A sociedade está sendo docilizada e Estado policial avança

Por Rochester Oliveira Araújo, no Justificando.

São tempos difíceis para os sonhadores. E tão difíceis quanto para os realistas. É preciso encarar o risco de uma retomada, após um breve suspiro democrático, de um estado policialesco que parece avançar com uma versão atualizada da sociedade. Talvez parte desse avanço se deva justamente à preparação – docilização – da sociedade para esse estado antidemocrático.

Quando criança, uma das brincadeiras que eu mais achava interessante era a de “Polícia e Ladrão”. Achava interessante: gostar ou não gostar da brincadeira dependia do dia, se eu ganhasse ou não. E geralmente, pela minha lentidão, eu perdia. Mas o que achava interessante era a dinâmica: o fato de que, ao se escolher quem era a Polícia – que ia perseguir os demais e, ao alcança-los, levar pra prisão – todos os outros seriam posicionados como Ladrão.

O espaço para brincar era delimitado e ninguém podia correr além das fronteiras que eram traçadas. A brincadeira começava. A polícia pegava o primeiro (que muitas vezes era eu, me lembro) e levava até a delegacia que era um ponto qualquer. Quando alguém era preso, tinha que ficar imóvel. Se tornava mero expectador da brincadeira. E ser mero expectador é o tédio infantil nessas brincadeiras. Logo, então, quem estava ali parado começava a ajudar a polícia e entregar os esconderijos ou onde cada um estava. Era uma forma de fazer acabar logo aquela rodada da brincadeira para recomeçar ou passar para outra. Fora que, em determinado ponto, era tão difícil fugir que quem ainda não havia sido preso, no lugar de correr, preferia se entregar ou simplesmente empurrar o outro para cima da polícia para se livrar. Ganhava-se tempo. A brincadeira acabava quando todos haviam sido presos. Todos no tédio.

Rio de Janeiro, 2014 – UPP do Complexo da Maré: policiais do BOPE fazem “varredura” no local. Foto: Tercio Teixeira

O que era interessante, ou o que hoje percebo com interessante, é que os ladrões – todo o resto – colaboravam com aquele que era a Polícia para não ser o próximo a ser preso ou para acabar logo aquela jogada. E que o final da brincadeira era o instante em que todos estavam presos. Qual era a graça agora? Nenhuma. Era o momento de ir brincar de outra coisa. E assim foi. Cresci e a brincadeira acabou. As lições, nem tanto.

O Estado Policial não é um estado democrático. E quando falamos de Estado Policial não estamos falando apenas da existência de uma hipertrofia de uma instituição policial. Além disso, temos todo o funcionamento policialesco das demais instituições e poderes estatais, seja diretamente com atos autoritários, seja indiretamente legitimando – até mesmo e sobretudo pela omissão – esses atos. Mas existe polícia fora do Estado? Parece ser essa a tecnologia aperfeiçoada que estamos experimentando, o que é assustador já que soma-se à forma tradicional do Estado Policialesco que vem se enrijecendo.

A hipertrofia da instituição policial passa por várias técnicas que já abordamos anteriormente quando falamos do “vazio por dentro da farda e a politização da sociedade”.

Além disso, a Polícia só é uma instituição aceitável na democracia se houver um sistema de justiça que possa lhe regular e reter o poder. Incluindo, no sistema, a função do Ministério Público como fiscal externo da atividade policial (apesar do baixíssimo exercício dessa atribuição constitucional pelo órgão); a Defensoria Pública como promotora de Direitos Humanos; a Ordem dos Advogados do Brasil; a sociedade civil e etc. A despeito do funcionamento adequado ou não dos mecanismos de regulação para que a instituição policial funcione num modo democrático – o que, pelo crescente número de mortes durante a sua atuação se evidencia não estarem funcionando – há um corpo de instituições destinados a esse fim.

O processo de legitimação desses atos vai desde a construção de jurisprudências que respaldem de forma absoluta a declaração do Policial Militar acerca do flagrante como suficiente para a classificação de alguém como traficante, passa pela manutenção dos autos de resistência como forma de proteção às práticas ilícitas de violência policial, e desemborcam na baixa responsabilização (civil e criminal) de atos arbitrários pelo sistema de justiça, mesmo diante de chacinas e mortes.

Contudo, como dito, mesmo na formatação clássica do Estado de Polícia, não é só a Polícia e as instituições correlatas ao sistema de justiça que reforçam seu caráter arbitrário. Policializa-se outras atividades estatais, o que se caracteriza com a atuação das instituições de modo autoritário, sem respeito aos direitos dos indivíduos e, quando não, truculentos e violentos. Essa índole, por exemplo, é perceptível desde os órgãos de fiscalização mais simples até os mecanismos de repressão paralelos, como a internação compulsória feita para pessoas que fazem o uso problemático de álcool e outras drogas. Uma releitura de Hanna Arendt permite evidenciar muito bem esses fenômenos.

A questão que aparece como inovada – embora não seja novidade – é a policização de quem está fora do Estado, ou pelo menos não deve tanta obediência às burocracias que pulverizam a prática autoritária. Somos nós, também, policiais? Ou melhor, somos nós, cidadãos, também capazes de colaborar com um Estado Policialesco?

Não estamos diante de uma novidade, como dito. Deleuze, em diálogo com Foucault, já afirmava que “vários tipos de categorias profissionais vão ser convidados a exercer funções policiais cada vez mais precisas: professores, psiquiatras, educadores de todos os tipos etc. É algo que você anunciava há muito tempo e que se pensava que não poderia acontecer: o reforço de todas as estruturas de reclusão.”

Quando nos deparamos com a sepse da sociedade pela sanha punitivista, atos de policialização da sociedade ficam cada vez mais evidente. Qual a outra identidade, que não a policial, que um aluno que aceita a missão de fiscalizar e filmar o professor em sala de aula está projetando para si? Ou quando um pai de um aluno encabeça essa vigilância permanente contra os professores, censura ou agressão, é a falsa liberdade de agir como executor da lei que lhe encoraja.

Esse efeito, quando recai sobre os jovens, parece ser ainda mais facilmente identificável. Se a juventude tem, por sua natureza, uma alma de transgressão e revolta, alguns preferem fomentar que essa transgressão seja menos crítica e irruptiva. Daí só sobra a arbitrariedade da revolta.

Talvez faça parte disso a fantasia que nutrimos por super-heróis, sobretudo aqueles que não possuam grandes poderes, que são meros mortais dotados de uma suposta moral superior, estando acima e abaixo da lei para promover o que eles julgam a justiça, tal qual o Batman. Fantasia essa compartilhada por jovens e adultos. Contudo, para um adolescente que a fantasia tem um processo criativo, imaginativo e lúdico, essas questões podem ser muito bem trabalhadas. Já para um adulto, sobretudo quando ele é Juiz e, após largar o uniforme, revela-se político, fomentar essa fantasia e torna-la realidade é muito mais perigoso à democracia.

Voltando para a sociedade, a vigilância constante de uns para com os outros e a naturalização dessas práticas de vigilância permite que nós, voluntariamente e conscientemente, passemos a agir como colaboradores do Estado Policialesco. A propagação de mecanismos de vigilância contínuo, reconhecimento facial em espaços públicos e privados, compartilhamento de dados particulares que produzimos de nossos smartphones e computadores, nada parece afetar a nossa noção de perda da cidadania e crescimento do controle. Quando vemos essas práticas de vigilância se intensificarem, com a nossa anuência e colaboração, geralmente pensamos nas possibilidades de sua aplicação em nome de uma pseudo segurança pública. E quando pensamos por essa ótica, é porque nos colocamos como fiscais, como observadores, como autoridades diante de algum evento, e não como deveríamos nos colocar que é no papel de observado, de vigiado e de perseguido tecnologicamente.

Para além de vigiar, o Estado de Polícia é caracterizado pela execução arbitrária de seus comandos e punições. Crescem e se frutificam as formas que temos adotado para, fora do Estado, praticar nossas próprias execuções e punições. Restringindo-se ao recorte do novo e da sociedade digital, o tribunal da internet se mostra extremamente arbitrário e autoritário na execução pública de seus jurisdicionados. As formas de punição dele remetem aos suplícios públicos e rituais de humilhação.

Como ressaltado por Deleuze, as mais variadas atuações profissionais são cooptadas para agir de forma policialesca. Na área da saúde, por exemplo, a situação de vulnerabilidade de alguém com a saúde em risco permite o afloramento de comportamentos opressivos, como se pode observar nas práticas de violência obstétrica ou no tratamento das pessoas com transtornos mentais. Até mesmo no trânsito temos condutas autocráticas dos condutores, o que tem provocado o aumento da violência no trânsito e os conflitos.

A lógica por trás da policização da nossa sociedade é, entre tantas, a de implementar ainda mais a função do sistema penal como fomentador de conflitos intra-classes. Foucault já alertava que  “a separação que o sistema penal opera e mantém entre o proletariado e a plebe não proletarizada, todo o jogo das pressões que ele exerce sobre esta, permite à burguesia servir-se de alguns desses elementos plebeus contra o proletariado; ela os usa como soldados, policiais, traficantes, pistoleiros e utiliza-os na vigilância e na repressão do proletariado.”

É, portanto, acirrando – e não pacificando – os conflitos entre os próprios cidadãos que se mantém um sistema penal que serve à manutenção das desigualdades. O Estado policialesco contemporâneo promove, em cada um de nós, um falso poder de polícia para com o outro. Embutidos dessa capacidade, nos sentimos mais próximos de deter o poder, ou, pelo menos, mais longe de sermos os próximos a serem excluídos da sociedade ou sofrer seus julgamentos. O que não percebemos é que se a identidade de “ser polícia” é algo aberto e possível de ser revestido em cada um de nós, é porque o mesmo ocorre com a possibilidade de ser “bandido”.

O Estado Policial existe para tratar com arbitrariedade e autoritarismo as pessoas que estão sob sua jurisdição, sob a justificativa de estar lidando com “bandidos”, “ladrões”, “fora da lei”. Ou seja, em um jogo infantil de “Polícia e Ladrão”, se o Estado é a Polícia, todo o resto é o ladrão que estará sobre sua mira. Mas diferentemente do que acontece na correria da infância, num Estado policialesco, nós, enquanto cidadãos, nunca iremos de fato deixar de ser o alvo, a mira do Estado de Polícia. Ele conta com a nossa “ajuda”, mas sempre estaremos sob seu poder de dominação. Agir com arbitrariedade e autoritarismo em colaboração a esse Estado Policial não é participar do poder, mas sim fomentar que esse mesmo poder possa ser aplicado contra si. É, no máximo, empurrar o próximo para que ele seja alvo primeiro que você.

Rochester Oliveira Araújo é mestre em Direito Constitucional e Defensor Público do Estado do Espírito Santo.

Foto de Tércio Teixeira

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