Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.
Foi anunciado recentemente o oferecimento, pelo Ministério Público Federal, de denúncia criminal contra dois agentes da ditadura militar pelo homicídio e ocultação de cadáver de opositores do regime. O então tenente-coronel Maurício Lopes Lima e o suboficial Carlos Setembrino da Silveira teriam tirado a vida de Alceri Maria Gomes da Silva (VPR) e Antonio dos Três Reis de Oliveira (ALN), por motivo torpe e mediante recurso que dificultou a defesa das vítimas.
O crime teria ocorrido em 17 de maio de 1970, no bairro do Tatuapé, em São Paulo, e foi executado com tiros de metralhadora. O local onde as vítimas foram surpreendidas, denominado “aparelho”, teria sido desvendado mediante a tortura de Osvaldo Soares, preso dias antes. Pela versão oficial, os mortos dispararam contra os agentes do Estado, fato desmentido pelas investigações da Procuradoria – vê-se que os métodos não mudaram muito de lá para cá.
Para o MPF, os crimes “foram cometidos em contexto de ataque sistemático e generalizado à população civil”, consistente na “organização e operação centralizada de um sistema clandestino de repressão política, baseado em ameaças, invasões de domicílio, sequestro, tortura, morte e desaparecimento”, “com o objetivo de assegurar a manutenção do poder usurpado em 1964”. Por serem crimes de lesa-humanidade, não poderiam ser atingidos pela prescrição – digna de efusivos aplausos a parcela do Ministério Público que, perseguindo os verdadeiros fins da instituição, luta incansavelmente pela punição de crimes praticados durante o período do “terrorismo de Estado” no Brasil.
A tortura, a morte, os desaparecimentos forçados e outras formas de violação de direitos humanos, para o MPF, não eram práticas isoladas, mas verdadeiras políticas de Estado, como já havia concluído a Comissão Nacional da Verdade e demonstrado mais uma vez por documentos há pouco divulgados pelo Departamento de Estado norte-americano, os quais se comprova que os crimes eram autorizados pelo então Presidente, Ernesto Geisel, e pelo seu chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), João Figueiredo.
A Lei de Anistia
Em 28 de agosto de 1979 – no início do processo de abertura política –, foi sancionada a Lei n. 6.683, que concedeu “anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes”. O parágrafo 1º da lei dispõe que se consideram conexos “os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política”.
Não há um conceito legal para “crime político”. Para Francesco Carrara, crime político “não é assunto de direito penal, é História”, e, para Evandro Lins e Silva, os presos políticos “estavam ali por uma questão de ideias e procuravam, certa ou erradamente, a melhoria das condições de vida do povo”. O que caracterizaria o crime político, desta forma, seria sua motivação.
Segundo Nelson Hungria, o crime político “ofende ou expõe a perigo de ofensa, exclusivamente, a ordem política em sentido amplo ou a ordem político social (…), e cujo autor, além disso, tem por escopo esse mesmo resultado específico”. O Supremo Tribunal Federal já manifestou o entendimento no sentido de que o crime político deve atender aos pré-requisitos do art. 2º, combinado com o art. 1º, da controversa Lei de Segurança Nacional, ou seja, deve lesar ou colocar em perigo de lesão “a integridade territorial e a soberania nacional”, “o regime representativo e democrático” ou “a pessoa dos chefes dos Poderes da União”.
O objetivo principal do criminoso político, assim, é atingir as bases e estruturas estatais. É desestabilizar a ordem vigente. Sem essa característica especial, não há que se falar em crime político.
Parece simples, nessa linha de ideias, incluir as atividades dos grupos de oposição ao regime ditatorial – incluindo aqueles que se enveredaram na luta armada – como crimes políticos. Sua motivação explícita era desestabilizar os governos e, eventualmente, assumir o poder. Por outro lado, tais motivações aparentemente não podem ser encontradas em práticas de perseguição, prisões arbitrárias, torturas e mortes cometidas por agentes da repressão. Não há como se concluir que sua a intenção especial foi lesionar a integridade territorial ou a soberania nacional, o regime representativo e democrático ou a pessoa dos chefes de Estado.
A Lei de Anistia segundo o Supremo Tribunal Federal
Como o Poder Judiciário nacional relutava – e ainda reluta – em processar, julgar e punir os crimes cometidos na época da ditadura militar, a Seção Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ajuizou a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153, que questionava a validade da aplicação da lei de anistia a agentes estatais que praticaram graves violações de direitos humanos.
A mais alta corte do país, todavia, julgou a ação improcedente, por 7 votos a 2. Optou o Tribunal por uma interpretação ampla do conceito de crime político: “a expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei”, que diria respeito “a uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia”. Cravou a tribunal a extensão da lei aos crimes praticados por agentes do Estado: “daí o caráter bilateral da anistia, ampla e geral”.
Afirmou o Ministro relator que a lei de anistia veicula uma decisão política, havendo de ser “interpretada a partir da realidade no momento em que foi conquistada”. O conhecimento da verdade não dependeria, para o tribunal, de punição na seara criminal. Outros ramos seriam tão competentes quanto para se alcançar a verdade e promover sua reparação.
Dos dois juízes dissidentes, destaca-se pequeno trecho do voto do Ministro Ayres Britto, que afirmou não conseguir enxergar no texto da lei “essa clareza que outros enxergam”. Para ele, o parâmetro de interpretação jurídica que analisa o contexto histórico da promulgação de determinada lei somente pode ser utilizado quando houver “dúvida de intelecção quanto à vontade normativa do texto interpretado”, o que não ocorreria no caso, pois não haveria dúvida de que “os crimes hediondos e equiparados não foram incluídos no chamado relato ou núcleo deôntico da lei”.
Asseverou o magistrado, durante o julgamento histórico:
O torturador não é um ideólogo. Ele não elabora mentalmente qualquer teoria ou filosofia política. Ele não comete nenhum crime político, já que o crime político (…) pressupõe um combate ilegal à estrutura jurídica do Estado, assim como à ordem social que subjaz à estrutura política desse Estado (…). O torturador é um monstro, é um desnaturado, é um tarado (…) é aquele que experimenta o mais intenso dos prazeres diante do mais intenso dos sofrimentos alheios (…) não se pode ter condescendência com ele.
O ministro afirmou que poderia o Congresso Nacional anistiar torturadores, mas que deveria fazê-lo claramente, sem tergiversação. O que importa é a vontade objetiva da lei, e não a vontade subjetiva do legislador. Se a lei quisesse “anistiar um monstro”, que assim o dissesse, mas, segundo o voto, não disse.
O fato é que o Supremo Tribunal Federal decidiu pela completa validade da Lei de Anistia a agentes estatais que atuaram em nome da repressão e cometeram crimes hediondos e assemelhados, mesmo que com grave violação de direitos humanos.
A posição da Corte Interamericana de Direitos Humanos
A Corte Interamericana de Direitos Humanos tem sua competência contenciosa referente à solução de controvérsias que se apresentem acerca da interpretação ou aplicação da Convenção Americana de Direitos Humanos (também conhecida como Pacto de San Jose da Costa Rica). Pode a Corte opinar sobre a compatibilidade de preceitos da legislação doméstica em face dos instrumentos internacionais, efetuando, assim, o chamado “controle de convencionalidade”. Além disso, realiza interpretação dinâmica e evolutiva dos direitos humanos enunciados na Convenção.
No caso das leis de anistia, a Corte já se manifestou mais de uma vez no sentido da incompatibilidade de sua aplicação a agentes estatais que cometeram violações de direitos humanos. Para a corte, essa medida é contrária ao quanto propalado pela Convenção Americana. Foi o quanto decidido no Caso Gomes Lund e outros vs. Brasil, em que a Corte analisou a responsabilidade do Estado brasileiro pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento de 70 pessoas e uma morte no episódio que ficou conhecido como “Guerrilha do Araguaia”.
A Corte entendeu que, mesmo tendo o Supremo Tribunal Federal julgado improcedente a ADPF n. 153, foi ele chamado a fazer o juízo de adequação entre a legislação ordinária e a Constituição brasileira, enquanto a Corte internacional tem competência para aferir a conformidade da lei interna com a Convenção Americana. Deveria ser verificado se o Brasil, ao aplicar a lei de anistia da forma como vem fazendo, está cumprindo seus compromissos firmados no âmbito internacional. Tratava-se, portanto, de objetos diversos, motivo pelo qual foi reconhecida sua competência para o julgamento do caso.
Segundo a Corte Internamericana, “La obligación de investigar y, em su caso, sancionar graves violaciones de derechos humanos, ha sido afirmada por todos los órganos de los sistemas internacionales de protección de derechos humanos”. Destacou-se que todas as medidas para prevenir violações de direitos humanos, bem como o dever de investigá-las e adotar medidas contra seus autores são exigidas pelo direito internacional.
O Tribunal reafirmou a incompatibilidade de leis de anistia em casos parecidos, citando pronunciamento do Secretário Geral das Nações Unidas, quando afirmou que “los acuerdos de paz aprobados por las Naciones Unidas nunca pued[e]n prometer amnístias por crímenes de genocídio, de guerra, o de lesa humanidade o infracciones graves de los derechos humanos”. Devido à interpretação e aplicação dada à Lei de Anistia, a corte reconheceu o descumprimento, por parte do Brasil, em adequar sua legislação interna ao que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos.
No Brasil, o Estado não só é cúmplice de gravíssimas violações de direitos humanos; é seu principal causador. Países como Argentina, Peru e Chile processaram, julgaram e condenaram parte dos responsáveis pelo “terrorismo de Estado” praticado em seu território. Os milhares de mortos e desaparecidos durante as ditaduras latino-americanas são motivo de vergonha para a maioria de sua população. Mas aqui, a falta de compreensão de nossa memória recente tem demonstrado que podemos estar à beira de um desastre. E o que é pior: reproduzindo comportamentos que já deveriam estar superados. É o preço por termos preferido (com a aquiescência do Supremo Tribunal Federal) esquecer nosso passado.
Mas, como se tem repetido na história, um povo sem passado é um povo sem futuro.
Gustavo Roberto Costa – Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo por um Ministério Público Transformador (Transforma MP) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) e membro do Movimento LEAP-Brasil – Agentes da Lei contra a Proibição.