas demonstra que elas não foram implementadas para instituir governos populares, longe disso. Na verdade, o objetivo era delimitar o poder político à classe ascendente, à classe de proprietários. Sobre os EUA, basta ler os Federalistas para identificar que a representação política foi idealizada porque os “pais fundadores” acreditavam que os interesses da nação estariam mais bem garantidos se ficassem apenas nas mãos dos proprietários escravocratas. O argumento era que a virtude política se identificava com a propriedade. A representação não foi idealizada somente em função da complexidade das sociedades modernas, mas porque se trata de um mecanismo eficaz de manutenção do poder econômico das classes dominantes. Não à toa a democracia moderna começa sua jornada histórica com o voto censitário e assim permanece durante muito tempo até que o sufrágio universal, depois de muita luta, fosse conquistado.
Mas o sufrágio universal não garantiu que a política passasse a ser regida pelo bem comum ou pelo interesse público. A democracia burguesa não ultrapassa seu aspecto formal porque a igualdade formal-jurídica que lhe serve de fundamento pouco interfere nas nítidas desigualdades socioeconômicas criadas e mantidas pela estrutura econômica capitalista. Se democracia, dentre outros elementos, é determinada como um princípio de socialização do poder político em direção ao bem comum, então temos aqui uma contradição insuperável: se o capitalismo, enquanto estrutura econômico-produtiva, funciona como uma máquina de desigualdades sociais regida por leis gerais de concentração de riqueza e se a concentração do poder econômico engendra a concentração do poder político, então é claro que aquela ideia de socialização do poder típica de um regime materialmente democrático não passará de um sonho. Enquanto o princípio democrático em sentido material demanda socialização do poder político e busca pelo bem comum, a estrutura econômica capitalista direciona seus circuitos no sentido oposto, no sentido da centralização.
A lei geral de concentração capitalista é a doença que contamina todo o sistema político, pois a burguesia continua com poder econômico para garantir que seus interesses dominem o modo geral de pensar. Ela pode financiar pensadores e universidades, pagar lobistas e advogados e contratar espaços publicitários dizendo que o “Agro é pop”. É por isso que surgem as famosas “bancadas”, como as do boi, da bala e da bíblia (a explosão de igrejas neopentecostais também é um exemplo de como as instâncias sociais são capturadas pela forma-mercadoria), com advogados e lobistas que dia sim e dia também ocupam os corredores do Congresso e dos tribunais para zelar pelos interesses dos grupos econômicos que lhes contratam.
O próximo desdobramento dessa doença na arena política – e é este o ponto que interessa agora – é a criação de castas parlamentares relativamente hipostasiadas dos interesses gerais do povo. Digo relativamente por que os círculos da burguesia, é claro, continuam com livre acesso às autoridades políticas brasileiras, faculdade que, é claro, não é estendida à massa da população. Estas castas passam então a trabalhar também para o próprio interesse, como se as instituições fossem finalidades autorreferenciadas, fins em si mesmos e não instâncias deliberativas a serviço do interesse público. O terreno oculto da produção legislativa, as negociatas, a troca de favores e o “toma lá, dá cá” de projetos, tudo isso cria um campo no qual a classe política escapa das relações reais de representação e passa a atuar em causa própria. E para esse propósito, a ausência de luz é decisiva para a continuidade dos circuitos da corrupção parlamentar. E por corrupção parlamentar quero me referir à prática de atuação legislativa em causa própria como antítese ao princípio democrático de socialização do poder político em direção ao bem comum e ao interesse público.
Não é à toa que existe grande déficit no sentimento representativo da população. Há verdade neste sentimento de revolta; não há representação real entre os interesses dos eleitores e o dos políticos eleitos. E este é um fenômeno mundial do que tem se convencionado chamar de “crise das democracias”. Embora o termo seja pouco elucidativo, fato é que o modelo de democracia formal-burguesa, com seus movimentos de conquistas e retrocessos, não se provou capaz de garantir uma identidade aproximada entre representantes e representados. E a grande questão é que esse próprio modelo formal de democracia, erguido sob uma estrutura capitalista (e em especial, nos países de capitalismo dependente), engendra as contradições que colocam em risco sua própria existência.
Uma das explicações para isso reside justamente na formação de um “mercado político-eleitoral” no qual os parlamentares e candidatos disputam a atenção dos eleitores com chavões genéricos e promessas vazia. O Rei Midas, que transformava tudo o que tocava em ouro, sofria na verdade de uma maldição; pois não conseguia abraçar sua filha ou se alimentar sem que o objeto do seu toque se transformasse em ouro e a ganância devorasse sua existência. Da mesma forma, o capitalismo universaliza a forma-mercadoria e transforma tudo organiza em uma instância mercadológica regida pelo espírito da concorrência. A política eleitoral foi transformada em um mercado. A maldição que lhe segue, neste ponto específico, é o difundido sentimento da antipolítica que deságua em formações fascistóides que direcionam sua revolta de forma abstrata e genérica “contra tudo isso que está aí”. Incapazes de lançar luz adequadamente sobre o problema, personificam seu ódio contra minorias, inventam falsos problemas, denominam tudo de “comunismo” e lutam contra moinhos de vento. E esse é o grande perigo, pois embora insuficiente, a democracia formal é indispensável. Precisa ser aprofundada, não descartada. O ponto a ser destacado é que a democracia liberal-burguesa, entremeada por espaços de desvirtuamento do interesse público e incapaz de garantir espaços reais de representação popular, engendra as contradições que colocam sua própria existência em risco. E aqui me refiro especialmente aos movimentos neofascistas que tentaram deslegitimar o resultado das eleições de 2022 e dar um golpe de estado no dia 08 de janeiro de 2023. São esses mesmos movimentos que esfarelam a democracia em cima de uma moto.
Ao lado do confuso movimento da antipolítica, há outro sentimento igualmente perigoso: o da despolitização, o desinteresse pela política. Lima Barreto disse certa vez que “o Brasil não tem povo, tem público. Povo luta por seus direitos, público só assiste de camarote”. Eu trocaria apenas o termo “camarote” (o povo brasileiro em geral não tem condições financeiras para isso), mas fato é que a desmobilização política do povo guarda conexão com a desilusão verdadeira e real com os caminhos da política institucional.
São movimentos corporativistas como estes, de flagrante tentativa de garantia de impunidade que alimentam os sentimentos de antipolítica que ameaçam a frágil democracia formal que nos resta. O assalto ao interesse público é a chave do sentimento de aversão à política que domina a população brasileira.
Brinquei com o título, mas a verdade é que dois homens em uma moto, dois parlamentares em uma moto… o sentimento geral é de que “ninguém presta na política”, de que “lá só tem ladrão”. Tenho certeza de que o leitor e a leitora já ouviram essa frase. É claro que temos parlamentares sérios, mas o senso comum de déficit representativo é real, essas pessoas não estão de todo erradas. São movimentos de blindagem como esse que alimentam as rodadas de descrédito na política institucional. A degeneração ética da política parlamentar coloca as condições de sua própria destruição ao mesmo tempo em que cria a necessidade de maiores e mais amplas blindagens. E com isso se cria um circuito perigoso, errático e incerto que sequer tangencia a raiz do problema: a própria forma liberal-burguesa da democracia formal e o sistema capitalista como um todo.
Este artigo não representa necessariamente a opinião do Coletivo Transforma MP.
Gustavo Livio no GGN é doutorando pela PUC-Rio, mestre pela UFRJ com pesquisa em Direito e Economia, promotor de Justiça do MPRJ, integrante do coletivo Transforma MP. Ex-Defensor Público do Estado da Bahia.