Por Gustavo Roberto Costa, no GGN.
O adolescente José (nome fictício), de 16 anos de idade, negro, está acolhido, junto do irmão Paulo (também fictício), de 15, em entidade de acolhimento institucional do município. Paulo não conversa; apenas fala sozinho. Faz gestos incompreensíveis. Recentemente, ambos permaneceram por 40 dias internados provisoriamente em unidade da Fundação CASA, por terem sido acusados do roubo de um Iphone (nunca vou entender a restrição da liberdade de alguém por causa de um miserável aparelho eletrônico).
A família é desintegrada. A irmã mais velha completou 18 anos em outra entidade de acolhimento – hoje leva vida independente. Os três irmãos mais novos vivem com familiares extensos no Estado de Pernambuco. A mãe é usuária de drogas. Segundo José, ela afundou-se no vício após a retirada dos filhos. “Minha mãe sempre cuidou muito bem de todos nós”, afirma.
José conta que vendia balas com o irmão Paulo em um semáforo quando foram abordados por policiais militares, que os acusaram da prática do roubo. “Acusaram meu irmão, mas como ele pode roubar alguém? Ele não conversa, não entende o que falam a ele”. Durante a conversa, o irmão faz gestos de quem está empinando uma pipa, e esboça leves sorrisos, aparentemente sem motivo. “Ele piorou depois que fomos internados”, relata.
A abordagem policial foi primeiramente contra Paulo. Os policiais o acusavam do roubo, mas ele não compreendia. José foi socorrer o irmão, perguntando o motivo da detenção. Foi também abordado e acusado da prática do ato infracional. “Eles tomaram minhas balas e R$ 150,00 das minhas vendas, que eu tinha no bolso”, destaca. Foram levados à Delegacia e apreendidos em flagrante. “Na audiência, eles ainda nos acusaram de outros roubos, que desconhecíamos”.
Após a internação provisória, foi aplicada uma medida de liberdade assistida – aquela em que o adolescente retorna para casa e é acompanhado por um orientador. Mas José e Paulo não têm casa, motivo pelo qual foram encaminhados ao acolhimento. “Se não fosse por meu irmão, já tinha fugido daqui. Não é justo eu ficar ‘assinando’ por uma coisa que não fiz”, desabafa.
José é simpático, de sorriso fácil. Olha frequentemente para o infinito quando conta sobre os episódios marcantes da sua vida. Conta sobre o cachorro que tinha quando vivia com a família. “Ele não atacava mulheres. Só homens, quando queriam bater nas mulheres”. Fala com um carinho impressionante sobre os irmãos mais novos (que estão no Nordeste). Seu olhar é profundo, marcante, sofrido, mas possui uma força extraordinária. Não tem ódio, não tem raiva, não tem rancor. Tem um desejo angustiante de justiça.
Quer voltar a ver o pai, a mãe, os irmãos, a irmã. Quer entrar num time de futebol. Quer voltar a estudar. Arrumar um trabalho e ter seu próprio dinheiro. Ajudar a cuidar da saúde do irmão especial. A vida inteira jogou contra. Até agora ele não desistiu. Não entregou os pontos. Até agora.
Será que algum de nós, integrantes do sistema de justiça, poderia falar melhor sobre “justiça” que esse menino?
Gustavo Roberto Costa. Promotor de Justiça em São Paulo. Membro fundador do Coletivo Transforma MP e da ABJD – Associação Brasileira de Juristas pela Democracia. Associado do IBCCRIM – Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.