Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN
Há um ano, naqueles tempos em que só usávamos máscaras invisíveis, vesti minha máscara de Promotora de Justiça para conhecer o trabalho do Consultório na Rua do SUS.
Descobri que, dentre muitas competências, os profissionais do SUS também sabiam escutar olhos.
Toda terça feira de manhã, no centro de Campinas/SP, médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, um professor de capoeira violeiro e um DJ de baile funk chegavam em uma van e montavam uma barraca na praça para escutar olhos.
Iraneide trouxe olhos de festa para ouvirem.
Contornados por uma sombra verde limão, seus olhos refletiam o florido da roupa e o rosa cintilante do batom.
Foi difícil acreditar no seu prontuário: “mulher do saco”.
Vagando como assombração nas noites frias das ruas, a mulher do saco causava asco. Agredia, xingava e aterrorizava quem passasse por ela e seu saco vazio. Mal cheirosa, suja e embriagada, ela ostentava uma ferida aberta no ventre cheia de bichos. “Conhece a expressão tripas pra fora?”, me perguntou a médica. “Era isso. Tripas e bichos…”.
Foram dias até que a equipe do Consultório na Rua, finalmente, traduziu os olhos de Iraneide. Nesse dia, a equipe parou de ser agredida e conseguiu se aproximar. Os olhos falavam que ela não era vazia como o saco que carregava e que os bichos, que se alimentavam de suas feridas, eram vida. As únicas vidas amigas que precisavam dela. Quando a equipe desistiu de matar seus bichos, Iraneide reviveu. A pomada que usavam na sua barriga, agora, era para “alimentar” os bichos e a cirurgia iria “guardá-los”. Iraneide cedeu. Sabia que nem os vermes mereciam a solidão de uma noite fria na rua. Com os bichos costurados dentro dela, protegidos, aquecidos e cuidados, pôde abandonar o saco vazio. Tomou banho. Ganhou escova de dente e reencontrou o quarto quentinho que tinha abandonado. Um dia, ganhou estojo de maquiagem da enfermeira.
Foi aí que fosforesceu. Com olhos de festa.
Os olhos da Joana eram de névoa. Há duas semanas, perto da data em que fez 18 anos, saiu o resultado do seu exame de sangue: HIV positivo. “E por que ela veio aqui hoje?” Perguntei, surda aos seus olhos. O prontuário que estava sendo preenchido me respondeu: “Tristeza. Foi recebida com abraços pela equipe”.
Não há necessidade de voz para falar e ser ouvido pelo Consultório na Rua.
Nome, documento, nexo, voz, endereço…. nada disso é exigido.
Piu Piu, com olhos de vidro quebrado, apontou a bolha de pus da perna. O moço sem nome, com olhos de urgência, arrastou outro, com olhos fechados, e o sangue da testa aberta gritou por eles. A mulher maltrapilha, de olhos de espera, fez gestos repetitivos e ganhou água mineral gelada e soro.
Engana-se quem pensa que olhos são silenciosos.
Tiago, da equipe de saúde, é violeiro, professor de capoeira e leitor de notas musicais em olhos de inchaço. “Já carreguei muita gente pro samba da rodoviária. Lá precisa ensaiar uma hora, pelo menos, sem álcool e drogas, e já gravamos dois CDs”, me disse ele, com olhos de sol.
Com água, violão e medicamentos, o Consultório na Rua do SUS diminuiu brutalmente as doenças sexualmente transmissíveis da população em situação de rua, a gestação indesejada de meninas e mulheres dependentes químicas e resgatou a dignidade de muitas vidas que buscam soro, exames, música, contraceptivos, curativos, água gelada e abraços.
Um ano depois, em plena pandemia COVID 19, a van do Consultório na Rua segue escutando olhos que máscara alguma, visível ou não, pode emudecer.
Com todas as precauções possíveis e em um contexto político que, além de sufocar drasticamente os investimentos no SUS e SUAS, menospreza a tragédia das cerca de 80 mil vidas perdidas neste país, a equipe se desdobra, com risco pessoal, para poupar os mais vulneráveis da desgraça de um vírus que lhes tiraria um dos únicos bens que possuem: o ar.
Depois de conhecer, na rua, olhos de festa, névoa, vidro, urgência, espera e sol, fica difícil escolher os olhos que suportam ouvir a conversa entre Bia Doria, primeira-dama do Estado de SP e Presidente do Conselho do Fundo Social e a socialite Val Marchiori, divulgada em rede social pela própria socialite no início desse mês de julho.
Entre risos e “hellos” da amiga, a primeira dama pediu que as pessoas parassem de dar alimentos para quem está na rua com fome e explicou que a população em situação de rua gosta de ficar na rua. “Querem comida, roupa, uma ajuda… mas não querem cumprir regras”, disse Bia, com seus olhos de vazio. “Estou passada”, respondeu a amiga de olhos de cimento, e completou: “eu mesma tenho obrigações… pago contas”.
O discurso maniqueísta e simplório, que culpabiliza o miserável por sua desgraça e o afasta das supostas virtudes de uma elite que estaria onde está por mérito e não por privilégios, não nubla apenas os olhos das duas senhoras brasileiras.
É o sentido comum de ódio que nos estrutura socialmente. É o grito do Desembargador, em Santos, ao Guarda Municipal, quando recebe a orientação para usar máscara: “Seu analfabeto”, diz ele, com seus olhos de esgoto.
Eis nosso saco vazio. Nossa bolha de pus. As nossas tripas pra fora. Os bichos que alimentamos quando fugimos da nossa história escravocrata e damos poder a quem só conhece a linguagem da violência.
Por isso precisamos de SUS. O SUS é mesmo tão universal que quando fosforesce os olhos de Iraneide e os faz festa, mata os vermes que habitam o ventre de todos nós.
O SUS é mais que cuidado de saúde física e mental. Ele é a narrativa de uma política de acolhida e solidariedade. É resistência. Afirmação de vida e inclusão. Ele é a rua da partilha onde se oferece marmita, água, música, remédio e abraço.
O SUS são olhos que escutam.
Cristiane Corrêa de Souza Hillal: Integra o Ministério Público do Estado de São Paulo (Promotora de Justiça de Campinas) e o Coletivo Transforma Ministério Público.