Por Marcelo Paulo Wacheleski, no Justificando
No plano internacional a pessoa com deficiência tem alcançado espaço de proteção, inclusão e respeito à sua dignidade. Foi assim que em 2006 entrou em vigor a Convenção Internacional da Pessoa com Deficiência [1], da qual o Brasil é signatário, e resultou no plano interno no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei n. 13.146/2015).
A formação de um sistema normativo no plano internacional e nacional de forte proteção da pessoa com deficiência é representativo da conquista do espaço de fala de movimentos de pessoas com deficiência desde a década de 1960, em Leeds, no Reino Unido e que se espraiou pela Europa ganhando vozes importantes no Brasil, como a pesquisadora da Universidade de Brasília, Débora Diniz.
Uma das importantes transformações pela admissão da convenção é a compreensão da deficiência não mais como um conceito biomédico, mas a partir da teoria social como um conjunto de fatores sócio econômicos geradores de exclusão e opressão social. Para isso, o próprio sistema econômico e de trabalho precisou ser ressignificado e passaram a ocupar um lugar secundário na afirmação da cidadania.
A partir de então, o trabalho deixou de ser fator decisivo para reconhecimento da dignidade e cidadania e a distribuição foi reafirmada como mecanismo indispensável de políticas públicas de erradicação da pobreza e superação da condição marginal de sobrevivência a que estão destinados em grande parte as pessoas com deficiência.
O cenário no Brasil até o Censo de 2010, último disponível referente aos dados conhecidos da pessoa com deficiência, apontava que 23,9% da população brasileira convivia com algum tipo de deficiência. Dentro dos dados coletados, chama atenção o fato de que no grupo de idade de 65 anos ou mais, a população com deficiência teve um crescimento de 13,7 pontos percentuais, o que é muito superior quando comparado as demais faixas etárias. Isso é resultado do natural envelhecimento da população brasileira e também a associação da deficiência com a idade avançada.
Observados os dados de ocupação, o Censo de 2010 indicava que 23,6% da população com deficiência estava ocupada no período, enquanto a população sem deficiência tinha um nível de ocupação de 76,4%. Dentro dessa realidade é possível considerar outras interseccionalidades que agravam a condição da pessoa com deficiência quando se agregam fatores de exclusão como ser mulher ou o próprio racismo.
Nessas populações o nível de exclusão se reflete na baixa inclusão no mercado de trabalho e, quando ocorre, os salários são menores do que a população ativa sem deficiência e mesmo a com deficiência.
Atualmente, dentro do modelo de transferência de renda, a constituição Federal de 1988, no seu artigo 203, V, dispõe “a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei.”
O disposto na norma foi regulado pela Lei n. 8.742/93, que em seu artigo 20 fixou como critério para concessão do benefício a renda per capita do núcleo familiar ser inferior a 1/4 (um quarto) do salário-mínimo, o que depois foi revisto para incluir critérios socioeconômicos na sua análise pelo julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232, pelo Supremo Tribunal Federal.
Se as condições normativas vinham, ainda a passos lentos, ampliando a condição de inclusão da pessoa com deficiência, a proposta de Emenda à Constituição n. 006/2019, que trata da Reforma da Previdência, vem consolidar o retrocesso nos direitos sociais da população com deficiência, o que já havia se iniciado com a desestruturação dos conselhos e secretarias do sistema federal de seguridade social.
Caso aprovada a reforma, a redação proposta mantém a regra de que a pessoa com deficiência não receberá o abono anual (art. 40). Por outro lado, o inciso VI do art. 203, com a nova redação passa a prever que o valor de um salário mínimo somente será devido ao idoso com mais de 70 anos, sendo que até alcançar essa idade a renda concedida será de R$ 400,00. No § 2º, do art. 40, vem disposta a possibilidade de que essa idade possa ser ajustada com a alteração na expectativa de vida da população. Pesa ainda a proposta de que o benefício de prestação continuada seja desvinculado do reajuste do salário mínimo.
Em resumo, considerando os dados estatísticos disponíveis atualmente, tem-se que o maior crescimento da população com deficiência está entre os idosos. Se aliados os fatores de vulnerabilidade relativos a idade avançada e deficiência, é facilmente verificável o alto índice de pobreza nesse seguimento, o que será reforçado pela reforma da previdência que permitirá que muitas pessoas idosas tenham uma renda inferior a metade do salário mínimo e a possibilidade de que pessoas com deficiência também recebam valores inferiores ao mínimo pela desvinculação do reajuste do benefício ao salário mínimo.
O genocídio econômico provocado pela reforma contra a população idosa e com deficiência apresenta justificativa econômica inadmissível. Do que se retira do projeto, em 2017, a despesa total com a previdência alcançou 13,6% do PIB, e se considerado o BPC/LOAS o nível chega a 14,4% do PIB, ou seja, em relação ao gasto total, o BPC/LOAS representa 0,8%. Mais ainda, em 2018, somando os gastos do RGPS, RPPS da União de civis, militares e Fundo Constitucional do Distrito Federal ? FCDF, o resultado alcançado implica no comprometimento de 53% da despesa primária da União, e quando incluído o BPC/LOAS esse índice vai para 57%.
Como visto, o retrocesso nos direitos das pessoas com deficiência e idosas implicará em alterações num universo de 0,8% das despesas orçamentárias e 4% das despesas primárias da União. Considerando que 23,9% da população atualmente no Brasil convive com alguma deficiência, e ainda, o baixo nível de inclusão educacional e de trabalho, a economia pretendida pelo governo resultará em danos significativos na preservação e promoção da dignidade desse grupo populacional e terá impactos insignificantes na economia pretendia.
Ao que tudo indica esses dispositivos da reforma passarão, mesmo com as iniciativas de partidos minoritários no Congresso. Mas e a sociedade civil? Nada diz. Todos os dias são anunciados novos cortes de direitos e retrocessos impactantes em direitos sociais que ocupam os noticiários que tem criado uma massa atônita e carente de liderança ou espaço de resistência.
Porém, ao se falar da pessoa com deficiência e idosa, historicamente vulneráveis e violadas no sistema jurídico brasileiro, a tragédia provocada pela reforma atingirá pelo retrocesso um espaço que se iniciava a construir e devolve às franjas da miséria dois grupos com baixa representatividade legislativa e de movimentos sociais.
Com pouca capacidade de articulação institucional, os movimentos de pessoas com deficiência e idosos tenderão a sofrer os efeitos mais perniciosos de um modelo econômico que não reconhece a dignidade fora do capital e do mercado de trabalho. O genocídio estará normatizado e legitimado pelo sistema constitucional em nome da preservação da economia, mesmo que em nada melhore os resultados financeiros do governo.
Marcelo Paulo Wacheleski é Doutor em Direitos Humanos e Democracia pela UFPR com período de pesquisa na Universidad Complutense de Madrid; Mestre em Direito Univali; Pós Graduado em Filosofia do Direito pela PUC-PR; Advogado no Paraná