Minha mãe partiu de mãos dadas comigo, ao som das músicas preferidas de meu pai, no dia de seu aniversário.
“Não tenho medo da morte
Mas medo de morrer, sim”
Gilberto Gil

Por Cristiane Corrêa de Souza Hillal no GGN.
As águas de março fecharam o verão e os seus lindos olhos azuis.
Minha mãe partiu de mãos dadas comigo, ao som das músicas preferidas de meu pai, no dia de seu aniversário. O médico que me confirmou que a vida, até da minha mãe, acabava, me disse que foi como se um poço lotado de borboletas tivesse se aberto para levar minha mãe ao desconhecido.
Imaginar, naquele momento, que morrer poderia ser uma coisa tão delicada e bonita, como o arrebatamento por borboletas livres e coloridas me fez esquecer, por alguns segundos, a sensação de que estava sozinha, ali, naquele hospital e, aparentemente, não só ali.
Perder a mãe é perder a casa. É perder o corpo que já foi seu.
Entendi rápido que, não importa a idade, a mãe parte levando coisa demais. Leva o chão, o teto e as paredes, leva o pai que tinha morrido (mas ela não deixou morrer), a vila de paralelepípedos, a memória que nunca foi sua do que você foi, de quem você podia ter sido e não foi, e de quem você foi para além do que podia ser.
Mas esse não é o espaço de falar de mais uma filha que perde uma mãe, experiência tão desestruturante e devastadora quanto natural da vida.
É para falar do direito constitucional de morrer, já que morrer faz parte da vida. Para falar do direito de morrer vivendo, como cantou nosso Orixá Gilberto Gil, que não tem medo da morte porque “a morte já é depois, mas de morrer, sim”.
Graças ao inesquecível geriatra Dr João Paulo Nogueira Ribeiro e aos privilégios que possuo, minha mãe pôde ter assistência humanizada e de qualidade em sua casa, com a atenção e disponibilidade de escuta que seria esperada de todo e qualquer profissional de saúde.
Mas em algum momento precisei entrar em uma porta de emergência de um hospital da rede privada com minha mãe. As últimas horas de minha mãe, desde que entrei no hospital em que buscava cuidado e acolhida foram de desalento e luta.
A rede privada de saúde, que se vende como especializada na pessoa idosa, não privou minha mãe, de 91 anos, de horas de espera sentada em uma cadeira, cada vez mais fragilizada, em intermináveis exames absolutamente desnecessários, procedimentos invasivos dolorosos, burocracias e protocolos de atendimento sem qualquer sentido para o caso dela e que apenas reforçavam o óbvio: minha mãe não tinha tempo para esperar 8 horas para receber os primeiros cuidados acomodada no leito em que morreria.
Precisamos falar de saúde humanizada, sobretudo à pessoa idosa.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que a população com 65 anos ou mais, que representava 10,2 % dos brasileiros em 2022, deve chegar a 18,6% até 2040.
Não é, pois, sobre minha mãe.
É sobre muita gente e é gente negra, gente branca, pobre, rica, mulher, homem. É todo mundo que envelhece. Que vive o tempo de sua delicadeza, da escassez das horas, em que cada segundo vale uma década porque dentro dele está a intensidade da experiência solitária, única e visceral da própria finitude.
O Sistema Único de Saúde precisa de investimentos para seguir fortalecendo programas como a Estratégia de Saúde da Família, que fortalece a atenção primária com equipes multidisciplinares para acompanhamento contínuo das pessoas idosas; os Centros de Referência em Saúde do Idoso (CRSI), que oferece atendimento especializado em geriatria e reabilitação; e o Programa Melhor em Casa, que prevê assistência domiciliar a pacientes com doenças crônicas e dificuldades de locomoção, além de outros.
Já o sistema de saúde privado precisa parar de espantar as borboletas que aparecem para levar as mães embora.
Precisamos falar de morte enquanto parte da vida, de cuidados paliativos e humanizados, de como morrer para além do não morrer, autonomia decisória de quem vai morrer, menos profissionais sobrecarregados e despreparados, mais gente que sabe olhar e escutar.
Olhar e escutar a pessoa idosa, para além de sua decrepitude, não é tarefa simples. Há que se ter tempo de escuta. O tempo que falta a quem se ouve. Há que se ter coragem para encarar amorosamente o espelho tão concreto de nossa finitude e o todo sem sentido do desperdício de tempo em que não vivemos o amor que está posto como amor, ou que passamos tentando acreditar em corpos invencíveis e instagramáveis. Afinal, morremos.
O etarismo é, no fundo, a negação da morte.
E quando o “todo tempo do mundo” se dilui no miúdo dos minutos da última espera, um fragmento pode mudar todo o caleidoscópio.
Nesse caleidoscópio, em algum momento, um pedaço de mim entrou em uma sala de uma supervisora de alguma coisa do hospital. Eu era ali só uma filha em frangalhos, despejando por todos os corredores e portas que eu batia a palavra dignidade que estaria em uma tal Constituição Federal. Eu jurava que estava. A supervisora de muita coisa me ouviu e resgatou a minha palavra dignidade dos escaninhos da burocracia e do descaso. Fez dela o que deveria ter sido feito horas antes pelos incontáveis médicos que tentei que enxergassem o que não é preciso 6 anos de estudo em medicina para concluir.
Nesse caleidoscópio está também a imagem de minha mãe, em delírio, em algum momento rindo, antes de ir para o milésimo exame desnecessário e invasivo, porque eu disse que ela era linda e rica, já que ela estava pensando em comprar um apartamento, mas tinha que ser de três quartos.
Também tem um pedacinho com o olhar de indignação e empatia do manobrista do estacionamento terceirizado do hospital, provavelmente farto de ver velhinhos sem tempo a perder perdendo tempo na fila para esperar a morte. Tem também o filho do idoso que me deu uma água. A enfermeira exausta. A arrogância indescritível dos doutores de jalecos brancos. Os lindos olhos azuis de minha mãe sobre mim.
E tem o último fragmento.
Entrei no quarto de UTI. Minha mãe estava finalmente sendo cuidada em um quarto acolhedor. Me garantiram que ela escutaria se eu falasse. Não fui checar em nenhuma inteligência artificial se tinha alguma base científica essa escuta, até porque, escutar vai além dos ouvidos e a IA não entenderia isso.
Segurei sua mão, acariciei seus cabelos e disse que era dia 10 de março, aniversário do meu pai, com quem minha mãe viveu 60 anos. Apesar de ter partido há 9 anos, meu pai vivia nas samambaias do quintal que ela regava, na poltrona vermelha da sala que ele sentava, e na hora laranja do dia quando, faça chuva ou sol, se servia capuccino no sobrado da vila de paralelepípedos.
10 de março. Ela escutou. Suspirou diferente.
A humanidade criou a música provavelmente para provar que a escuta não é só do ouvido. Coloquei uma das que meu pai mais gostava. “Todo mundo ama um dia, todo mundo chora, um dia a gente chega, no outro vai embora…”
Coloquei a segunda preferida dele. Roberto Carlos falava para mim, essa ateia que acredita em milagres e na Constituição Federal, de uma Nossa Senhora que cuidaria da minha vida, meu destino, meu caminho, de mim … quando o enfermeiro entrou.
As borboletas chegaram.
Este artigo não representa, necessariamente, a opinião do Coletivo Transforma MP
CRISTIANE CORRÊA DE SOUZA HILLAL
Promotora de Justiça do MPSP e integrante do Coletivo Transforma MP